Desde junho, todas as casas
do Vale Encantado estão ligadas a um sistema biosustentável, que trata a água
antes que ela siga para os córregos da região.
Quando uma turista perguntou
se poderia tomar banho de cascata, no fim de uma trilha ecológica na comunidade
do Vale do Encantado, no Rio de Janeiro, o guia da expedição e morador local,
Otávio Barros, teve que negar o pedido — a água, afinal, estava contaminada
pelo esgoto não tratado. Desde então, o líder comunitário busca formas de
contornar a situação.
Não é tarefa simples, visto
que o problema não é fácil de resolver nem particular do Vale. Segundo dados do
Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS), apenas 55% da população
brasileira tem acesso a redes de esgoto, o que significa que quase 100 milhões
de brasileiros não têm seus resíduos tratados.
Mas essa não é mais a
realidade do Vale Encantado. Desde junho deste ano, as 28 casas da comunidade
estão ligadas a um sistema biosustentável construído pelos próprios moradores,
que trata o esgoto das residências antes que ele siga para os córregos da
região.
“Quando eu falo em
sustentabilidade, para mim ela tem que fazer um círculo completo. Se não fizer
um círculo completo, ela é meia sustentabilidade”, defende Otávio. Ele não
queria apenas uma solução para o saneamento básico, mas um projeto capaz de
trazer oportunidades para toda a comunidade.
Inspirado em um modelo centenário
da China, o biossistema capta todo o esgoto bruto da comunidade em um tanque de
concreto, onde os resíduos são decompostos por uma série de bactérias, em um
processo similar à digestão humana. Essa reação inicial inclusive gera gás, que
pode ser aproveitado pelos moradores locais para cozinhar.
Depois disso, a água segue para outro tanque, no qual plantas consomem os nutrientes restantes, deixando a água até 80% limpa de resíduos. Em vez de correr para os córregos, o sistema leva a água até uma área de terra, onde árvores e o restante na flora local consomem o líquido já tratado.
Em vez de correr para os córregos, o sistema leva a água até uma área de terra, onde árvores e o restante na flora local consomem o líquido já tratado.
Otávio recorda que os
esforços para montar o sistema foram ininterruptos: em 2011, enquanto
trabalhava na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), ele
conheceu o então estudante de engenharia ambiental Leonardo Adler, que se
tornou um grande parceiro do projeto. Juntos, eles angariaram os recursos para
um primeiro biossistema de tratamento da água, em 2015, que ligava cinco casas
da comunidade. O atual projeto, que atende a todos os 100 moradores do Vale
Encantado, contou com verbas de ONGs internacionais e instituições brasileiras.
Assim, cerca de quinze anos depois do questionamento da turista, a água da cascata finalmente está fora de perigo e Otávio orgulha-se em indicar o local para banho.
O morador do Vale Encantado, Otávio Barros, durante uma das fases de implementação do projeto.
Agenda 2030 – O novo sistema
do Vale Encantado está alinhado à Agenda 2030 acordada pelos países integrantes
da Organização das Nações Unidas. Especificamente, ao Objetivo de
Desenvolvimento Sustentável (ODS) número seis, sobre água potável e saneamento,
destacando que até 2030 é preciso “melhorar a qualidade da água, reduzindo a
poluição, eliminando despejo e minimizando a liberação de produtos químicos e
materiais perigosos”.
A oficial nacional para o
Brasil do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos
(ONU-Habitat), Rayne Michelli Ferretti Moraes, ressalta que este ODS não é
apenas fundamental, como está intimamente conectado a outras metas da ONU. “É
um ODS que tem um rebatimento direto na saúde, na educação, na redução das
desigualdades, na redução da fome. Isso significa que ao caminhar na direção do
cumprimento das metas do ODS 6, você favorece o cumprimento das metas de outros
ODS.”
Iniciativas locais – A
complexidade do tema também implica em uma grande dificuldade de alcançar as
metas estabelecidas até o final da década. “O desafio do saneamento é muito
grande, não só no Brasil, como
em vários outros países”, explica Rayne, lembrando que o problema afeta bilhões
ao redor do mundo.
É neste contexto que
iniciativas comunitárias, mesmo que com um escopo limitado, se tornam
ferramentas importantes para ampliar o acesso ao saneamento básico,
principalmente em regiões pequenas ou isoladas. Exemplos como o do Vale
Encantado mostram que às vezes é possível resolver localmente a questão, quando
há apoio de organizações dispostas a ajudar.
“Todas as iniciativas da
sociedade civil, do setor privado, de organizações do terceiro setor e de
organismos internacionais são muito bem-vindas, para somar os esforços e
potencializar o comprimento das metas de desenvolvimento sustentável”, afirma
Rayne. “Iniciativas como essas, por mais que sejam em um nível local, em um
nível de uma comunidade, e envolvam um número mais restrito de domicílios, são
certamente importantes.”
Soluções – Embora as iniciativas locais sejam importantes, elas estão longe de ser a única resposta possível à questão da falta de saneamento, que requer um leque de soluções.
“É importante trabalhar com empresas, concessionárias e prestadoras de serviço. É importante trabalhar com os governos, na parte de regulamentação, na parte de gestão, bem como com a população em geral”, conclui Rayne. (ecodebate)
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