Dono da maior reserva
hídrica do planeta, Brasil sofre com mau uso, poluição e descontrole.
Aproximadamente 71% da
superfície do planeta é coberta por água – substância essencial à vida, segundo
uma das mais elementares noções da biologia –, mas sua disponibilidade para
consumo é apenas aparente, já que cerca de 97% dela está nos mares. Dos 3%
restantes, mais da metade encontra-se em geleiras, localizadas no hostil
ambiente das calotas polares. E a parcela restante, distribuída de forma
desigual pelo mundo, sofre cada vez mais com as pressões exercidas pelo aumento
populacional – pano de fundo de relevantes disputas atuais relacionadas ao
“ouro líquido”.
Nesse cenário, o Brasil
pode se considerar um favorecido. Seu território possui a maior reserva
planetária de água doce superficial – 12% do total – e concentra ainda boa
parte dos mananciais subterrâneos. Além disso, as riquezas do país incluem
reservas não plenamente catalogadas: descobertas recentes indicam que o
aquífero Alter do Chão – sob os estados do Pará, Amapá e Amazonas – pode ser
duas vezes mais volumoso que o nosso já grandioso aquífero Guarani – e,
possivelmente, até mesmo o maior do mundo.
A festejada abundância,
no entanto, esconde mazelas e contradições que afetam milhões de pessoas. No
país das águas, informa o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), 23% dos municípios conviveram, em 2008, com o racionamento do insumo –
cuja qualidade é regular, ruim ou péssima em 25% dos pontos monitorados pela
Agência Nacional de Águas (ANA). Para piorar, os piores índices identificados
pela ANA estão justamente onde vive mais gente, nas bacias hidrográficas que
abastecem regiões metropolitanas. Também preocupa a vulnerabilidade dos
brasileiros à falta – ou ao excesso – de chuvas: em 2010, nada menos que 19%
dos municípios decretaram emergência ou calamidade pública devido a enchentes
ou seca.
Esses e outros
indicadores remontam a enormes gargalos na gestão dos recursos hídricos,
agravados pelo fato de que as instituições reguladoras previstas em lei ainda
nem foram plenamente implantadas. Tamanha aridez institucional ajuda a explicar
a frouxidão de políticas relacionadas a algumas das necessidades mais básicas
da população – como, por exemplo, o acesso a água e a esgoto tratados.
A falta de controle sobre as
águas, por outro lado, também permite que se imponha a construção de piscinões,
transposições e outros projetos faraônicos de engenharia, cercados de
interesses políticos e empresariais – e que visam, em grande medida, suprir
demandas criadas pelo desperdício e pela ausência de planejamento urbano.
Contingentes de desalojados por enchentes e por grandes obras, ou ainda de
pessoas doentes devido à falta de saneamento, além de projeções de escassez
futura, são apenas algumas das consequências dessa preocupante realidade.
Sede dos rebanhos
Os desafios para
racionalizar o uso das águas remetem, em grande medida, ao maior usuário dessa
matéria-prima no Brasil: a produção rural. Segundo a ANA, são utilizados na
agropecuária 81% dos recursos oficialmente consumidos a partir de rios e
mananciais subterrâneos. Somente o volume destinado a saciar a sede dos
rebanhos – 12% do total – supera o empregado no abastecimento de todas as
populações urbanas do país.
Porém, o principal
devorador dos recursos hídricos é outro: a irrigação agrícola. Atualmente, o
Brasil possui 4,5 milhões de hectares de plantações com sistemas irrigados –
menos de 10% das áreas de lavoura no país. Esse percentual minoritário, no
entanto, utiliza uma enorme parcela – 69% – do consumo oficial de águas
superficiais e lençóis freáticos.
A irrigação está em
franca expansão em terras brasileiras – desde 1970, sua abrangência
multiplicou-se em quase seis vezes. E, nos próximos anos, o governo federal
pretende acelerar ainda mais essa conversão tecnológica: a meta é dobrar, até
2015, a área ocupada pelos agricultores que fazem uso da rega artificial. Para
tanto, foi anunciada, em maio de 2011, a suspensão da cobrança de PIS/Cofins na
compra de equipamentos para esse fim.
