A
indústria automotiva já decidiu: o carro do futuro será movido a baterias. Mas
o Brasil ainda precisa tomar a decisão de investir em infraestrutura se não
quiser ficar para trás nessa nova ordem mundial.
Pioneira: Luiz Rezende,
presidente da Volvo, carrega o SUV híbrido XC90. A partir de 2019, todos os
carros da montadora terão algum tipo de motor elétrico.
Na casa do empresário
Leonardo Celli, em Jaguariúna, interior de São Paulo, tudo é elétrico: o
chuveiro, a torneira, a cafeteira, o ar-condicionado e, até mesmo, o carro. Mas
ele não se preocupa com a conta de luz, apesar do recente aumento instituído
pelo governo, que vai elevar a tarifa da bandeira vermelha, em novembro, de R$
3,50 para R$ 5. A residência de Celli, construída por ele mesmo, conta com um
sistema fotovoltaico de geração de energia. Quando não está utilizando a rede
elétrica, ele joga de volta ao sistema da CPFL, responsável pela distribuição
em sua cidade, a eletricidade produzida pelos painéis instalados no telhado. Na
média, ele pelo menos empata em consumo e geração, como atestou a reportagem da
DINHEIRO ao visitar o local. O empresário, dono de uma empresa de marketing, é
um dos fundadores da Associação Brasileira dos Proprietários de Veículos
Elétricos Inovadores (Abravei), um grupo de pioneiros adeptos de uma tendência
mundial, mas que ainda engatinha no País: a do carro movido a eletricidade.
“Somos
cerca de 30 pessoas, a maioria proprietários de um BMW i3”, afirma Celli. O
carro da montadora alemã é o único totalmente elétrico vendido no Brasil. Sua
autonomia é de 120 quilômetros na bateria. Há um sistema auxiliar que aumenta o
alcance do carro graças a um gerador a gasolina, que pode recarregar a bateria
em caso de necessidade. Mas, na prática, Celli acaba rodando de graça, já que
carrega o carro em casa, onde o sol é a principal fonte de geração. Esse é um
modelo facilmente replicável no País e que poderia servir de padrão para o
futuro da indústria automotiva brasileira. Só que pouco tem sido feito para
incentivá-lo.
Mercado restrito: O BMW i3 é o único veículo totalmente elétrico
vendido no Brasil e ele está esgotado. O carro tem autonomia de cerca de 120
km. É possível carregar 80% da sua bateria em 20 minutos.
A associação tem como
objetivo, justamente, chamar atenção para a necessidade de se criar a
infraestrutura necessária ao carro elétrico no País. “Existe a demanda”, diz
Celli. Hoje, porém, quem quiser comprar um veículo que não use motor a
combustão não vai conseguir, já que o i3 está esgotado. Os pontos de recarga também
são escassos: existem pouco mais de 70 no País, a maioria da região Sudeste,
instalados pela própria BMW. Celli relata, também, que praticamente não há rede
de assistência técnica. “É preciso resiliência para ter um carro elétrico no
Brasil”, diz ele.
Essas
dificuldades contrastam com o potencial brasileiro. O País tem todos os
atributos para facilitar a troca da matriz energética. A energia é limpa, há
abundância de sol, ventos e uma das maiores bacias hidrográficas do mundo. A
disseminação do veículo elétrico pelas cidades brasileiras, contudo, deverá
acontecer num momento posterior ao dos países desenvolvidos. “Estamos começando
a falar disso agora”, afirma Rafael Cagnin, economista do Instituto de Estudos
para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). “Essa mudança no setor automotivo faz
parte de uma transformação maior da indústria, que já é discutida desde 2010,
mas ainda engatinha no Brasil.” Ele se refere à chamada indústria 4.0.
Homem elétrico: Leonardo Celli, dono de um BMW i3, fundou a
Abravei, que reúne consumidores como ele.
Globalmente as grandes
montadoras já se preparam para a mudança, que acontecerá com ou sem o Brasil.
