‘Para a questão nuclear, nunca há responsáveis’, diz especialista japonês
Professor-assistente no laboratório de pesquisas sobre os reatores nucleares na Universidade de Kyoto Hiroaki Koide é uma das figuras mais ouvidas na questão da energia atômica no Japão. Por questionar a política do governo, ele foi mantido durante quase quatro décadas em uma espécie de “purgatório” do meio científico, assim como outros pesquisadores que compartilham das mesmas ideias. Ele permaneceu como “assistente”, sem responsabilidades e recebendo orçamentos parcimoniosos.
Seus livros com alertas contra os riscos da energia nuclear passaram despercebidos. Desde a catástrofe de Fukushima, suas duas últimas obras, publicadas em 2011 (“Basta de nuclear” e “A Mentira Nuclear”), não traduzidas, passaram a figurar entre os seis livros mais vendidos. Dentre os blogs dedicados ao acidente de Fukushima, o que contém suas palestras é um dos mais acessados.
Após o terremoto e o tsunami que atingiu o Japão em março, uma área num raio de 20 quilômetros da usina de Fukushima foi considerada zona de exclusão. Pequenos incidentes também foram registrados nas usinas de Onagawa, Tokai e Fukushima Daini, mas controlados. O nível do acidente nuclear japonês chegou a 7, o mesmo do acidente na central nuclear de Tchernobil, em 1986. A área de risco onde estão localizadas algumas usinas vai obrigar o país a rever a segurança de grande parte das mais de 50 usinas do país.
Le Monde: Nove meses após Fukushima, que lições foram aprendidas?
Hiroaki Koide: Os reatores são máquinas manipuladas pelo homem, e este não é infalível. Depois dos meus estudos, eu quis dedicar minha vida à energia atômica. Eu era um estudante até conservador. Depois, no início dos anos 1970, assisti a manifestações contra a construção da usina de Onagawa. Eu não entendia o porquê. Pouco a pouco, ao longo das minhas pesquisas, fui me conscientizando dos perigos da energia nuclear. Não somente no Japão, por causa dos terremotos e dos tsunamis. No estado atual da ciência, a energia nuclear é perigosa. Em todos os lugares.
Le Monde: O que o senhor acha da atitude do governo japonês?
Koide: Tenho vergonha. Sua reação ao desastre foi condenável em mais de um nível: subestimação dos riscos, dissimulação de informações e atraso na evacuação das populações, que no início foram convidadas a deixar os locais dentro de um raio de 3 quilômetros “por precaução”. Depois as zonas de evacuação foram ampliadas em círculos concêntricos, sendo que as ondas de radioatividade se movem em função do vento.
Le Monde: O que o governo deve fazer?
Koide: Parar imediatamente as usinas. Se houver um novo acidente dessa dimensão, o Japão não vai conseguir se recuperar. A ameaça da falta de eletricidade é uma ilusão: se reativarmos as usinas hidráulicas e térmicas, atualmente paradas, haverá energia suficiente.
Le Monde: A maioria dos pesquisadores apoiou durante anos a política de Tóquio. Por quê?
Koide: A promoção da energia nuclear é a política do Estado. Os meios acadêmicos e a mídia foram atrás. E os cientistas, perdidos no mundo deles, renunciaram à sua responsabilidade social. O Estado e as operadoras das usinas quiseram acreditar – ou assumiram o risco de acreditar – que não ocorreria um acidente.
Le Monde: Mas os japoneses, primeiro povo a adotar a energia nuclear, conhecem os riscos…
Koide: Para muitos japoneses, existe uma diferença entre a bomba atômica e a energia nuclear. Além disso, há o jogo de interesses econômicos e políticos. A energia nuclear é muito rentável para as companhias de eletricidade [os japoneses pagam mais caro por sua eletricidade do que o resto do muno], as gigantes industriais, como a Mitsubishi Heavy Industries, a Toshiba, a Hitachi, envolvidas na construção das usinas, seguem sua lógica de rentabilidade e o Estado “solta suas rédeas”.
E também há a questão política: embora o Japão, como estipulado por sua Constituição, tenha renunciado à guerra, pretende ter uma capacidade nuclear que lhe permita dispor de matéria físsil para poder, se for o caso, construir rapidamente uma bomba. Por fim, há municípios pobres que acreditam que uma usina nuclear lhes traria prosperidade, sem medir os riscos.
Le Monde: O senhor acredita que a história da energia nuclear é uma história de discriminação…
Koide: A produção desse tipo de energia depende do sacrifício de certas categorias sociais. As usinas não são construídas perto das cidades que elas abastecem de energia, mas em regiões atrasadas cujas populações não sabem se defender. Quem sofre os riscos máximos de radiação não são os empregados das operadoras das usinas, que em sua maioria são sindicalizados, mas sim os terceirizados: 86% das vítimas de radiação, por terem trabalhado perto dos reatores, são os “ciganos do nuclear”, ou seja, operários temporários.
Le Monde: O governo quer virar a página: a palavra de ordem é “reconstruir”, “descontaminar”…
Koide: O que chamamos de “aldeia nuclear” – o lobby pró-nuclear– permanece no lugar. A descontaminação é uma nova fonte de lucro para ela, e a reconstrução é um manancial para as empresas de engenharia civil. Se quiserem descontaminar, é todo o departamento de Fukushima que deve ser descontaminado. Mas para onde vão transportar a terra radioativa?
Le Monde: “Virar a página” também significa apagar as responsabilidades?
Koide: Da mesma forma que em acidentes anteriores, de dimensão muito menor, não houve responsáveis. Há interesses demais em jogo.
Le Monde: Após o acidente, houve manifestações antinucleares, mas não um movimento da opinião pública. Por que essa apatia?
Koide: Também me pergunto isso. Os japoneses tendem a respeitar as hierarquias e a burocracia. Ademais, a quem eles vão procurar? Não há um intermediário político: e menos ainda com os democratas no poder desde 2009, com muitos deputados que dependem dos sindicatos do setor da energia elétrica e da indústria pesada.
Le Monde: No entanto, a História mostra –as lutas operárias dos anos 1950, os movimentos de cidadãos contra as doenças causadas pela poluição – que os japoneses nem sempre são passivos…
Koide: No primeiro caso, havia sindicatos fortes, que foram esmagados. No segundo, logo se viram os trágicos efeitos da poluição: o nascimento de crianças com problemas mentais e motores. E a opinião pública despertou. No caso de Fukushima, haverá vítimas, provavelmente muitas, mas o mal se propaga lentamente e a conscientização corre o risco de seguir o mesmo caminho. (EcoDebate)
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