A montadora japonesa quer recriar o conceito de automóvel, priorizando
carros elétricos e autônomos. O Brasil, acredite, será uma de suas pistas de
testes para novas tecnologias. Nessa revolução, até o ato de dirigir será
opcional.
Marco Silva, presidente da
Nissan no Brasil: “A maneira como as pessoas compram carros vai mudar, toda a
relação com os clientes vai mudar”.
Yokohama, Japão, última semana de março. A florada
das cerejeiras marca a chegada da primavera ao país. O espetáculo é belíssimo e
poético. Túneis formados por galhos retorcidos e flores rosadas resguardam ruas
e alamedas, enquanto o vento, ainda frio nessa época do ano, sacode gentilmente
as árvores, fazendo cair uma lenta chuva de delicadas pétalas. Para os
japoneses, é tempo de celebração e renovação. É, ainda, quando as crianças
retornam à escola para iniciar o ano letivo, e quando as companhias inauguram
seus anos fiscais.
Na sede da montadora Nissan, a segunda maior do
país, uma fila de garotos e garotas impecavelmente bem vestidos acompanham,
comportadamente, uma espécie de guia pelos andares iniciais do moderno prédio.
São novos funcionários, jovens que acabaram de sair da faculdade e estão
iniciando suas carreiras corporativas na empresa. Nesse primeiro dia, eles
participam de uma série de atividades e eventos introdutórios. É um momento
solene e muito importante em suas vidas – o povo nipônico leva o trabalho a
sério. Essa é uma tradição que se mantém intacta praticamente desde a fundação
da companhia, na década de 1930.
No comando: Hiroto Saikawa assumiu a presidência global da Nissan, após a saída de Carlos Ghosn. Sua missão é romper com o modelo tradicional de automóvel.
A cena remete a um passado distante, mas contrasta
com a experiência que o visitante tem ao adentrar o edifício. No térreo, logo à
direita, há um motor exposto. Mesmo sem conhecimento técnico, nota-se a sua
complexidade tecnológica. Mais adiante, o que se vê é uma constelação de carros
elétricos, híbridos, autônomos, semiautônomos e tudo mais. A sensação que se
tem é de estar diante de uma empresa tradicional, conservadora em alguns
costumes, mas que está se voltando para o futuro.
“A próxima década trará mais revoluções do que as
últimas cinco”, afirmou à DINHEIRO Marco Silva, presidente da Nissan no Brasil,
em sua primeira entrevista desde que assumiu o posto, há dois meses. Em meio a
uma iminente mudança de matriz energética, o mercado automotivo borbulha em
novas tecnologias, modelos de negócio inéditos e até novos concorrentes – vide
a Tesla e o carro autônomo do Google. Mas a Nissan quer se manter à frente das
mudanças e, para isso, está transformando seus carros e, até mesmo, sua forma
de produzir e vender. “A maneira como as pessoas compram carros vai mudar, toda
a relação com os clientes vai mudar”, diz Silva. “E não é algo restrito ao
Japão.”
Os tempos são mesmo de mudanças rápidas. A prova
disso é a dança das cadeiras que está acontecendo na liderança do ranking das
maiores montadoras globais. No ano passado, a alemã Volkswagen ultrapassou a
japonesa Toyota e se tornou a líder em produção de automóveis. Em menos de seis
meses, ela não só perdeu a liderança, como caiu para a terceira posição. Quem
assumiu a segunda colocação foi a Renault-Nissan, a aliança que comanda as
montadoras francesa e japonesa.
Isso aconteceu porque, de um lado, a produção dos
alemães caiu 0,7% entre janeiro e abril, na comparação com o ano passado, para
3,3 milhões de unidades. De outro, a Renault-Nissan cresceu 7,4%, para 3,4
milhões de veículos. E a da Toyota subiu 7,8%, para 3,5 milhões de carros. O
segundo lugar é um importante marco para a companhia franco-japonesa, que tem
como presidente do Conselho de Administração o brasileiro Carlos Ghosn e que,
desde maio de 2016, inclui a também nipônica Mitsubishi. Ghosn foi o presidente
da Nissan até o início deste ano, quando passou o bastão para o japonês Hiroto
Saikawa.
