Anos depois do desastre no
Japão, o jogo da energia atômica ficou mais difícil. O Brasil terá de rever
planos e gastar mais para continuar nele.
Operação de resfriamento dos
reatores da central atômica de Fukushima.
Depois de um passeio de três
anos pelo Oceano Pacífico, chega à Costa Oeste dos Estados Unidos, até abril, a
primeira leva de detritos radioativos arrastados da usina de Fukushima, no
Japão. Os detritos, conduzidos pela correnteza, foram para o mar em 2011,
depois de a usina ser danificada por um terremoto seguido de uma onda gigante.
O nível de radiação que chega ao litoral americano não oferece perigo, mas
serve de lembrete incômodo – as consequências de acidentes nucleares duram
muito e chegam longe. O problema original nem ao menos foi contido. Em
Fukushima, vazamentos de água radioativa da usina para o mar ocorrem até hoje.
O pior dos últimos seis meses aconteceu em fevereiro, quando 100 toneladas de
água contaminada foram para o oceano. Tudo por causa de um desastre natural que
parecia muito improvável.
Na era pós-Fukushima, o jogo
da energia nuclear passou a ter regras mais duras. “A primeira fase de resposta
a Fukushima foi pensar nas questões óbvias, com base no que aconteceu lá –
temos de garantir que salas de controle e geradores não sejam inundados”, diz o
britânico Steve Thomas, professor de política energética na Universidade de
Greenwich e ex-consultor da Eletronuclear. “A segunda fase é mais lenta. Exige
que você considere possibilidades que antes eram impensáveis.” O Brasil, com
suas duas usinas nucleares, terá aprendido a lição?
A central nuclear de Angra
dos Reis, no Rio de Janeiro, onde ficam as duas usinas brasileiras, pertence à
estatal Eletronuclear. A companhia aplica, desde o fim de 2011, um Plano de
Resposta a Fukushima. Entre as medidas estão o reforço de estruturas de
contenção para o caso de deslizamentos (maior risco na região, chuvosa e de
relevo acidentado) e simulações de desastres naturais mais pessimistas. Está
nos planos a instalação de um reservatório de água, bombas e compressores para
resfriar o reator nuclear em caso de acidente grave (o desastre de Fukushima
piorou quando a onda gigante interrompeu o sistema de resfriamento). O
investimento da Eletronuclear no aumento de segurança passa dos R$ 50 milhões,
e o plano não tem prazo para conclusão. Até o momento, ele não tratou de
algumas questões fundamentais.
Uma delas é o pequeno alcance
do plano de emergência. Ele prevê remover a população num raio de 5 quilômetros
da central nuclear para abrigos perigo somente próximos, a 15 quilômetros
do local. Isso atende ao mínimo recomendado pela Agência Internacional de
Energia Nuclear. Mas a maioria dos países com geração nuclear de energia adotou
procedimentos de emergência mais abrangentes. “Uma pesquisa de 2012 com todas
as usinas da Europa, o FlexRisk, concluiu que um acidente severo exige medidas
numa distância de 300 quilômetros. Se ocorrer um acidente desses em Angra, o
plano de emergência falha”, diz o engenheiro nuclear Jailton Ferreira,
funcionário da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). Ferreira lembra que
a usina Angra 2 adota como referência a usina “gêmea” de Grafenrheinfeld, na
Alemanha. “Não há por que não fazer logo, para Angra 2, um estudo equivalente
ao que foi feito para a usina alemã. Temos no Brasil os dados, o software e o
computador necessários”, afirma.
Um alerta semelhante é feito
pelo engenheiro Célio Bermann, professor do Instituto de Eletrotécnica e
Energia da Universidade de São Paulo (USP). Ele considera a região de Angra dos
Reis inadequada para abrigar usinas nucleares, por razões variadas – há poucas
vias de escape, as chuvas volta e meia bloqueiam as estradas, e o trânsito de
turistas é intenso. Por isso, Bermann considera má ideia construir a usina
Angra 3, com previsão de conclusão em 2018. Para piorar, o projeto da usina é
antigo, dos anos 1970. Isso deveria ser compensado com mais investimento e
planejamento para emergências.
Por
sua natureza peculiar, o setor de energia nuclear tem de trabalhar com cenários
catastróficos, obras complexas e planejamento com prazos muito longos. As
falhas no acidente da usina de Three Mile Island, nos EUA, em 1979, um dos
piores da história, só foram compreendidas cinco anos depois. Só hoje há usinas
em construção que embutem o aprendizado com o desastre de Chernobyl, na
Ucrânia, em 1986. Por isso, toda lição importa muito. A usina Angra 1 também
tem uma “gêmea”, a usina americana de Kewaunee, no Wisconsin. Ela foi desligada
no ano passado, mas contava com procedimentos de emergência mais
impressionantes que sua irmã brasileira (leia no quadro a comparação dos planos de
emergência das usinas brasileiras e estrangeiras).
