Repotenciação garantiria geração de energia, reduzindo
necessidade de novas hidrelétricas
O Brasil poderia
ganhar a capacidade de produzir mais 11.000 MW de potência elétrica sem
construir uma única nova usina, apenas reformando e aproveitando espaços já
existentes em hidrelétricas já instaladas, mostra a dissertação de mestrado
“Potencial de repotenciação de usinas hidrelétricas no Brasil e sua
viabilização”, defendida pela engenheira Elisa de Podestá Gomes na Faculdade de
Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp. Esse número se aproxima da potência
instalada total prevista para a Usina de Belo Monte, no Rio Xingu, de 11.233
MW.
“Na realidade
brasileira ainda há espaço para a instalação de novas usinas hidrelétricas,
sujeitas, evidentemente, a pressões e exigências socioambientais crescentes.
Por outro lado, a repotenciação de usinas hidrelétricas existentes tem sido
muito pouco explorada até o momento. Tratam-se de duas abordagens alternativas,
porém complementares, no atual contexto brasileiro. É claro que, quanto mais
obras de repotenciação forem realizadas, mais se posterga a necessidade de
construção de algumas novas usinas”, escreve a autora na conclusão de seu
trabalho.
“Repotenciação” é uma
reforma da estrutura de geração energética de uma usina hidrelétrica, com a
substituição de tecnologias ultrapassadas por alternativas modernas. “Quando
uma usina opera há muitos anos, mais de 20, 30, 40 anos em funcionamento, seus
componentes se desgastam”, explicou Elisa ao Jornal da Unicamp. Depois de algum tempo, é preciso
trocar os principais componentes da usina, e pelo fato de a tecnologia atual
ser mais desenvolvida do que quando a usina foi construída, em vez de apenas
fazer uma manutenção, é possível aprimorar seu desempenho. “O objetivo é sempre
conseguir condições melhores. Tornar a usina melhor do que era, em questões
técnicas e na produção de potência e/ou energia para o Sistema Interligado
Nacional”.
O processo, nota a
autora, é mais barato que a construção de mais usinas, já que não envolve novas
obras de construção civil. Além disso, tem menos impacto ambiental e social,
uma vez que toda a fase traumática de instalação da estrutura – a formação do
lago, o deslocamento de populações – já ocorreu no passado. “A repotenciação é,
sem dúvida, uma das melhores e mais econômicas formas de aumentar a capacidade
de geração em um curto espaço de tempo sem impactos ambientais significativos”,
diz a dissertação.
Para realizar sua
análise, Elisa seleciona 43 usinas hidrelétricas brasileiras com mais de
30 anos e com unidades de geração de energia de 15 MW ou superior. Essas usinas
representam quase 20% de toda a potência instalada no país. Ela simula três
tipos de repotenciação: mínima, leve e pesada. A primeira apenas recupera a
capacidade original da usina, enquanto que a última envolve a troca de componentes
essenciais da unidade. A dissertação afirma que, se todas as 43 usinas
passassem por processos de repotenciação pesada, o aumento da capacidade
instalada no Brasil seria de mais de 6.000 MW.
Poços
Outros 5.000 MW
poderiam ser ganhos, afirma o trabalho, com o aproveitamento dos “poços” de
usinas existentes – “poço”, no caso, é o nome dado ao espaço deixado na
estrutura da usina para a instalação de equipamentos geradores de energia que,
por vários motivos, nunca chegaram. “Eram obras de concessionárias estatais,
que depois de alguns anos não tinham dinheiro para completar a obra, por
exemplo”, disse Elisa. A dissertação identificou 12 usinas como “poços” por
todo o Brasil, do Paraná ao Pará.
Para fazerem sentido
econômico para as concessionárias que assumiram a tarefa de produzir energia no
Brasil, após a reorganização do setor elétrico e as privatizações realizadas no
governo Fernando Henrique Cardoso, as estratégias defendidas na dissertação
requerem mudanças no sistema regulatório atual, diz Elisa.
“Após este período de
privatizações, o governo brasileiro esperava que a iniciativa privada
investisse no setor elétrico. Contudo, por diferentes motivos, como a falta de
um marco regulatório bem definido, planejamento energético e regras para o
setor, e um cenário institucional incerto, o investimento ocorrido não foi o
esperado e nem suficiente”, diz o texto, que recorda a crise do “apagão” de
2001.
“Com o racionamento
que ocorreu em 2001, as paradas de máquinas para manutenção ou a suspensão de
obras teriam que ser muito bem planejadas, pois causam queda na produção de
energia”, lembra a dissertação. “O custo de indisponibilidade das máquinas
geradoras foi encarecido, aumentando os valores de uma obra de repotenciação, a
ponto, até, de inviabilizar este tipo de projeto”.
No governo Lula, uma
segunda reforma do setor elétrico entrou em curso. “No novo modelo
institucional do setor elétrico brasileiro, a geração compete pelo mercado
através dos leilões de energia. As empresas concessionárias distribuidoras devem
contratar seu suprimento com cinco anos de antecipação, para sinalizar aos
geradores seu aumento de demanda com a devida antecedência para que os
geradores possam executar a tempo suas eventuais obras de expansão”, descreve o
trabalho.
