A
construção de mercados elétricos em perspectiva – Questões para o Brasil.
O
Ministério de Minas e Energia (MME) realizou a Consulta Pública (nº 33/2017)
sobre proposta de aprimoramento do marco regulatório e comercial do setor
elétrico brasileiro, buscando a sua “modernização e racionalização”. A proposta
foi estruturada em torno dos desdobramentos da Consulta Pública nº 21/2016,
realizada com o intuito de identificar os desafios para expansão do mercado
livre no Brasil. Partindo deste objetivo, as medidas propostas desembocam na
expansão do mercado livre como solução para o aprimoramento do modelo setorial.
O
preâmbulo da proposta aproxima-se da perspectiva de mudanças traçada pelo
relatório “Utility of the Future”, realizado por MIT/Comillas (PÉREZE-ARRIAGA
et al., 2016). A penetração das novas energias renováveis variáveis (NER), com
custos mais competitivos e impactos mais perceptíveis, a proliferação de
recursos energéticos distribuídos (como painéis solares, armazenamento e carros
elétricos) e o desenvolvimento de redes inteligentes apontam para mudanças
radicais nos sistemas elétricos.
Neste
horizonte, consumidores ativos e polivalentes – prosumages (consumidores,
produtores e armazenadores) nos termos de Green & Staffell (2017) –
contestam a centralização que estruturou o setor, ameaçando transformar os
ativos constituídos das utilities em ativos irrecuperáveis (stranded assets).
O
processo de fuga em massa das redes, conhecido por “espiral da morte” – em que
a atratividade crescente das soluções distribuídas leva a saída de usuários da
rede, elevando as tarifas dos remanescentes e, consequentemente, a taxa de
abandono –, pode se acelerar com a passividade da regulação vigente, orientada
pelo business as usual.
Neste
contexto de mudanças, o relatório prescreve orientações gerais balizadoras de
novas políticas e arcabouços regulatórios. A principal prescrição é aprimorar a
formação de preços e tarifas dos diferentes serviços elétricos, via adequação
dos mercados atacadistas e varejistas, para melhor integrar os recursos
distribuídos, remunerando a maior flexibilidade requerida. Em linhas gerais,
trata-se de aperfeiçoar os mecanismos de mercado de modo a constituir um
ambiente único de remuneração e competição para todas as tecnologias, apostando
na sinalização de preços mais granulares no tempo e no espaço.
A
constituição de mercados elétricos eficientes, capazes de gerar sinalização e
incentivos adequados, revelou-se muito mais árdua do que se anunciava.
Subsídios, externalidades e heterogeneidades tornam a pura comercialização da
eletricidade insuficiente para garantir confiabilidade e adequabilidade do
suprimento. Mesmo países que adotaram mercados exclusivos de energia
(energy-only markets) estão introduzindo mecanismos de remuneração de
capacidade para assegurar o suprimento em momentos críticos de escassez.
As
pressões dos agentes por “mais mercado” ou “mais regulação”, como discutem
Borenstein & Bushnell (2015), seriam motivadas pela tentativa de captura de
renda diferencial e fuga de custos afundados, oscilando conforme divergências
circunstanciais entre custos médios e custos marginais. Os autores advertem que
as disputas por rendas podem encobrir a discussão essencial de custos
incrementais.
A
proposta de ampliação do mercado livre como aprimoramento para o setor elétrico
brasileiro se insere neste quadro geral de transformações estruturais. As
próximas seções discutem a relevância dos mecanismos de remuneração e as
disputas subjacentes por rendas diferenciais, identificando ao fim questões
pertinentes ao caso brasileiro.
Introduzindo
competição e construindo mercados
Até
os anos 1980, em diferentes sistemas elétricos predominaram monopólios
verticalmente integrados regulados pelo custo do serviço, responsáveis pela
geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia. Este arranjo
foi exitoso em expandir sistemas com demanda crescente, repassando ganhos com
economias de escala e escopo através de redução de tarifas e aumento da
confiabilidade do suprimento.
A
partir de então, esse círculo virtuoso se reverte em círculo vicioso. Os
choques do petróleo e as crises econômicas mundiais sucessivas, aliado ao
esgotamento gradual das oportunidades de ganhos de escala e escopo, elevam os
custos e dificultam o financiamento de novos investimentos. Face à demanda em
declínio, as tarifas aumentam e a expansão projetada redunda em sobre
capacidade indesejável.
