“É previsível que, em um futuro próximo, muitos processos industriais
adotem a água como meio de reação. A água também participa de novos processos
de produção de energia e poderá tornar-se importante na engenharia ambiental.
Está nascendo uma nova química”, enfatiza.
O título desta matéria, além de ousado, parece inverossímil. Como a
água, substância incolor, inodora e não comburente, mitigadora da sede de
humanos e animais, garantidora do crescimento das plantas e da subsistência de
animais aquáticos, utilizada para extinguir o fogo, pode vir a substituir
derivados do petróleo e contribuir para a despoluição e sustentabilidade da
Terra?
Comprovações experimentais dos últimos 20 anos têm mostrado que processos de síntese de substâncias orgânicas, antes apenas realizados em solventes voláteis nocivos à saúde e ao meio ambiente, agora podem ser realizados com o emprego da água. Esses estudos indicam que a utilização da água leva a aumentos muito significativos na velocidade das transformações e, em consequência, otimiza a utilização de plantas industriais e diminui os gastos com energia e custos de produção. Mais que isso: processos que as teorias vigentes apontavam impossíveis tornaram-se viáveis com a água. O emprego inovador dessa substância descortina ainda a possibilidade de haver novos processos de produção e de novos produtos, almejados por uma população mundial já grande e crescente em que cada vez mais pessoas deixam o nível de miséria e buscam uma qualidade de vida melhor. A partir da água está surgindo uma nova química que pode levar à maior revolução da história da área.
O professor Fernando Galembeck: “Podemos acreditar que temos uma nova e poderosa caixa de ferramentas para a construção de uma economia sustentável e modos de vida mais inclusivos”
Essas considerações permeiam o artigo publicado na Chemical Society
Reviews pelo professor aposentado e atual colaborador do Instituto de Química
(IQ) da Unicamp Fernando Galembeck. Nesse trabalho de revisão, realizado pelo
professor a convite do periódico (que lhe deu liberdade para escolher o tema do
artigo), o docente questiona afirmações amplamente aceitas por químicos,
engenheiros e estudantes que frequentam desde o ensino fundamental até as
universidades. São afirmações desafiadas por muitos fatos recentes. A
propósito, diz Galembeck: “Muito do que se ensinou e se aprende até hoje está
sendo substituído por novos conceitos. As mudanças de paradigmas têm
possibilitado a compreensão de observações que destoam das ideias predominantes
na química há mais de dois séculos. Estamos passando por uma revolução
científica que cria enormes oportunidades para a pesquisa e para o
desenvolvimento na área, com base na substância mais abundante no e compatível
com o meio ambiente: a água. Podemos acreditar que temos uma nova e poderosa
caixa de ferramentas para a construção de uma economia sustentável e modos de
vida mais inclusivos”.
Para o professor, a importância que a água está assumindo na química evidencia-se pelas dezenas de artigos publicados somente neste primeiro quarto de século por pesquisadores renomados tratando de síntese química, energia e química atmosférica. Segundo esses textos, usar a água no lugar de substâncias voláteis traz múltiplas vantagens: acelera as transformações químicas, reduz a contaminação do ar, das águas e dos solos, aumenta o nível de salubridade dos laboratórios e fábricas, reduz riscos de incêndio e de explosão e diminui custos com matéria-prima e operacionais. “É previsível que, em um futuro próximo, muitos processos industriais adotem a água como meio de reação. A água também participa de novos processos de produção de energia e poderá tornar-se importante na engenharia ambiental. Está nascendo uma nova química”, enfatiza.
O depois para explicar o antes
Galembeck lembra que, no início dos anos 2000, fez observações
inesperadas levando em conta o que se sabia sobre a eletrização da matéria. O
cientista examinou plásticos e borrachas, metais e cerâmicas, e os resultados
experimentais contrariaram uma das ideias mais difundidas nas ciências, a de
que os ambientes naturais e antrópicos são eletroneutros, ou seja, não contêm
campos elétricos. Ao contrário, o látex natural e filmes plásticos sempre
apresentam mosaicos de cargas elétricas, mesmo em escalas microscópicas. Os
primeiros resultados foram publicados em 2001. Em 2010, o grupo transformou em
artigo científico uma demonstração experimental provando que a umidade do ar
eletriza sólidos, algo recebido por pesquisadores da área com entusiasmo, mas
também com ceticismo. A partir de 2014, outros artigos sobre o tema foram
publicados, mas nenhum deles negou o efeito, pelo contrário, todos confirmaram
sua existência em vários materiais, comprovando não se tratar de um fato
isolado ou raro. Os revisores dos sucessivos textos sobre o tema cobravam
sempre explicações, mas os mecanismos envolvidos nesses efeitos eram apenas
hipotéticos.
Em 2023, Galembeck e colaboradores demonstraram que a produção de eletricidade a partir da umidade e da água líquida faz-se acompanhar pela produção de hidrogênio e água oxigenada, sem a necessidade de qualquer outra fonte de energia. Outros pesquisadores estavam mostrando que água oxigenada e o hidrogênio se formam espontaneamente nas gotículas de um spray. Por isso, ao receber o convite da Royal Society of Chemistry para escrever seu artigo, o professor decidiu falar sobre a eletrização em interfaces de substâncias, um assunto polêmico, discutindo as suas consequências. Embora bem enfronhado nas pesquisas com a eletrização em aerossóis, o docente não conhecia outros trabalhos sobre os orgânicos sintéticos. Estudando a literatura, percebeu que o tema era mais amplo do que pensava.