Em comparação com os
plantios que dependem das chuvas, as culturas irrigadas elevam enormemente a
produtividade de uma fazenda. Sua adoção, portanto, pode ajudar a frear o
avanço agrícola sobre as florestas. No entanto, parte desses agricultores está
em regiões sensíveis à escassez de água, como o semiárido nordestino – onde já
existem conflitos pelo acesso ao insumo opondo a atividade e comunidades
rurais.
Grande parte do consumo
no setor, vale ressaltar, é puro desperdício. Demetrios Christofidis,
coordenador-geral de Eficiência da Agricultura Irrigada no Ministério da
Integração Nacional, estima que 35% do que é captado se perca em vazamentos nos
canais condutores e em práticas inadequadas nas lavouras. “Muitas vezes, a água
aplicada no solo só faz evaporar”, afirma. Um dos objetivos do ministério, diz
ele, é oferecer crédito para conversões a tecnologias mais eficazes, nos
contextos cabíveis – como a irrigação por gotejamento na zona das raízes das
plantas.
Para além do consumo de
água, diversas outras práticas agropecuárias causam impacto nos recursos
hídricos. Lavouras e pastagens estão entre os principais motores da erosão dos
solos – cujos sedimentos, carregados pelas chuvas e ventos, já levaram ao
‘entupimento’ e à morte de diversos rios. O corte ilegal de matas ciliares,
além de contribuir para o assoreamento, também facilita a contaminação dos
mananciais por agrotóxicos. Outra irregularidade comum é a presença de rebanhos
nas margens dos corpos de água, o que ajuda inclusive a disseminar doenças
parasitárias.
Nesse contexto, a reforma
do Código Florestal, em pauta no Congresso, está no olho do furacão dos debates
sobre o futuro das águas nacionais. Relator das mudanças na Câmara, o deputado
Aldo Rebelo (PCdoB/SP) gerou polêmica ao delegar maior autonomia aos estados
para legislarem sobre as áreas de preservação permanente (APPs) – onde a lei
atual proíbe a supressão de matas nativas. São consideradas APPs as matas
ciliares e os topos de morros, entre outros trechos de vegetação importantes
para a proteção dos mananciais. A votação definitiva das alterações só deverá
ocorrer em março de 2012.
A queda de braço entre
ruralistas e ambientalistas também envolve a redução da reserva legal –
percentual de cada propriedade rural que, segundo a lei, deve manter preservada
a mata original. “Muitos estudos têm demonstrado que entre 20% e 30% da água na
atmosfera provém da transpiração dos vegetais”, destaca José Galizia Tundisi,
membro da Academia Brasileira de Ciências e presidente do Instituto
Internacional de Ecologia. Ou seja, caso incentive aumentos drásticos na
derrubada de florestas, a nova lei pode impulsionar alterações severas no
regime das chuvas. “Isso pode pôr em risco, portanto, a própria produção
agrícola”, diz ele.
Impactos industriais
Segundo a ANA, as
indústrias respondem por 7% do consumo nacional de recursos hídricos. Esse
percentual, no entanto, concentra-se justamente onde é maior a pressão sobre as
águas, já que nas três maiores regiões industriais – sudeste, sul e nordeste,
lar de 84% da população – estão apenas 16% dos mananciais. Setores como o
siderúrgico, petroquímico, de celulose, construção civil, alimentos e bebidas,
entre outros, se destacam no ranking das empresas hidrointensivas que operam
nesses locais.
Para reduzir as captações
hídricas do setor – bem como a poluição pelo despejo de efluentes nos rios –,
exigências ambientais tornam cada vez mais vantajoso o reúso da água no chão de
fábrica. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) estima que
ao menos 80% do parque fabril paulista já tenha adotado ações para reutilização
desse recurso e diminuição do consumo.
O setor sucroalcooleiro é
um dos que anunciam boas notícias: dados compilados pelo Centro de Tecnologia
Canavieira indicam que, entre 1997 e 2004, caíram de 5,1 litros para 1,8 litro
por tonelada de cana processada as captações de recursos hídricos nas usinas de
açúcar e álcool. Isso foi alcançado graças a medidas como a reutilização do
vapor industrial e o aproveitamento do líquido da cana-de-açúcar – que contém
70% de água.