Outros
setores enfrentam contexto semelhante, suscitando discussões sobre a razão de
existir de monopólios e integração vertical. O diagnóstico geral, comum a
diversas indústrias, identifica a falta de competição como causa para a
ineficiência. Processos de liberalização são estruturados para abrir setores,
promover competição e constituir mercados. A interação entre os agentes em
ambientes livres resultaria em preços de mercado balizadores de decisões ótimas
e alocações eficientes.
Em
indústrias como eletricidade e telecomunicações, a liberalização foi propiciada
por transformações tecnológicas concomitantes que permitiram a introdução de
concorrência em elos específicos da cadeia. No setor elétrico, a introdução da
competição nas pontas da cadeia (geração, comercialização e consumo) foi
permitida pelo desenvolvimento, a custos competitivos, de usinas com escala
mínima de eficiência reduzida. A padronização e modularização de térmicas a gás
natural a ciclo combinado, aliada a preços historicamente baixos do energético,
abriu espaço para competição no mercado atacadista.
A
reestruturação representava, em termos gerais: separação das empresas
verticalmente integradas (unbundling); extinção de monopólios, à exceção dos
naturais (serviço de distribuição); instituição de operadores independentes do
sistema para garantir a confiabilidade do suprimento (controle de frequência e
voltagem); livre acesso à malha de transporte; estabelecimento de mercados
transparentes de curto prazo de energia, tipicamente para o dia posterior
(day-ahead), e de serviços ancilares em tempo real (real-time balancing);
preços locacionais, refletindo custos marginais de congestionamento e perdas;
liberdade contratual para consumidores libertos; e por último, mas não menos
importante, mecanismos de resposta da demanda sensíveis a sinais de preço de
curto prazo.
A
onda de reestruturação atingiu todas as regiões do mundo, como revela a Figura
1. O grau de competição introduzido, no entanto, varia entre as diversas
experiências – desde a convivência entre empresas verticalmente integradas e
produtores independentes de energia (IPPs), passando pela instituição de mercado
atacadista (wholesale market), à liberalização completa com competição no
atacado e no varejo (retail competition).
Remunerar
capacidade (capacity) ou habilidades (capabilities)?
A
principal justificativa sustentada para as reformas residia na busca por maior
eficiência, não apenas no nível operacional de curto prazo, mas, sobretudo, na
orientação da expansão de longo prazo. Preços marginais de curto prazo seriam,
em tese, suficientes para sinalizar a operação e a expansão ótimas do sistema.
Esta premissa, entretanto, foi posta em dúvida desde a primeira onda de
reformas.
Enquanto
que a maioria dos países europeus adotou mercados exclusivos de energia
(energy-only markets), a maioria das reformas observadas nos Estados Unidos e
nos países latino-americanos (com exceção da primeira reforma brasileira)
introduziu em seu desenho original algum mecanismo de remuneração de capacidade
(MRC) adicional com intuito de atrair investimentos necessários para assegurar
o suprimento nos novos setores liberalizados (MASTROPIETRO, 2016).
Nos
anos seguintes às reestruturações, tornou-se ainda mais evidente a ausência das
premissas teóricas necessárias para que os mercados de energia provejam, por si
só, sinais de investimentos e remuneração adequada para um dado nível de
confiabilidade.
Inúmeras
razões explicam a falta de remuneração nos mercados, problema denominado pela
literatura por missing money (JOSKOW, 2008), como limites nos preços durante
períodos de escassez, ações fora do mercado tomadas pelos operadores do
sistema, insensibilidade da demanda à variação de preços em tempo real e mesmo
inconsistência entre o critério de confiabilidade administrativo perseguido e
as preferências dos consumidores (JOSKOW, 2013).
Além
de faltar remuneração nos mercados estabelecidos, indefinições de produtos
específicos ou de seus preços futuros resultam em inexistência de mercados
próprios para remunerar alguns recursos, a despeito de seu valor para o
sistema, o que Newbery (2016) denomina de missing market problem.
Frente
à carência de remuneração adequada e mercados específicos, MRC estão sendo
implantados em países que inicialmente optaram por mercados exclusivos de
energia, como Reino Unido, Itália, França e Alemanha. Já os países que
contemplaram MRC no desenho original, reestruturam seus esquemas e corrigiram
falhas em uma segunda onda de reformas.
