Governo incentiva método controverso de extração de combustíveis fósseis.
No apagar das luzes da gestão
de Bolsonaro, o governo federal lançou o edital do projeto Poço Transparente,
que incentiva o fracking no Brasil. A prática consiste na exploração de
reservatórios não convencionais de petróleo e gás por meio de técnicas como o
fraturamento hidráulico e já foi banida em países como Alemanha, França e Reino
Unido por estar associada a riscos à saúde humana e impactos socioambientais.
Já há empresas com interesse
em aplicar o fraturamento hidráulico em áreas de exploração na Amazônia Legal.
É o caso da Eneva, a maior operadora privada de gás natural do Brasil, cujas
operações no Maranhão estão na região da bacia sedimentar do Parnaíba (no Pará,
Maranhão, Piauí e Tocantins), que contém uma das reservas de gás não
convencional mais promissoras do país, de acordo com dados da Empresa de
Pesquisa Energética (EPE). Outras bacias sedimentares na Amazônia, como a do
Solimões (no Amazonas) e do Amazonas (no Amazonas, Pará e Amapá), também contêm
potenciais reservas do recurso, de acordo com dados da EPE.
O documento, lançado em
07/12/22, faz concessões a entidades e empresas do setor de petróleo e gás que
haviam pedido a flexibilização de trechos de uma minuta submetida à consulta
pública entre março e abril deste ano no site do Ministério de Minas e Energia
(MME).
Como um dos requisitos para a
qualificação de projetos por meio do edital, a versão preliminar do texto
determinava que houvesse distância mínima de 1,5 mil metros entre o poço
perfurado para fracking e aquíferos passíveis de uso doméstico ou industrial.
Também demandava que os poços onde seria realizado o fraturamento hidráulico
ficasse a pelo menos 500 metros de “construção habitada”.
Na consulta pública, a
Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Petróleo e Gás (Abpip) e
o Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP) se manifestaram contrariamente
ao primeiro ponto, e a Abpip, desfavoravelmente ao segundo, conforme revelou a
Agência Pública em junho. A intenção, sobretudo em relação ao primeiro tópico,
era beneficiar a Eneva, que, em evento para investidores em fevereiro deste
ano, manifestou a intenção de submeter uma proposta ao Poço Transparente para
realizar o fracking em Santo Antônio dos Lopes, no interior do Maranhão, onde
possui um complexo formado por quatro usinas termelétricas e campos de produção
de gás convencional. Segundo a Abpip e o IBP, poços com potencial não
convencional naquela região distam entre 1,2 e 1,4 mil metros de aquíferos – o
que desrespeitaria o limite determinado pela primeira versão do edital.
No fim das contas, ambas as
exigências acabaram suprimidas do edital elaborado pelo MME, Agência Nacional
de Petróleo (ANP), EPE e Programa de Parceria de Investimentos (PPI), vinculado
ao Ministério da Economia. O documento estabelece apenas que não sejam aceitos
projetos “quando houver estudos técnicos que demonstrem que a execução do
fraturamento hidráulico afetará a base de um aquífero passível de uso doméstico
ou industrial”.
Ilan Zugman, diretor para
América Latina da organização 350.org, avalia que o documento é demasiadamente
simplificado e impõe poucas restrições diante de uma técnica “perigosa e
danosa” como o fracking, o que classifica como “temerário”. “A retirada desses
pré-requisitos deixou o processo ainda mais fácil para as empresas”, destaca
Zugman. “É claro que será estudado caso a caso, mas é um grande absurdo que não
haja restrições maiores. Pelo contrário, eles derrubaram as restrições que já
eram muito frágeis.”
A 350.org é uma das 16
organizações da sociedade civil que, em nota lançada em 09/12/22, criticaram o edital e pediram sua “revogação imediata” ao presidente eleito
Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ao vice Geraldo Alckmin (PSB), ao coordenador
do grupo de trabalho do Meio Ambiente da equipe de transição, senador Jorge
Viana (PT), e também ao relator do GT, Pedro Ivo Batista. Os signatários do
texto apontam que o Poço Transparente representa “iminente risco de danos
irreversíveis a toda a sociedade brasileira e ao clima global”, já que o
petróleo e o gás não convencionais obtidos via fracking são combustíveis
fósseis, cuja queima produz gases de efeito estufa, responsáveis pelo
aquecimento global e as mudanças climáticas.