Apesar das melhorias, o
segmento industrial reclama da falta de apoio para a adoção de tecnologias mais
eficientes. “É difícil encontrar financiamento em condições atrativas para
implementar ações que reduzam o consumo de água”, revela Percy Soares Neto,
coordenador da Rede de Recursos Hídricos na Confederação Nacional da Indústria
(CNI).
O déficit de medidas
concretas para o setor inclui o tratamento de resíduos industriais, ainda um
relevante fator da degradação dos rios metropolitanos. “O rio dos Sinos é
considerado o mais poluído da região de Porto Alegre, pois possui um grande
parque fabril, com destaque para a produção coureiro-calçadista”, exemplificam
os Indicadores de Desenvolvimento Sustentável 2010, do IBGE.
Acidentes também
contribuem significativamente para a poluição de corpos de água, e nesse
contexto chamam a atenção os casos recorrentes ligados à indústria mineradora.
Em janeiro de 2011, por exemplo, o rompimento de uma barragem de rejeitos
carregou toneladas de terra para o rio Corumbataí, em São Paulo, prejudicando o
abastecimento de água de mais de 200 mil pessoas em municípios como Piracicaba
e Rio Claro. “Nosso sistema de fiscalização ainda precisa ser muito
aprimorado”, ressalta Marcus Polignano, coordenador-geral do Projeto Manuelzão
– iniciativa multissetorial para a revitalização da bacia hidrográfica do rio
das Velhas, em Minas Gerais, também sob influência da mineração.
Os minerodutos, que
utilizam grandes quantidades de água para o transporte da matéria-prima, são
outra fonte de polêmicas. Em 2010, alegando perigo de escassez de recursos
hídricos, prefeitos do vale do Jequitinhonha, na borda do semiárido mineiro, se
manifestaram publicamente contra práticas desse tipo no âmbito do Projeto
Salinas, destinado à exploração de ferro na região.
E para além das grandes
empresas, pequenas e médias indústrias ainda estão, em grande medida, à margem
dos debates e avanços na gestão das águas. Segundo Tundisi, os impactos atuais
do segmento merecem uma atenção prioritária. “Trata-se de uma poluição difusa,
proveniente de milhares de pequenos empreendimentos. A soma de todos eles,
porém, representa um enorme volume de efluentes”, argumenta.
Apagão sanitário
Assim como os resíduos
industriais, também representam um enorme volume de efluentes os dejetos
domésticos despejados, in natura, nos rios do país. Os últimos dados do Sistema
Nacional de Informações sobre Saneamento indicam que apenas 44,5% da população
está conectada à rede de esgotos – e, do total coletado, só 38% são tratados.
Segundo diversos especialistas, tal conjuntura é hoje a principal responsável
pela poluição dos mananciais brasileiros.
A falta de saneamento
básico não afeta somente os recursos hídricos, mas também as pessoas que deles
dependem. Trata-se de um dos mais graves problemas de saúde em nível
global – mais da metade dos leitos hospitalares, diz a Organização das Nações
Unidas (ONU), são ocupados por pessoas que adoeceram devido a água contaminada.
Esse quadro tenebroso não exclui o Brasil, onde a Organização Mundial da Saúde
(OMS) estima que 28 mil pessoas morram por ano de enfermidades – parasitoses,
hepatites etc. – ligadas à má qualidade do insumo. São 35 milhões os
brasileiros sem abastecimento de água pela rede geral.
“O contato prolongado com
precárias condições de saneamento expõe as crianças a doenças que prejudicam
sua capacidade de interação social e seu desenvolvimento cognitivo”, atesta
relatório do Instituto Trata Brasil – que coordena ampla mobilização de
entidades pela ampliação do serviço. Segundo a entidade, é de 18% a diferença
de aproveitamento escolar entre estudantes com e sem acesso ao saneamento
básico – problema também relacionado a 11% das faltas dos trabalhadores.
Em 2011, o governo
federal anunciou a meta de, até 2030, praticamente universalizar o acesso à
água potável, além de elevar para 88% o tratamento do esgoto coletado. O
saneamento básico é uma das prioridades do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC), mas projetos para o setor estão entre os que mais custam a
sair do papel. Em agosto, o Ministério das Cidades informou que as obras
sanitárias do PAC estavam com execução média de 40%.