Essa ascensão da Renault-Nissan é consequência de
uma intrincada rede de fatores. Mas o novo posicionamento da Nissan tem um peso
importante. A direção escolhida pela companhia, e que será a grande missão de
Saikawa, é a de romper com o modelo tradicional do automóvel. Sim, ele
continuará a ter quatro rodas e um volante. Mas a relação entre carro e
proprietário, e até entre o veículo e a cidade, será totalmente transformada.
Segundo Silva, a Nissan entende que as pessoas ainda querem dirigir. Mas essa
tarefa deixará de ser uma necessidade e se tornará uma opção.
Ao
mesmo tempo, o carro deixará de ser apenas um meio de transporte para se tornar
uma espécie de repositório de energia, capaz de transformar eletricidade em
movimento, ou iluminar uma casa por até três dias com suas baterias. A essa
estratégia, a companhia deu o nome de “Mobilidade Inteligente”. Seu objetivo é
reduzir a zero as emissões de gases do efeito estufa e também os acidentes, ao
incorporar o motor elétrico e a direção autônoma. Tudo isso deve acontecer em até
dez anos. “Mas os próximos cinco anos serão os mais importantes na história da
indústria”, diz Silva.
Eletrificado: carro elétrico mais vendido no mundo, o Leaf agora conta com um sistema
que permite usar suas baterias para abastecer uma casa ou pequeno comércio.
O carro elétrico está no centro dessa mudança. A
Nissan é a fabricante do veículo movido a eletricidade mais vendido do mundo, o
Leaf. Mas o carro, que se enquadra na categoria de compacto monovolume, é
apenas uma das peças no tabuleiro da empresa. Ele inclui, também, carros de
luxo, utilitários e até esportivos, como o futurista BladeGlider. Seu design é
inovador. O motorista acomoda-se no meio do carro, que conta com espaço para
mais dois passageiros, um de cada lado. Seus 268 cavalos são proporcionados por
cinco módulos de bateria, que aceleram o carro de zero a 100 km/h em cinco
segundos.
É um protótipo, mas que representa o que a Nissan
pensa para o futuro dos veículos de alto desempenho. Ao mesmo tempo, há toda
uma linha de motores, desde os totalmente elétricos até os híbridos e os que
incluem as chamadas células de combustível. Em novembro do ano passado, por
exemplo, a Nissan lançou o e-Power, que utiliza gasolina de um modo diferente.
A tração é proporcionada por um motor elétrico, que tem acoplado outro motor,
este à combustão, responsável por gerar energia e carregar as baterias. Segundo Silva, está claro que a eletricidade será o combustível do futuro.
A maneira como essa energia será gerada e armazenada no carro é que ainda está em aberto. Provavelmente, o mundo irá
conviver, por um tempo, com mais de uma matriz. Diferentes regiões, inclusive,
poderão ter realidades distintas. O Brasil é um candidato natural a adotar com
mais ênfase o modelo de célula de combustível. Essa tecnologia utiliza uma
reação química, a partir do hidrogênio, para produzir energia. Uma das
possibilidades é utilizar o etanol para obter o hidrogênio, o que traz diversas
vantagens para o País. A Nissan trabalha no seu desenvolvimento, mas não deve colocar
a tecnologia no mercado antes de 2020.
A
mudança na matriz energética faz com que toda a tecnologia dos automóveis seja
repensada. Não é exagero dizer que o carro do futuro, ao menos na visão da
Nissan, se parece mais com um iPhone do que com uma Ferrari. A montadora nomeou
essa tendência de “integração inteligente”. A ideia é fazer o veículo interagir
com as pessoas, a exemplo do que faz a Siri, sistema de inteligência artificial
presente nos celulares da Apple. Além disso, o carro irá se comunicar com
outros carros e com as estruturas de trânsito da cidade, por meio de sistemas
de comunicação entre máquinas.
Plataforma tecnológica: o Kicks já conta com equipamentos que, no futuro,
permitirão a direção autônoma. As primeiras unidades produzidas no Brasil
chegaram ao mercado em 02/06/17.