Todas, sem exceção, estabeleceram cronogramas para a introdução do carro
elétrico em seus portfólios. Algumas mais rapidamente, como a sueca Volvo. A
partir de 2019, sairão de suas linhas de montagens apenas carros elétricos ou
híbridos, que misturam as duas tecnologias num mesmo sistema. "Essa é uma escolha que a indústria já fez", afirma Luiz Rezende, presidente da montadora no País. "O Brasil terá que acompanhar, ou ficará atrasado em relação ao resto do mundo."A estratégia global da empresa valerá
para o mercado nacional, ou seja, em pouco mais de um ano, quem quiser comprar
um carro da marca terá de escolher entre os modelos elétricos – hoje, ela vende
por aqui apenas o híbrido XC90, mas Rezende afirma que o portfólio à bateria
irá aumentar gradativamente.
A Volvo não deve ficar
sozinha. A GM, por exemplo, pretende lançar 20 modelos elétricos, globalmente,
até 2023. No mesmo período, a Ford espera colocar à venda 13 modelos a bateria.
Renault, Nissan e Mitsubishi, que pertencem ao mesmo grupo, estão desenvolvendo
12 modelos, a serem lançados até 2022. Já a Toyota, dona do Prius, o carro
elétrico mais vendido no mundo (veja quadro ao final da reportagem), anunciou
investimentos de US$ 1,6 bilhão em uma fábrica nos Estados Unidos, só para
veículos sem combustão. Volkswagen, Mercedes e PSA também anunciaram que vão
substituir os motores de seus carros. É praticamente certo que, em cinco anos,
o portfólio dessas empresas nos mercados desenvolvidos seja dominado por
veículos que podem ser ligados na tomada.
No
Brasil, por sua vez, o ponto nevrálgico dessa questão está no impulso que o
governo está disposto a dar para a mudança. A demanda das montadoras é por
algum tipo de ajuda para trazer o carro elétrico para cá, não só em termos de
infraestrutura, mas também no âmbito fiscal – ainda que, no marketing, elas se
mostrem totalmente a favor de abandonar os combustíveis fósseis. Acontece que o
setor encontra-se em meio a uma transição de políticas industriais. O
Inovar-Auto, plano definido no governo Dilma Rousseff e que foi condenado pela
Organização Mundial do Comércio (OMC) por dificultar a importação de veículos,
sairá de cena. Em seu lugar surgirá o Rota 2030. Até o momento, porém, pouco
tem se falado sobre a eletrificação no âmbito da nova política industrial –
procurado, o Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços não se
manifestou.
Solução rápida: “Não existe fórmula mágica”, diz Sergio
Marchionne, presidente da FCA, ao comentar sobre as emissões de carbono dos
carros.
A expectativa é de que as
diretrizes do Rota 2030, ou pelo menos parte delas, sejam determinadas ainda
este ano. Governo e montadoras têm se reunido semanalmente para tratar do
assunto. Até o momento, os pontos de consenso estão concentrados nas metas de
eficiência e segurança automotiva, nos incentivos a investimentos em pesquisa e
desenvolvimento e na introdução de um regime simplificado que permita a
suspensão de tributos federais, como PIS/Cofins e IPI Importação. Segundo
Antonio Megale, presidente da Anfavea, associação que reúne os principais
fabricantes de carros do Brasil, há um grande desafio que é saber como o País irá
se inserir no mercado eletrificado. “Temos de olhar para o que está sendo feito
lá fora”, disse Megale. Se for assim, a lógica é apostar tudo no elétrico.