Nos Estados Unidos, a área de
evacuação foi estendida de 5 quilômetros ao redor da usina para 16 quilômetros.
Os planos de emergência também incluem medidas para um raio de 80 quilômetros,
a fim de evitar que a população consuma alimentos e água contaminados. As
instruções para os habitantes da área ao redor da usina de Kewaunee,
disponíveis na internet, incluíam detalhes como nomes das escolas a evacuar e
orientação para que os pais não tentassem buscar as crianças, a fim de evitar
congestionamentos. O poder público se encarregaria de levá-las, de ônibus, a
pontos de encontro predeterminados. As instruções nos EUA e na Alemanha chegam
a minúcias. Explicam como seria a distribuição de pílulas de iodo, para evitar
o envenenamento radioativo, e o que fazer com animais domésticos, já que eles
não são aceitos em abrigos coletivos de emergência.
A população ao redor das
usinas de Angra também tem material instrutivo, mas com orientações mais vagas
e em tom infantilizado (em parte do material, em forma de história em
quadrinhos, um personagem chamado Zé Elétrico dá explicações a crianças). Além
das instruções claras e do plano de evacuação mais abrangente, os EUA avaliam a
tecnologia e os procedimentos em suas 100 usinas nucleares. Destinaram US$ 2
bilhões a melhorias de segurança naquelas em que isso for necessário. A
presidente da Comissão Reguladora de Energia Nuclear dos EUA, Allisson
Macfarlane, resume bem a situação: “Fukushima foi um grito de alerta não
somente para os EUA, para o setor e para esta Comissão Reguladora. Foi um grito
de alerta para o mundo”. A França elevou as exigências de segurança, e seu
cumprimento, nas 58 usinas do país, deverá custar € 10 bilhões – uma quantia
nem tão exagerada, dado que a França exporta € 3 bilhões em energia elétrica
todo ano. O governo alemão reagiu de forma mais extrema e decidiu desligar suas
17 usinas nucleares até 2022.
O vazamento de água
radioativa de fevereiro e a chegada dos detritos contaminados ao litoral dos
EUA tornam o assunto difícil no Japão. O primeiro-ministro, Shinzo Abe, mesmo
neste momento ruim, apresentou o rascunho da nova política energética do país.
Provocou polêmica. Ele quer religar os 58 reatores nucleares japoneses (todos
foram desligados após o desastre de Fukushima) e apenas diminuir o papel da
energia nuclear na matriz de energia japonesa. Segundo a proposta, as usinas
nucleares mantêm um papel importante no futuro de um país pobre em opções
energéticas.
No mundo todo, incluindo o
Brasil, o aumento de custo com as novas medidas de segurança é inevitável. “A
energia gerada em Angra chega a ser 50% mais custosa que a média no país. Com a
tecnologia de segurança mais moderna, os reatores ficam mais caros, e o custo
vai para o consumidor”, diz o físico José Goldemberg, especialista em energia e
ex-reitor da Universidade de São Paulo.
O
Brasil já sofreu duramente as consequências de se aventurar numa fronteira
tecnológica sem aplicar a seriedade e o dinheiro necessários. Em 2003, uma
falha num Veículo Lançador de Satélites provocou uma explosão no Centro de
Lançamento de Alcântara, no Maranhão. Morreram 21 pessoas na tragédia. Nem por
isso o Brasil deveria abandonar seu programa espacial. Da mesma forma que
deveria manter seu programa nuclear pacífico, seguindo os passos de Estados
Unidos, França, Japão e outras nações desenvolvidas. Essa forma de geração não
chega a ser crucial para o Brasil, atualmente. Corresponde a 3% da capacidade
nacional. Sabe-se que o país tem muito a produzir a partir de outras fontes,
como ventos, sol, marés e resíduos orgânicos. Nada disso significa que o Brasil
deva dispensar a energia nuclear. Trata-se de uma fonte com imenso potencial de
expansão e comparativamente limpa. Ela gera resíduos em volume pequeno e
administrável. Trata-se também de uma frente de desenvolvimento tecnológico com
outras aplicações, além da energética. O país deveria continuar no jogo – mas
ciente de que ele se tornou mais sério.
(globo)