Mudança de petróleo para biomassa impulsiona a ‘química verde’
O termo “química verde” existe desde 1991 e foi cunhado por Paul Anastas, um químico da Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) dos Estados Unidos, para designar a terceira onda da química, a qual a humanidade e indústria começariam a vivenciar. As outras duas primeiras ondas ocorreram nos séculos 19 e 20, respectivamente, quando a indústria se movia, primeiro pelo carvão, e depois pelo petróleo. Sem dúvida, um dos principais pontos positivos da química verde – que surgiu para amenizar os impactos ambientais que a própria química causava, além de melhorar a imagem de poluidora que essa ciência apresentava na sociedade – está na busca pela substituição do petróleo e derivados nos mais distintos processos químicos, e também na intensificação do uso de combustíveis renováveis, extraídos da biomassa, que são menos prejudiciais ao meio ambiente.
O principal representante de combustível renovável, no Brasil, é o etanol obtido a partir da cana-de-açúcar, que garante um lugar de destaque do país na área de química verde. Mas há outro uso relevante das matérias-primas renováveis, na produção de polímeros, principalmente o plástico. A Braskem, empresa que tem a Petróleo Brasileiro S/A (Petrobras) como detentora de 49% das ações, começou a comercializar o primeiro “plástico verde”, em 2009, a partir de uma tecnologia que a Petrobras dispõe desde o final da década de 1970, e que passou a ser utilizada mais por questões econômicas do que ambientais. Isto porque o barril de petróleo estava custando cerca de 90 dólares, quando esse novo processo começou a ser implementado. A inovação desse produto está em conseguir eteno a partir do etanol da cana. Em termos químicos, o polietileno verde e o feito com nafta são idênticos. Entretanto, seus impactos são distintos. Enquanto o segundo emite gases poluidores e causadores do efeito estufa, o primeiro retira o gás carbônico da atmosfera. Quando se usa combustíveis fósseis, um insumo é retirado para a superfície da terra, utilizado e descartado na atmosfera. No caso da queima do etanol, parte do gás carbônico é reabsorvido no crescimento da cana. Ao utilizar o petróleo, cria-se um desequilíbrio ambiental, pois só há inserção de CO2 e não há processos equivalentes para retirá-lo da atmosfera.
Jairton Dupont, professor do Departamento de Química Orgânica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um dos 100 químicos mais influentes do mundo na última década, de acordo com a agência internacional Thomson Reuters, e vendedor do Prêmio Conrado Wessel 2010 na categoria Ciência, acredita que o Brasil não leva vantagem em termos de química verde, pois falta pessoal qualificado para trabalhar com ela, não somente em pesquisas, mas nas mais diversas áreas, que vão desde a agricultura até a engenharia e a química propriamente dita. “O Brasil tem algumas linhas de excelência em alguns institutos como a Embrapa e o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), por exemplo. Porém o número é muito reduzido de pessoas trabalhando e pesquisando isso”, afirma. A opinião de Dupont não é compartilhada por Jailson Bittencourt de Andrade, professor do Departamento de Química Geral e Inorgânica do Instituto de Química da Universidade Federal da Bahia (UFBA), para quem o Brasil apresenta vantagens sim, está na dianteira e em destaque nesse setor. O setor químico no mundo inteiro vive uma transição para a sustentabilidade, econômica e ambientalmente, e de saúde.
Embora a matriz energética mundial ainda seja muito baseada no petróleo e seus derivados, ela mostra uma tendência e um mercado crescente para bioenergia, energia obtida a partir de biomassa. De acordo com dados divulgados pelo Ministério das Minas e Energia (MME), em 2006, 87,1% da participação no consumo total de energia no mundo era oriunda dos combustíveis não renováveis, enquanto 12,9% correspondia aos combustíveis renováveis. Em 2008, no Brasil, 45,4% do consumo total de energia era renovável e 54,6% não renovável. “O etanol brasileiro feito da cana é a melhor bioenergia que existe, pois é bastante competitiva em escala mundial, custando somente 50 centavos por galão, e apresenta um rendimento energético muito bom”, explica Andrade.