De acordo com o Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), é necessário que o mundo
atinja, no máximo até 2025, o pico das emissões desses gases para manter viva a
meta do Acordo de Paris de limitar o aumento da temperatura média global a
1,5°C. Por isso, para Zugman, o Brasil está na contramão do mundo ao apostar no
fracking. “O governo deveria fortalecer a transição energética, colocar o foco
nas energias renováveis e não em testar uma técnica que já foi banida em vários
países”, afirma.
Em resposta aos
questionamentos da Pública, a ANP informou apenas que a demanda deveria ser
dirigida ao MME. O ministério, por sua vez, não retornou até a publicação da
reportagem, assim como a EPE, PPI, Abpip, IBP e Eneva.
Redução de royalties e apoio ao licenciamento ambiental
A partir de agora, conforme o
edital, empresas que quiserem fazer fracking em poços não convencionais em
blocos ou campos sob sua concessão poderão inscrever propostas, que deverão ser
analisadas pelo MME num prazo de 90 dias. Poderão ser submetidos projetos
durante dois anos, até 07/12/2024.
As propostas selecionadas
contarão com incentivos, como a redução do pagamento de royalties por parte das
empresas produtoras aos entes estatais. A lei determina que a compensação
financeira seja paga em montante correspondente a 10% da produção de petróleo
ou gás natural, com a previsão de que a ANP possa reduzir o valor a 5% em casos
específicos. O edital determina que isso se aplique ao caso do Poço Transparente.
Ainda segundo o documento, o
projeto tem como bandeiras a transparência e a intenção de promover a
exploração de reservatórios não convencionais “em condições seguras para o meio
ambiente e para a saúde humana”. No entanto, especialistas ouvidos pela Pública
não acreditam que isso seja possível diante das sólidas evidências científicas
que apontam riscos à saúde e ao meio ambiente relacionados à prática do
fracking.
O edital também estabelece
que os projetos selecionados contarão “com apoio ao licenciamento ambiental e a
outras medidas necessárias à sua viabilização”. Esse é um dos grandes
obstáculos para a aplicação da técnica do fraturamento hidráulico no Brasil:
não existe no país regulamentação específica para o processo de licenciamento
ambiental necessário à sua realização, conforme determina resolução da ANP. O
Poço Transparente só viabilizará a atividade por ser uma iniciativa de caráter
experimental.
A publicação do edital no
último mês de Bolsonaro como presidente da República visa ao cumprimento de uma
promessa que constava em seu plano de governo quando candidato em 2018: a de
incentivar a “exploração não convencional” de petróleo e gás que pudesse ser
“praticada por pequenos produtores” contra “o monopólio da Petrobras sobre toda
a cadeia de produção do combustível”.
Impactos
O fracking pode acarretar uma
série de consequências ambientais, conforme vêm apontando a ciência e as
comunidades impactadas ao longo dos anos.
Uma das mais notáveis são as
significativas emissões de gases de efeito estufa (GEE), os grandes
responsáveis pelo aquecimento global, não só nas etapas de exploração e
produção do gás de folhelho, como na atividade do maquinário pesado utilizado
nas operações e na intensa movimentação de veículos de transporte – o que causa
também a piora da qualidade do ar local. Há ainda as emissões “fugitivas” de
metano, um poderoso GEE, que ocorrem em momentos da injeção de fluidos nos
poços e de sua volta à superfície (a “água de retorno”) para a extração do
petróleo ou gás. Um estudo de 2019 constatou que, durante a década anterior, a
produção de gás de folhelho nos EUA – que, graças ao fracking, se tornaram o
maior produtor mundial de hidrocarbonetos – pode ter contribuído para mais da
metade do aumento das emissões derivadas de combustíveis fósseis em todo o
planeta e para aproximadamente um terço da elevação de emissões globais de
todas as fontes de GEE no mesmo período.
Os tremores induzidos pelo
fracking ou em decorrência dele representam outro impacto. Eles podem ser
ocasionados pelo próprio fraturamento hidráulico ou pela reinjeção, na rocha,
da água suja que sobe à superfície com o óleo ou gás – uma maneira mais barata
de descartá-la. No estado norte-americano do Texas, por exemplo, o número de
terremotos de magnitude 3 ou maior dobrou de 2021 para 2022, o que cientistas
têm atribuído à reinserção de água no subsolo após o fracking. Pela escala
Richter, a partir do nível 3,5 o tremor começa a ser sentido pela população. Em
Vaca Muerta, na Patagônia argentina, região com a segunda maior reserva
potencial de gás de folhelho no mundo e onde o fracking é feito desde 2011, os
terremotos também prejudicam a vida das comunidades. Um estudo identificou 206
sismos na região entre 2015 e 2020, algo que pode ser considerado uma nova
dinâmica local e tem relação com o fraturamento hidráulico, concluíram os
pesquisadores. Pela mesma razão, o Reino Unido baniu a prática em 2019.