Os
MRC foram orginalmente estruturados para remunerar centrais elétricas que
garantem o suprimento em momentos de escassez. Em sistemas com restrição de
capacidade (capacity-constrained), limitados pela disponibilidade de potência,
os picos de demanda representam os períodos críticos. Já em sistemas com
restrição de energia (energy-cosntrained), a disponibilidade da oferta da fonte
primária determina os momentos críticos, podendo registrar intervalos
prolongados de escassez.
A
penetração significativa das NER (principalmente eólica e solar) introduz nova
dimensão de período crítico em ambos os sistemas, pela variabilidade da oferta
dessas fontes, condicionando a confiabilidade do suprimento à capacidade de
resposta do sistema residual. Esta maior flexibilidade pode ser provida por
múltiplos recursos – geração despachável, armazenagem, interconexão, resposta
da demanda e recursos distribuídos –, desde que se viabilize remuneração
explícita e adequada.
Este
novo contexto representa um desafio ainda maior para o desenho dos MRC.
Originalmente estruturados sob a ótica restrita de capacidade instalada de
backup, os mecanismos tendem a negligenciar as contribuições dos demais recursos
e as suas habilidades (capabilities) em prover confiabilidade em condições de
escassez. Para além de remunerar a capacidade instalada, os mecanismos devem
premiar a performance em momentos críticos.
Esta
nova orientação pode permitir maior convergência (principalmente via preço)
entre mecanismos voltados para adequabilidade do suprimento (tipicamente MRC) e
mecanismos de suporte a determinados recursos (tipicamente NER), propiciando a
constituição de um ambiente único de competição, como defendido por Pérez-Arriaga
et al. (2016). Analisando as experiências na América Latina (Brasil, Colômbia e
Peru), Mastropietro et al. (2014) identificam a possibilidade de convergência
entre MRC e NER, mas reconhecem que fontes convencionais e renováveis ainda não
competem sob as mesma condições.
Na
América Latina, o principal desafio nos setores elétricos reestruturados está
em garantir que a expansão da capacidade instalada acompanhe o crescimento
acelerado da demanda. A realização de leilões centralizados para contratação de
longo prazo foi o mecanismo de remuneração encontrado para mitigar a incerteza
no fluxo de caixa dos novos investimentos e dos ativos em operação. Pela
predominância hidrelétrica na região, em muitos sistemas o produto
transacionado (reliability product) não é capacidade, mas a própria energia (ou
uma opção de compra futura). Assim, mais do que garantir capacidade em períodos
de escassez, os leilões garantem adequabilidade da geração para todos os
momentos.
Pressões
por reestruturações: rendas diferenciais versus custos incrementais
Embora
discussões sobre eficiência predominem nos processos de reestruturação,
Borenstein & Bushnell (2015) enfatizam a disputa por apropriação de renda
diferencial e por exclusão do compartilhamento de custos afundados como
determinantes do posicionamento político dos agentes. Enquanto que os custos
médios formam a base das tarifas sob o regime de regulação, os custos marginais
determinam os preços nos mercados competitivos. Nos períodos em que estes
custos divergem, o apoio oscila ao regime (regulação ou mercado) com menor
custo. Assim, a variação entre custos médios e marginais explicaria o
comportamento dos agentes e as preferências por maior ou menor liberalização.
Analisando
as reestruturações nos Estados Unidos sob a perspectiva de duas décadas, os
autores identificam que as margens de reserva elevadas nos anos 1990 (Figura 2)
resultavam em sobrecapacidade instalada subutilizada, pressionando custos
afundados a serem compartilhados. A pressão sob os custos médios se contrastava
com a disponibilidade de geração a custos marginais menos elevados e com a
atratividade de novas centrais a gás, em termos de custos de capital e de
operação (combustível). Nos sistemas termelétricos, os custos marginais das
centrais a gás tendem a determinar o preço de curto prazo, deslocando despachos
mais custosos, tornando a liberalização ainda mais atrativa.