Em seu artigo de revisão, o pesquisador descreve vários processos relacionados à eletrização nas interfaces de materiais, isto é, nas superfícies em que se encontram duas fases de um sistema. No entanto, em vista da importância da água, Galembeck dá ênfase ao que ocorre nas interfaces dessa substância com outras: “Pesquisadores do MIT [sigla em inglês para Instituto de Tecnologia de Massachusetts] provaram que mais de 60 amostras de água, das mais diferentes origens, em seus recipientes, apresentaram, todas elas, cargas negativas. Como explicar isso? Sabe-se que a água sofre uma pequena ionização em que se formam íons H+ e OH-. Quando se tem a interface água-ar, ions H+ da superfície do líquido saem e se unem à umidade do ar. Restam os íons OH-, tornando a água negativa. Esse fenômeno ocorre apenas nas interfaces e não no interior das fases. A exemplo da ação da água, constatou-se que uma miríade de processos ocorre em interfaces eletrizadas das mais diferentes substâncias e em cada caso os mecanismos precisam ser devidamente esclarecidos. A constatação de que todas as interfaces são eletrizadas, de que, portanto, não existem matérias eletro neutras, estabelece um novo paradigma, ou seja, uma nova noção oposta à anterior, ainda muito difundida e aceita. E esse novo paradigma pode causar uma revolução na química”.
Nascimento de uma ‘nova química’: estudos demonstram que a água já substitui os solventes derivados do petróleo em processos de síntese
Voltando ao antes
A história das reações em interfaces aquosas (on-water reactions) começou dez anos antes das descobertas da eletrização da matéria pela água. Em razão disso, a maior parte da literatura específica não incorpora a ideia de eletrização. Ideia essa, aliás, que ainda não é consenso, embora calcada em fatos experimentais. O professor esclarece que, no artigo de revisão, pretendeu mostrar, com base em conceitos clássicos da química, em dados obtidos em laboratório e em parâmetros termodinâmicos, como a energia de Gibbs – parâmetro que permite determinar a espontaneidade de um processo químico – é afetada pelo potencial elétrico ambiente, o que nunca tinha sido feito. Com isso, por meio da eletrificação das interfaces, pode-se explicar enfim por que uma reação não espontânea passa a ser espontânea. Galembeck confessa haver se surpreendido, ao iniciar o trabalho de revisão, com o grande número de descobertas já divulgadas desde o início deste século, mas mal-entendidas e que fugiam aos parâmetros de comportamento então esperados pelos químicos. Ao se dar conta disso, ocorreu-lhe que a onipresente eletrização das substâncias poderia ser a causa comum dos surpreendentes comportamentos descritos. Frise-se que outros pesquisadores já tinham aventado essa possibilidade, sem verificá-la.
Juntando as coisas
Galembeck explica que muitos resultados publicados nos últimos 20 anos
em diferentes áreas de pesquisa desmentem algumas crenças científicas e
tecnológicas atuais e fornecem elementos para algumas conclusões: 1) a água
começa a ser reconhecida como o meio ideal para a síntese química, dispensando
o uso de solventes; 2) o contato com a água eletriza a maior parte dos
materiais, permitindo a invenção de novos processos de produção de energia; 3)
qualquer matéria é sempre formada por mosaicos de cargas positivas e negativas,
frequentemente localizadas nas interfases aquosas.
A aceitação cada vez maior dessas constatações começa a provocar grandes mudanças no pensamento químico, e os fatos correlatos mostram que o comportamento de produtos químicos em interfaces eletrificadas aquosas pode ser muito diferente do comportamento atualmente reconhecido, algo que as teorias vigentes não conseguem explicar. Isso levou à análise das propriedades termodinâmicas das espécies iônicas, mostrando que essas propriedades se modificam de acordo com o potencial elétrico do local em que as substâncias envolvidas estão. Alteram-se seu comportamento químico e seu comportamento físico, viabilizando, por exemplo, os geradores hidroelétricos, que poderão vir a ser utilizados no interior de florestas, pois não dependem do vento ou da luz solar.
Essas descobertas, sempre envolvendo a presença da água, estimulam a exploração do que já se conhece e a busca por novos fatos, criando muitas oportunidades para pesquisadores acadêmicos e da indústria. O docente arremata: “Como a água é abundante, barata e facilmente reciclável ou reaproveitada, as novas tecnologias baseadas nela atendem muito bem ao paradigma da engenharia inclusiva e compatível com o ambiente dentro do objetivo de produzir mais, com menos recursos, para mais gente, ou MLM [more from less for more]. Todas essas expectativas me permitem dizer, sem modéstia, que está nascendo uma nova química, benigna e compatível com as demandas da transição para a sustentabilidade”. (jornal.unicamp)
Nenhum comentário:
Postar um comentário