Porém, “os recursos hídricos
são potencialmente os mais sensíveis aos impactos ambientais decorrentes das
atividades de fracking”, de acordo com um caderno da FGV Energia, MME, EPE e
Rede Gasbras, pois elas exigem “quantidades significativas de água doce” e
geram “grandes volumes de rejeitos líquidos contaminados por diversos elementos
e compostos potencialmente tóxicos”. A técnica demanda, segundo alguns estudos,
de 10 milhões a 17 milhões de litros de água para cada poço, o que ameaça a
segurança hídrica das regiões onde é executada, sobretudo nas quais já há
escassez ou em épocas de seca. Além disso, existe o risco de contaminação de
aquíferos, pelos quais passam os furos que miram camadas de rocha muito abaixo
da camada subterrânea de água. Mais provável do que isso, mostra um artigo
científico publicado em 2017, é a contaminação de águas superficiais, como rios
e córregos, por derramamentos ou vazamentos acidentais de fluidos residuais do
fracking.
Todas essas implicações podem
provocar danos à saúde humana. Pesquisa divulgada em março deste ano
identificou que produtos químicos relacionados ao fraturamento hidráulico têm
chegado a aquíferos que alimentam os sistemas de água municipais da Pensilvânia
– considerado um dos epicentros da prática nos EUA –, sendo que o potencial de
contaminação é maior durante o período de pré-produção, quando um novo poço é
perfurado. As autoras do trabalho observaram, ainda, que cada novo poço aberto
a menos de 1 km de uma fonte pública de água potável está associado a um
aumento de 11% a 13% na incidência de partos prematuros e baixo peso no nascimento
de bebês expostos durante a gestação.
O que é o fracking e o que significam recursos não convencionais
Recursos não convencionais
são aqueles extraídos de rochas de baixa permeabilidade, mais difíceis de
explorar do que os reservatórios típicos, que produzem petróleo e gás
convencionais. “Xisto” (shale, em inglês) é o termo usado popularmente para se
referir ao folhelho, uma das formações rochosas não convencionais em que o gás
e o petróleo podem ocorrer. Também existem os reservatórios de arenitos ou carbonatos
“fechados” com petróleo e gás (tigh oil e gas), entre outros.
Segundo a EPE, potenciais
reservas de sete tipos de recursos não convencionais foram mapeadas em quatorze
bacias sedimentares brasileiras, com destaque, em termos de variedade, para as
do Paraná (que se estende por Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, São
Paulo, Paraná e Santa Catarina), Parnaíba (que abrange partes do Pará,
Maranhão, Piauí e Tocantins) e Recôncavo (Bahia).
Em relação ao gás de folhelho
– que fez dos Estados Unidos o maior produtor mundial de gás –, as bacias do
Parnaíba, Paraná, Recôncavo, Solimões (no Amazonas) e Amazonas (no Amazonas,
Pará e Amapá) são as mais promissoras. O Departamento de Informação de Energia
dos Estados Unidos (EIA, na sigla em inglês) coloca o Brasil como o décimo país
com mais recursos em gás de folhelho no planeta.
Para que a operação comercial
desses reservatórios não convencionais seja viável, são necessárias técnicas
mais complexas. Primeiro, o poço é perfurado de maneira vertical até que se
atinja a camada de rocha a ser explorada, que normalmente fica a profundidades
de 1,8 a 3 km abaixo da superfície. A partir daí, a perfuração continua
horizontalmente por distância que varia de 1 a 3 km, e, ao fim desse processo,
o poço é revestido com tubos de aço e cimentado. Depois disso, entra o
fraturamento hidráulico: a injeção de grandes quantidades de água com diversos
produtos químicos (na literatura científica, há registro de mais de mil
componentes químicos já utilizados nas operações) e areia sob alta pressão, que
produz fraturas nas rochas, permitindo que o gás e o óleo antes inacessíveis
fluam para a tubulação e sejam extraídos. (biodieselbr)