A
discrepância incomum entre custos médios elevados e custos marginais reduzidos
constituiu, na visão de Boresntein & Bushnell (2015, p. 7), “a fonte
fundamental de pressão por reestruturação”. O apoio dos grandes consumidores à
liberdade contratual não buscava redução global de custos e ganhos de
competitividade, mas vislumbrava a oportunidade de acessar diretamente os
mercados atacadistas, eximindo-se da responsabilidade de custos afundados de
ativos considerados irrecuperáveis (“stranded assests”), o que já havia sido
alertado por Boresntein & Bushnell (2000) anteriormente.
A
reestruturação aumentou drasticamente a exposição das tarifas de eletricidade
ao preço do gás natural, o que seria suavizado em termos médios sob o custo do
serviço. A Figura 3 ilustra esta correlação, com exceção da crise na Califórnia
e da região do Pacífico noroeste que registra maior disponibilidade hídrica. A
elevação do preço do gás após as reestruturações “recuperou” o valor dos ativos
considerados anteriormente irrecuperáveis. No entanto, os consumidores cativos
pagaram a conta dobrada, pois já haviam compensado as utilities na transição
dos modelos através do congelamento provisório das tarifas
A
partir de fins dos anos 2000, a redução do preço do gás natural e a penetração
das novas renováveis deprimem os custos marginais de curto prazo nos mercados
de energia. Enquanto que as políticas de incentivo às renováveis tentam
garantir a sua penetração nos sistemas, os mecanismos de remuneração de
capacidade buscam compensar a falta de remuneração nos mercados para as fontes
convencionais. O resultado é uma pressão crescente sobre os custos da energia
na rede, tornando os recursos distribuídos cada vez mais atrativos. Boresntein
& Bushnell (2015) alertam que a visão da rede como um ativo irrecuperável –
que geralmente fundamenta a “retórica das utilities do futuro” – é análoga à
dinâmica por trás das reestruturações dos anos 1990. A fuga de custos afundados
e a captura de custos marginais mais vantajosos do ponto de vista individual
desconsideram custos incrementais globais, podendo levar a resultados sociais
indesejáveis.
Green
& Staffell (2017) mostram que a autossuficiência completa de
consumidores-produtores-armazenadores (prosumages) resultaria em custos muito
elevados, mesmo com expectativa de preços declinantes para armazenagem. Por outro
lado, os ganhos com arbitragem de pequenos prosumages na rede ainda esbarram em
custos de transação expressivos e baixas margens para que agregadores prestem
serviços atrativos e estimulem a aquisição de armazenagem distribuída. Ao
concluírem que a estocagem distribuída atrás dos medidores deve contribuir
muito menos do que se espera nos futuros sistemas, Green & Staffell (2017)
reforçam a importância da rede. Longe de serem irrecuperáveis, estes ativos
permanecerão estratégicos, tornando o risco de fuga mais um espantalho nas
disputas por rendas diferenciais do que um fantasma para as utilities no
futuro.
Desdobramentos
para o Brasil
A
proposta de aprimoramento do setor elétrico brasileiro visa expandir o ambiente
de contratação livre, como atestam as principais medidas apresentadas: redução
gradual do limite de acesso ao mercado livre; centralização dos contratos do
mercado regulado, para equalizar as perdas das distribuidoras com a redução de
seus mercados cativos; adoção de tarifa binômia em lugar da cobrança
volumétrica pelo serviço de distribuição, mitigando perdas com a penetração de
recursos distribuídos; redução da obrigatoriedade de contratação completa e
prévia da demanda esperada; separação da comercialização de lastro e de
energia, permitindo maior liberdade contratual aos agentes; e descotização das
usinas da Eletrobras condicionada à privatização.
As
propostas têm alcance de curto, médio e longo prazo, algumas com contornos bem
definidos, outras abertas para posterior definição infralegal. A privatização
da Eletrobras é a mais imediata, embora já tenha tomado outros contornos
(LOSEKANN, 2017), evidenciando as motivações fiscais e negligenciando o caráter
estratégico dos reservatórios – é bom lembrar, a título comparativo, que cerca
de 75% da geração hídrica nos Estados Unidos está nas mãos do setor público
(DOE, 2015). De modo geral, as medidas afetam a comercialização de energia e,
portanto, a remuneração dos recursos e a renda dos agentes.
Atualmente,
existem dois ambientes distintos de comercialização, um “regulado” (ACR) e
outro “livre” (ACL). As distribuidoras contratam no ACR, declarando
antecipadamente a demanda futura, e os consumidores livres contratam no ACL,
com liberdade para pactuar preço, prazo e volume. Além de todo o consumo estar
lastreado por contratos, todo contrato deve ser respaldado por garantia física.