O primeiro passo para isso foi dado e seu resultado
já está no mercado. Trata-se da chamada câmera 360, equipamento que, acoplado
ao veículo, viabiliza a direção autônoma. Desde agosto, o modelo Serena, um dos
mais vendidos no Japão, conta com o sistema ProPilot, voltado para o uso em
estradas. Quando acionado, ele assume a direção do automóvel, mantendo a velocidade,
a distância para os outros carros e, inclusive, lendo as faixas de rolagem e
fazendo curvas.
É uma etapa anterior ao carro completamente
autônomo, já que, por enquanto, ele não é capaz de chegar a um determinado
endereço sozinho. Essa câmera, por sinal, já equipa o modelo Kicks, cujas
primeiras unidades produzidas na fábrica de Resende (RJ) chegaram ao mercado.
“Essa é a plataforma para o carro autônomo”, afirma Silva. Ou seja,
tecnicamente, o País está pronto para receber a tecnologia. O Brasil é um dos
dez mercados que estão sendo utilizados pela Nissan como pistas de testes para
o desenvolvimento dessas tecnologias.
“Lugares com grandes centros urbanos vão receber
essas novidades primeiro”, diz Silva. Mesmo assim, é provável que o País tenha
algumas dificuldade. “Ainda é inviável colocar um carro autônomo nas apertadas
ruas do Rio de Janeiro”, afirma Daniele Schillaci, vice-presidente global de
vendas e marketing da montadora. O ProPilot só funciona em ruas com faixas bem
definidas. De qualquer forma, para Silva, o consumidor brasileiro, atualmente,
é muito bem informado. A pressão do mercado deve acelerar esse processo de
construção da infraestrutura.
Concorrência acirrada
A Nissan não está sozinha nesse plano de eletrificar os automóveis. No
final de abril, a Ford trocou seu CEO, Mark Fields, que ocupava o posto há três anos,
por Jim Hackett, que até então comandava a divisão de soluções em mobilidade da
montadora. Segundo Bill Ford, presidente do conselho da Ford e bisneto do seu
fundador, Henry Ford, a companhia precisava de “um olhar renovado”. Em janeiro,
Ford já havia sinalizado que planejava alguma grande mudança quando afirmou que
o trânsito caótico é uma ameaça aos direitos humanos. As outras grandes
companhias também possuem estratégias avançadas de renovação (confira abaixo).
Esportivo para ligar na tomada: o BladeGlider acelera de zero a 100 km/h em
cinco segundos.
A GM, por exemplo, foi a primeira a lançar um carro
elétrico de baixo custo, o Volt. Há, também, a sombra de uma recém-chegada ao mercado. A Tesla, do sul-africano Elon Musk, foi a primeira a fazer sucesso vendendo um carro elétrico. Recentemente, o valor de mercado da empresa superou o
da GM, a maior montadora americana, ainda que por alguns dias. “Precisamos
alcançar uma economia baseada em energia sustentável, ou vamos ficar sem
combustível fóssil e a civilização vai entrar em colapso”, afirmou Musk, em uma
carta aberta ao mercado. “O quanto antes chegarmos a esse ponto, melhor.”
Mas a prova definitiva de que o carro nunca mais
será o mesmo foi dada no autódromo de Sodegaura, na província de Chiba, a cerca
de uma hora de Yokohama. Nele, a Nissan preparou um evento de apresentação de
seus carros, que contou com jornalistas de várias partes do mundo – a DINHEIRO
foi o único veículo brasileiro presente. Na entrada da sala de convenções,
foram estacionados dois Leafs. Eles não estavam ali apenas para exposição. Os
carros eram as únicas fontes de energia disponíveis.
Ou
seja, todo o evento, que durou cerca de quatro horas, foi abastecido pelas
baterias dos automóveis. Isso é possível graças ao sistema Leaf to Home. A
ideia é que o dono do carro instale em sua casa uma espécie de inversor. À
noite, quando a energia é mais barata, pelo menos em alguns países, o carro é
carregado. Quando o Leaf não estiver sendo utilizado, ele devolve a energia
para a casa. Segundo a Nissan, uma carga completa é capaz de abastecer uma
residência tradicional japonesa por até três dias. De carro, só tem as rodas.
(istoedinheiro)
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