Lentidão no licenciamento
ambiental e divergências sobre a titularidade do serviço são, segundo o
ministério, algumas das explicações para a marcha lenta. Atualmente, o Supremo
Tribunal Federal (STF) delibera se, nas regiões metropolitanas – onde vive
quase metade da população –, cabe aos estados ou aos municípios fornecer água e
esgoto tratados. “O saneamento básico é historicamente mal regulado no Brasil”,
opina André Monteiro Costa, pesquisador do Departamento de Saúde Coletiva da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Fora das metrópoles, onde
a responsabilidade municipal está claramente definida, é baixo o acesso de
prefeitos aos recursos do PAC – em grande medida, por falta de preparo técnico
na elaboração de projetos. A Política Federal de Saneamento Básico, aprovada em
2007, obriga-os a criar planos de gestão para o saneamento, sob pena de fechar
a torneira dos repasses federais aos municípios omissos. Inicialmente, tais
planos deveriam ser concluídos até 2010. O prazo, no entanto, foi prorrogado em
quatro anos pelo governo Lula.
A letargia atravanca a
participação da iniciativa privada no setor, segundo Paulo Roberto de Oliveira,
diretor presidente da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de
Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon). “Se não estiver amparada em um
plano de saneamento aprovado, a lei não permite a concessão desse tipo de
serviço”, explica.
De acordo com a Abcon,
empresas privadas respondem pelo atendimento de 12% da população urbana que
conta com o serviço no país – percentual que dobrou entre 2005 e 2010. A
privatização do setor, porém, historicamente dominado pelas estatais, enfrenta
diversas resistências – no Rio Grande do Sul, discutem-se inclusive alterações
na Constituição local para proibir tal prática. Ainda de acordo com a Abcon, a
iniciativa privada pode elevar o total de água e esgoto tratados sem prejudicar
os mais pobres – o temor de cobranças proibitivas é uma das bandeiras dos
opositores. “Em todas as nossas concessões também existem tarifas diferenciadas
para a população carente”, pondera Oliveira.
Além da abrangência
insatisfatória, vale lembrar que o saneamento brasileiro também esbarra na
ineficiência. Um dos principais problemas é o desperdício: dados oficiais
indicam que, de cada 100 litros de água captados para distribuição, 42 se
perdem em vazamentos ou devido a outras falhas técnicas. O índice supera em
muito o de países como Estados Unidos (12 litros) e França (9 litros).
Gestão e cobrança
A Política Nacional de
Recursos Hídricos, sancionada em 1997, é o principal marco regulatório dos
mananciais brasileiros. É ela que estabelece a necessidade de outorga para
captação em rios e aquíferos, lançamento de esgotos e demais resíduos, criação
de hidrelétricas e outros usos que alterem a qualidade das águas. Além disso,
ela define as responsabilidades da União, estados e municípios relativas ao
tema.
Um dos principais
instrumentos de gestão criados por essa lei foram os Comitês de Bacia
Hidrográfica. Compostos por poder público, sociedade civil e usuários dos
recursos hídricos locais, esses órgãos têm como função, na lógica do
gerenciamento participativo, arbitrar conflitos e definir prioridades no
aproveitamento das águas sob sua jurisdição. Passados 15 anos, no entanto, os
comitês ainda engatinham. “Hoje temos poucos funcionando, e aqueles que existem
são ruins”, avalia Paulo Canedo, responsável pelo Laboratório de Hidrologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Para estimular o uso
racional do insumo, aos comitês é facultado o direito de cobrar de indústrias,
agricultores e empresas de saneamento pelo uso dos recursos hídricos locais.
Até o fim de 2010, segundo a ANA, a cobrança – aplicada tanto à captação de
água quanto ao despejo de efluentes – tinha sido estabelecida em 20 bacias
hidrográficas, concentradas nos estados de Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro
e São Paulo.