Afinal,
a lista de países que já se comprometeram a proibir a venda dos motores a
combustão já passa de uma dezena e inclui alguns dos maiores mercados do mundo,
como China, França, Inglaterra e Alemanha. Por outro lado, há certo consenso na
indústria sobre a possibilidade de se ter mais de uma matriz energética em
lugares diferentes. “O transporte representa 14% de todas as emissões de gases
de efeito estufa, principalmente por causa do uso predominante de combustíveis
à base de petróleo”, afirma Sergio Marchionne, presidente da FCA, que reúne as
marcas Fiat e Chrysler, entre outras. “Contudo, precisamos ser claros: não
existe uma única solução e nenhuma fórmula mágica para esse problema.” Nesse sentido, é importante ressaltar o papel do etanol na indústria brasileira. A frota circulante nacional superou 35 milhões de
automóveis, no ano passado, segundo dados do Departamento Nacional de Trânsito
(Denatran). Quase 60% dela possui motor flex, ou seja, roda tanto no etanol,
quanto na gasolina.
Mudança gradativa: “Mais de uma matriz energética podem coexistir,
dependendo do mercado”, diz Jean-Phillipe Imparato, da Peugeot.
Pode haver, ainda, alguma
preocupação em relação à capacidade do sistema elétrico de dar conta do aumento
da demanda, quando os brasileiros passarem a abastecer seus carros na tomada.
Estudos feitos pela Itaipu, estatal que controla a usina binacional, apontam
que, se todos os carros em circulação hoje fossem eletrificados, haveria um
adicional de consumo de 30%. “Mas esse é um cenário improvável, para não dizer
impossível”, afirma Celso Novais, engenheiro da empresa, que mantém um projeto
para desenvolver carros elétricos. Na verdade, diz Novais, imaginando que fosse
necessário usar usinas termoelétricas para suprir esse aumento de demanda,
ainda assim, o consumo de combustíveis fósseis cairia pela metade, se todos os
carros fossem movidos a eletricidade.
Segundo Marchionne, para
valer a pena forçar a introdução do carro elétrico, a energia produzida teria
de ser limpa – algo que, no Brasil, já é uma realidade razoável. Mas há outras
questões. “O carro elétrico é, essencialmente, urbano”, diz Rogelio Golfarb,
vice-presidente de assuntos corporativos da Ford na América do Sul. Para a
montadora, quando se trata de longas distâncias, um pouquinho de combustão
ainda se faz necessário. Essa visão é compartilhada por Jean-Phillipe Imparato,
presidente mundial da francesa Peugeot. “Mais de uma matriz energética podem
coexistir, dependendo do mercado”, afirma o executivo. Já a velocidade de
introdução da nova tecnologia vai depender dos incentivos concedidos pelo
governo e da infraestrutura local.
Populares: o Nissan Leaf (acima) e o Toyota Prius estão
entre os dez carros elétricos mais vendidos no mundo
O provável é que o Brasil
deva participar de uma segunda onda de eletrificação, que virá após a
transformação de mercados como o chinês e o europeu. “Talvez seja melhor para o
País fazer a migração já com uma tecnologia madura”, afirma Marcos Munhoz,
vice-presidente da GM no Brasil. “Podemos pular uma etapa.” O ciclo de
investimentos da indústria automotiva também favorece essa visão. Geralmente,
ele ocorre em um intervalo de sete anos. Considerando que, nos últimos meses,
as principais empresas do setor anunciaram investimentos que superam a marca
dos R$ 15 bilhões, nos próximos cinco anos, é admissível que a eletrificação do
mercado nacional fique para a série seguinte de investimentos.
O
risco que se corre, segundo Rafael Cagnin, do Iedi, é ver a indústria perder
ainda mais competitividade, algo que já vem acontecendo desde os anos 1980. “O
conceito de indústria 4.0 pressupõe muito mais do que a mudança da matriz
energética”, diz o economista. Quando o termo foi cunhado, há sete anos, na
Alemanha, ele já agregava uma ideia de política industrial nacional que tinha
como objetivo reverter uma tendência de perda de relevância do setor em
economias desenvolvidas, principalmente em virtude da massificação da produção
chinesa. “Estamos num momento de incerteza crônica. Mudará tudo, desde a
fábrica até o produto. Talvez até o conceito de linha de produção desapareça”,
diz Cagnin. Mas, há uma certeza: ficar parado, esperando, é o pior negócio.
(istoedinheiro)
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