Outro defensor do incentivo à química verde é Vicente Mazzarella, diretor técnico do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), mas admite que haja gargalos importantes a serem superados. “A biomassa cria empregos, fixa o homem no campo e agrega valor ao produto final”, lembra. Mazzarela é um dos responsáveis pela pesquisa sobre o potencial energético do capim elefante, uma espécie de gramínea original da África, que tem como principais pontos positivos a alta produtividade e os ciclos curtos, apresentando tantas vantagens competitivas para gerar etanol quanto a cana-de-açúcar. Para ele, “a expectativa (em termos de bioenergia) é boa porque se apoia em sustentabilidade, mas o Brasil está atrasado porque os recursos são menores, estão dispersos e não obedecem a uma política ordenada. A União Europeia e os Estados Unidos estão na dianteira, pois têm mais recursos e os recursos são mais ordenados”. As universidades e os institutos de pesquisa têm procurado melhorar o rendimento dos processos de obtenção de álcool e do plantio de cana-de-açúcar, buscando variedades mais produtivas. Em termos de energia proveniente da cana, atualmente, aproveita-se cerca de 1/3 de toda a planta. Essa parcela é processada para obter açúcar ou álcool, e o bagaço da cana está começando a ser mais aproveitado.
Os principais entraves para o potencial bioenergético brasileiro
Na opinião de Andrade, além da utilização de combustíveis e matérias-primas renováveis, é preciso que a indústria migre para um sistema intenso de reuso e reciclagem. “Precisa também de uma mudança cultural, que se propague na população. Melhorias na educação, desde o ensino básico até o superior, são primordiais para que isso aconteça”, completa. Ele acrescenta que “o Brasil precisa de incentivos, isenção fiscal e políticas públicas para tornar os insumos renováveis atrativos. E tudo isso levando em consideração que o impacto da utilização de matéria-prima renovável é global, mas há necessidade de se pensar em soluções regionais para as questões que abrangem a biomassa. A soberania do Brasil depende do desenvolvimento de tecnologias novas e de ponta”. O pesquisador avalia que a mudança de discurso político no Brasil também seja um ponto negativo para implementar a substituição de insumos. Há alguns anos, o governo defendia a importância do uso e da produção de etanol para o desenvolvimento brasileiro, cujo principal expoente está nos carros flex, movidos a álcool e a gasolina. Hoje, acredita-se que a riqueza nacional esteja justamente no melhor modo de se extrair e aproveitar o petróleo presente na camada pré-sal. “Deve-se definir qual agenda será mantida, a do pré-sal ou a da bioenergia”, confirma.
Dupont também acredita que se não houver intervenção do Estado para regulamentar a mudança do petróleo para a biomassa, ela não ocorrerá. “O Brasil tem terras e tem tecnologias para o desenvolvimento de grãos. E isso passa a ser uma vantagem brasileira. Entretanto, o que não há é a transformação dessas commodities em produtos de maior valor agregado”, critica. Ele reitera que o principal ponto crítico está na baixa quantidade de pesquisadores capacitados no país e que a maioria deles está em instituições públicas, que muitas vezes se comportam como repartições, cujos processos são incompatíveis com as necessidades científicas, tecnológicas e de inovação. De acordo com ele, é preciso que ocorra uma mudança também no modo de se fazer e entender a CT&I, nacionalmente. “Há três entraves nessa questão: em primeiro lugar, está a quantidade baixa de pessoal capacitado para fazer ciência e trabalhar com tecnologia e inovação; em segundo, o regramento jurídico incompatível com a necessidade; e em terceiro, a vontade política para fazer uma mudança que traga a possibilidade se competir internacionalmente”, explica.