A adoção dessa prática
enfrenta contundente oposição do setor agropecuário. Jairo Lousa, representante
da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) no Conselho Nacional
de Recursos Hídricos (CNRH), lembra que os agricultores não definem o preço de
suas commodities – e, portanto, não podem repassar custos. “A irrigação é o
setor com maior probabilidade de ser excluído das bacias onde a cobrança for
instituída”, projeta. Até o momento, onde há a taxação, atividades rurais
receberam significativos descontos na tarifa em comparação com a indústria e o
saneamento.
Mesmo com a prerrogativa
arrecadatória, persistem queixas sobre a real efetividade dos comitês nos
embates com a máquina estatal. “O poder público finge que ouve, mas não cumpre
nossas decisões”, reclama Miron da Cunha, vice-presidente do Comitê da Bacia
Hidrográfica do Alto Tietê, na região metropolitana de São Paulo. Um dos
maiores exemplos dessa realidade é a polêmica transposição do rio São Francisco
– obra iniciada pelo governo Lula apesar da oposição declarada do comitê que
gere suas águas.
Decisões verticalizadas e
miopia frente às demandas locais ajudam a explicar acirradas disputas hídricas
existentes hoje no Brasil – onde outorgas concedidas pelo Estado, em vez de
sanar conflitos, por vezes chancelam sobreúsos de rios e prejuízos ao
abastecimento de comunidades pobres. Segundo Roberto Malvezzi, da Comissão
Pastoral da Terra (CPT) – ligada à Igreja Católica – é o que ocorre no rio
Salitre, que corta o semiárido baiano. “Lá existem populações revoltadas, que
derrubam os postes de energia para evitar o bombeamento de água para as
fazendas de irrigação”, conta. “As pessoas preferem ficar sem energia a ficar
sem água.”
Um levantamento da CPT
registrou 87 conflitos por água no Brasil em 2010, envolvendo quase 200 mil
pessoas. Grande parte deles diz respeito à construção de hidrelétricas –
somente a de Belo Monte, pelas estimativas oficiais, desalojará 20 mil
indivíduos. A demanda por novas usinas, segundo especialistas, poderia diminuir
consideravelmente com medidas de combate ao desperdício – estimativas apontam
que as perdas na transmissão e distribuição chegam a 18% do total gerado pela
matriz energética nacional.
Abaixo da superfície,
também há muitos problemas. Os aquíferos são largamente utilizados em várias
regiões do país: em São Paulo, abastecem, total ou parcialmente, 75% dos
municípios. Tamanha importância, no entanto, contrasta com a caótica gestão do
recurso, a ponto de serem clandestinos, segundo estima Ricardo Hirata, diretor
do Centro de Pesquisas de Águas Subterrâneas, 70% dos poços perfurados em
território paulista.
“Como tais águas não são
visíveis, a percepção da existência de problemas nessa área é muito pequena”,
diz Hirata. É o que acontece, por exemplo, com a silenciosa contaminação dos
solos – e, consequentemente, dos lençóis freáticos. No estado de São Paulo, há
catalogadas quase 3,7 mil áreas contaminadas, sendo os postos de combustíveis
(79%) e as atividades industriais (13%) os principais responsáveis por elas.
Horizonte incerto
Poluição de mananciais,
assoreamento de corpos de água e sobreúso dos recursos disponíveis. Cenários
que, a médio e longo prazos, podem afetar drasticamente as reservas
superficiais e subterrâneas do país. Ribeirão Preto (SP), totalmente dependente
do aquífero Guarani, é um exemplo: o rebaixamento local dos lençóis freáticos
já levou a restrições severas, impostas pelo município, à perfuração de novos
poços.
Ao rol de perigos
imediatos soma-se um fator talvez ainda mais grave para o futuro dos recursos
hídricos: as mudanças climáticas. Um dos potenciais impactos do aquecimento
global no Brasil é o aumento da evaporação no semiárido, diminuindo ainda mais
as reservas de água no bioma. Já nas zonas costeiras, a elevação do nível do
mar pode infiltrar água salgada em reservatórios doces, afetando a potabilidade
dos insumos disponíveis.
Além disso, simulações
mostram que maiores temperaturas intensificarão eventos extremos, como secas e
enchentes – fenômenos que, na conjuntura atual, já provocam enormes estragos.
Somente em Santa Catarina, segundo a Defesa Civil estadual, as chuvas de
setembro último desalojaram ou desabrigaram 178 mil pessoas – quase 3% da
população.