No entanto, embora todos estejam contratados e todos os contratos sejam
“garantidos”, ainda se contrata energia de “reserva”, repartindo os custos por
todos os consumidores.
Os
leilões centralizados de longo prazo para contratação de energia no ambiente
regulado constituíram um poderoso instrumento de remuneração, expandindo a
oferta face à demanda crescente. O mercado livre cresceu a reboque com as
sobras do mercado regulado, concentrando pouco mais de 25% do consumo. Como os
prazos dos contratos tendem a ser curtos – enquanto que 50% do volume é
transacionado em contratos de até quatro anos, apenas 20% é para prazo superior
a oito anos (CCEE, 2017) – a expansão de nova capacidade não é ancorada nos
consumidores livres. Nos contratos mais curtos, os preços se aproximam mais do
PLD (preço de liquidação de diferenças), ou seja, o mercado livre tende a se
aproveitar da ocorrência de custos marginais mais baixos, típicos da abundância
hídrica do sistema brasileiro. Já sob os consumidores cativos recai a
responsabilidade da expansão, ancorada nos contratos de longo prazo das
distribuidoras.
Sob
estas condições, dificilmente o mercado livre se amplia sem comprometer a
remuneração dos ativos em operação ou o retorno dos investimentos de novas
centrais. As motivações políticas pela sua ampliação respondem, naturalmente, a
disputas por captura da renda hidráulica. O perigo, no entanto, está em
permitir que os custos afundados da expansão permaneçam restritos ao mercado
regulado.
A
solução aventada é a “separação de lastro e energia”. A ideia suscitou inúmeras
dúvidas ao longo da Consulta Pública. Pelas respostas concedidas pelo MME às
“perguntas frequentes”, o lastro está relacionado justamente às habilidades
(capabilities) dos recursos de “entregar produto ou serviço”, isto é, “uma
medida de confiabilidade”.
Como
discutido anteriormente, a ideia é remunerar não uma capacidade genérica, mas
uma habilidade específica. No atual modelo, todo energia é lastreada por
garantia física. Assim, limita-se a comercialização de energia ao montante de
lastro existente. É uma espécie de “padrão ouro”, fazendo uma analogia
monetária, em que as transações são determinadas por um estoque “físico”. Mas aqui,
a quantidade de “ouro” (lastro) é determinada pelo próprio emissor do
certificado. Cabe-se frisar, no entanto, a distinção entre a liquidez
financeira e a física. Como o ONS, operador do sistema, otimiza e determina o
despacho das centrais, a comercialização só tem impactos financeiros.
Embora
o lastro atual seja restrito à contribuição de energia, outros “lastros” podem
ser estabelecidos, a depender do produto (reliability product) estipulado – por
exemplo, habilidade de atender a ponta ou prover flexibilidade. Assim, as
centrais seriam remuneradas em parte pelo lastro, em leilões centralizados, e
em parte pela comercialização de energia.
A
separação de lastro e energia solta as amarras do ambiente livre, mas não
desata necessariamente o nó da adequabilidade do suprimento. Como discute
Losekann (2017), o grande desafio está em mitigar a elevada incerteza do fluxo
de caixa das geradoras, decorrente da imprevisibilidade do despacho. A
contratação de longo prazo permanece como pilar da expansão e, consequentemente,
a definição do lastro continuará como a parte mais delicada e central de todo o
sistema.
Tendo
em vista a inadimplência e a judicialização recorrentes no mercado de curto
prazo, as repactuações do risco hidrológico e a contratação significativa de
energia de reserva quando todos já estão contratados, é consensual a
necessidade de reestruturar a comercialização da energia no setor brasileiro.
No entanto, as discussões sobre o aprimoramento setorial não deveriam se
circunscrever de antemão à ampliação do mercado livre, sob pena de negligenciar
outros aspectos relevantes, em meio a disputas por renda e fuga de custos
afundados, comprometendo a adequabilidade do sistema.
O
quebra-cabeça atual revela-se muito mais intrincado do que na época da cruzada
por competição e mercados que marcou os anos 1990. Os novos desafios posicionam
a indústria em uma encruzilhada sem caminhos claros ou soluções únicas e
evidentes. (wordpress)
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