Mazzarela confirma que o principal entrave para a bioenergia está na questão tecnológica e que a biomassa é uma solução economicamente viável para suprir a demanda por energia renovável e limpa. “A solução vai variar de acordo com a região, o tipo de biomassa e a escala de produção”, diz. Para o pesquisador a substituição da energia não renovável pela renovável se dará em termos políticos, econômicos e tecnológicos: “Econômico porque você tem um contingente grande de pessoas que vivem em torno disso e se cria uma corrente social muito interessante, no contexto social e econômico. Tecnológico porque o Brasil tem certa vantagem e tem que investir nisso, tanto com a cana quanto com o capim elefante. E político porque isso interessa para o Brasil, politicamente”. Na opinião dele, o Brasil tem que encontrar meios de prover melhorias genéticas, pois tem boas condições de solo e clima para aumentar sua produção de etanol.
Financiamento de pesquisas em química verde
Algumas propostas de financiamento acenam com um sinal positivo do governo federal em direção ao incentivo à economia verde. A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), por exemplo, tem investido em pesquisas e inovação tecnológica voltada para a economia verde. Cerca de três bilhões de reais da carteira contratada da empresa são destinados para o tema, entre recursos reembolsáveis e não reembolsáveis, desde 2002, conforme mostra uma análise preliminar divulgada pelo órgão. As áreas de energias renováveis e biocombustíveis, mudança do uso do solo prioritariamente na agroindústria e tecnologias verdes correspondem a mais de 75% do total de financiamentos. Os projetos que têm como principal enfoque a redução de carbono representam R$1,674 bilhão e o valor total de recursos destinados a economia verde tem apresentado um crescimento anual de 20%.
O Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) também financia pesquisas voltadas para a química verde, biocombustíveis e bioenergia. O financiamento se dá a partir dos seguintes macrotemas: 36% agrícola, 19% novos produtos, 16% uso de produtos, 15% industrial de primeira geração e 14% industrial de segunda geração. Entre as iniciativas do Banco, em conjunto com a Finep, destaca-se o Plano Conjunto de Apoio à Inovação Tecnológica Industrial dos Setores Sucroenergético e Sucroquímico (PAISS), que contemplam três linhas diferenciadas de pesquisa: a primeira é voltada para o bioetanol de segunda geração, a segunda tem enfoque nos novos produtos de cana-de-açúcar e a terceira aborda as tecnologias, equipamentos, processos e catalisadores de gaseificação.
Fazer química verde não é apenas substituir nafta por etanol
Essa nova onda da química não envolve apenas substituir um insumo por outro, pois é, na verdade, uma mudança de paradigma científico, em que é preciso buscar procedimentos com menor impacto ambiental durante todo o processo de produção de bens e produtos. Em outros termos, a química verde é o princípio que deve ser utilizado durante os processos, que devem ser pensados sempre em termos ambientais. Sobre a utilização de energia, Dupont exemplifica: “Um desses princípios diz que é preciso minimizar o uso de energia e água durante os processos. Para fazer um pote de iogurte, eu utilizo dez vezes mais energia do que a bebida vai gerar depois, calorias”. Para que esses processos ocorram, atualmente, existem os doze mandamentos ou princípios da química verde, que devem ser seguidos, para minimizar impactos. São eles:
1) Em vez de limpar e tratar resíduos, evite sua formação;
2) Use reações que incorporem ao máximo o material de partida ao produto final, para evitar resíduos;
3) Prefira processos que minimizem o uso e a geração de substâncias tóxicas;
4) Crie moléculas que funcionem sem ser tóxicas;
5) Evite usar solventes; se não der, prefira os menos tóxicos;
6) Economize energia; prefira processos que funcionem a pressão e temperatura ambiente;
7) Use biomassa ou outra matéria-prima renovável sempre que possível;
8) Evite a formação de derivados nas reações, que sempre podem gerar resíduos;
9) Catalisadores aceleram processos e devem ser usados sempre que possível;
10) Desenhe moléculas que, uma vez exercida sua função, se degradem em produtos inócuos;
11) Monitore as substâncias nocivas que podem surgir num processo à medida que elas são formadas, e não ao final da fabricação de um lote de produto;
12) Escolha processos que minimizem o potencial de acidentes, como vazamentos e explosões. (EcoDebate)
Nenhum comentário:
Postar um comentário