“O clima atual já mostra
que o Brasil precisa ter cuidado com esses tipos de evento”, analisa Alfredo
Ribeiro Neto, vice-coordenador de Mudanças Climáticas e Recursos Hídricos da
Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais (Rede Clima).
Nesse contexto, diz ele, o enfrentamento dos desafios futuros é comprometido,
em grande medida, por problemas já existentes: o atraso na criação de
infraestruturas que reduzam a vulnerabilidade da população à falta de água,
assim como no estabelecimento de uma política de ocupação racional do solo, que
retire pessoas de áreas sujeitas a deslizamentos e enchentes.
Segundo Miron da Cunha,
muitos gestores seguem na contramão de tais diretrizes, promovendo urbanização
– asfaltamento de ruas, construção de conjuntos habitacionais etc. – em áreas
de manancial ocupadas por moradias precárias. E, na sequencia, realizam obras –
como piscinões, barragens etc. – incapazes de conter as enchentes causadas pela
impermeabilização do solo. “O poder público é leniente”, denuncia.
Nem tudo, porém, são
notícias ruins. No nordeste, Ribeiro Neto acredita que os investimentos em
cisternas e grandes reservatórios reduziram fortemente a vulnerabilidade da
população às estiagens. Essa conjuntura colaborou para mudar radicalmente o
panorama histórico dos flagelados no semiárido. “Antigamente, as secas levavam a
migrações em massa”, descreve. “É um tipo de situação que já não acontece
mais.”
O líquido da discórdia
Os conflitos relacionados
à água são quase tão antigos quanto a história das civilizações. Essa marca
belicosa está impressa até mesmo na língua portuguesa: o termo “rival” – do
latim “rivalis” – designa originalmente aqueles que dividem o fluxo de um mesmo
rio.
Na Mesopotâmia, há 4,5
mil anos, o precioso líquido foi elemento decisivo em uma das primeiras guerras
de que se tem notícia, quando a cidade-Estado de Lagash desviou o curso do rio
Eufrates, afetando o abastecimento do reino vizinho de Umma. O próprio Código
de Hamurábi, uma das primeiras leis escritas, já previa sanções aos
agricultores que, por negligência, inundassem plantações vizinhas.
Muitos séculos depois, os
recursos hídricos permanecem na agenda das instabilidades globais. Somente na
década passada, segundo o Pacific Institute – entidade americana que conduz
pesquisas sobre meio ambiente e segurança internacional –, ganharam vida cerca
de 60 cenários de violência e tensão social ligados ao insumo. Muitos deles
envolveram disputas tribais pelo controle de fontes de irrigação agrícola –
algo que, em 2010, levou à morte de mais de 200 pessoas somente no Paquistão.
Os conflitos não se
restringem a insurreições locais e efêmeras. Secas e desertificação de áreas
também ajudam a explicar eventos como a guerra civil que, desde 1955, aflige o
Sudão. No país africano, animosidades étnicas foram impulsionadas pelo avanço
de pastores árabes do norte, em busca de água para seus rebanhos, nas terras
tradicionais de agricultores negros do sul.
Além de disputas por
posse, os recursos hídricos provocam dores de cabeça em razão de seu potencial
uso como armas de guerra. Temores desse gênero assombram governantes
sul-coreanos desde a construção, na década de 1980, da barragem de Geumgang, na
Coreia do Norte – cuja abertura poderia até mesmo inundar a capital Seul.
Segundo a ONU, 40% das
pessoas vivem em bacias hidrográficas comuns a dois ou mais países, e o
crescimento populacional – hoje de 80 milhões de pessoas ao ano – aumentará a
pressão sobre esses recursos. A entidade estima que, até 2030, a demanda por
água possa superar a oferta em 40%.
O Brasil não está imune a
tensões com seus vizinhos. Nos últimos anos, autoridades bolivianas vêm
manifestando insatisfações devido à falta de garantias relacionadas às obras
hidrelétricas no rio Madeira, na fronteira entre os dois países. Inundações,
diminuição dos peixes e o crescimento da malária em seu território são alguns
dos temores explicitados por governantes e ambientalistas da Bolívia.
(ecolnews)