“O problema que existe
é com a regulação da energia”, explicou a autora, sobre os obstáculos atuais à
repotenciação e ao aproveitamento dos “poços”. “Todo o sistema elétrico é
interligado, e para fazer parte dele, é preciso participar de leilões de
energia. O preço que vence o leilão – o mais baixo – é a remuneração daquela
usina pelo período de concessão. Você sempre vai ganhar aquele valor, para
gerar o tanto que for solicitado pelo ONS. Não há incentivo para gerar mais. Eu
fiquei muito inconformada quando descobri isso”, disse ela à reportagem. “Não
há incentivo para produzir além do contratado. Hoje não há nenhuma lei que diga
que a concessionária será reembolsada se investir para aumentar sua potência.”
Elisa argumenta,
ainda, que tanto a repotenciação quanto o uso dos “poços” reduziriam as
dificuldades de logística, como a construção de novas linhas de transmissão, e
também os riscos do sistema, já que longas linhas, como as que deverão ligar as
futuras usinas da região amazônica ao Centro-Sul do país, ficam expostas a intempéries.
“O governo divulgou
que quer antecipar o leilão da usina de Tapajós, uma usina nova, também na
região norte, e de algumas linhas de transmissão no norte, depois de mais um
blackout ocorrido em fevereiro“, disse Elisa. “Contudo, novamente, não se pensa
em outras possibilidades, como a repotenciação. Como já foi dito, a construção
de uma nova usina demora muito mais tempo do que uma obra de repotenciação”.
A pesquisadora lembra
ainda que, conforme aumenta a participação de usinas termelétricas, usinas
hidrelétricas sem reservatório de acumulação – as chamadas “usinas de fio
d’água”, como Belo Monte – e outras geradoras que utilizam fontes de energia
com grande variabilidade e baixa previsibilidade, como as eólicas, aumenta
também a necessidade de opções para garantir o atendimento dos momentos de
demanda máxima do setor elétrico, a chamada ponta de carga. “A supermotorização
de usinas hidrelétricas possibilita isto”, disse Elisa. “Mas as atuais regras
de funcionamento do setor elétrico brasileiro não provêm estímulos econômicos
para tal. Não existem, por exemplo, leilões de capacidade adicional para
atendimento de ponta, como ocorre em diversos países. Isto precisa mudar logo,
para se evitar blackouts recorrentes no futuro”.
História
Repotenciações são
comuns em países que adotaram a energia hidrelétrica antes do Brasil, e que já
têm quase todo seu potencial de geração hídrica aproveitado. “Países como a
Áustria, Canadá, Estados Unidos da América, Finlândia, Noruega e Rússia, dentre
outros, possuem um parque hidrelétrico mais antigo que o brasileiro. Por já
terem utilizado quase todo o seu potencial hidráulico e as outras fontes de
energia serem mais caras e, muitas vezes, poluentes, a repotenciação de usinas
hidrelétricas antigas tem sido comum nestas nações”, afirma a dissertação. “Nos
Estados Unidos, por exemplo, mais de 110 usinas hidrelétricas já tinham sido
repotenciadas até 2006”.
Embora a maior parte
da eletricidade consumida no Brasil seja gerada em usinas hidrelétricas, com
uma participação de mais de 83% em 2009, o país ainda conta com um grande
potencial inexplorado, mas quase todo ele – quase 90% – concentrado na região
Norte, nas bacias dos rios Amazonas e Tocantins.
Por conta disso, “boa
parte do potencial hidrelétrico remanescente possui um custo de transmissão
elevado, devido às longas distâncias envolvidas e inúmeros problemas
socioambientais, associados, muitos deles, à localização da maioria deste
potencial remanescente na Amazônia”, lembra o texto.
Algumas usinas
brasileiras já foram repotenciadas. O primeiro caso, citado na dissertação, foi
o da usina de Rasgão, no Rio Tietê, propriedade da Empresa Metropolitana de
Águas e Energia (EMAE). Localizada em Pirapora do Bom Jesus, a usina viu suas
primeiras unidades entrarem em operação em 1925. Desativada em 1961, foi
repotenciada em 1989, com aumento de 50% na capacidade instalada, e opera até
hoje.
A dissertação
registra 18 usinas brasileiras que já passaram por processos de repotenciação,
modernização ou grandes reparos, totalizando 94 unidades geradoras de energia.
As unidades afetadas tinham idade média de 35,7 anos e obtiveram um aumento
médio de potência de 17,8%.
Depois da usina de
Rasgão, a mais antiga unidade repotenciada foi a Pequena Central Hidrelétrica
(PHC) de Dourados, da CPFL, no Rio Sapucaí-Mirim. Construída em 1926, ela foi
reformada em 2000, com um ganho de 68% no potencial instalado, chegando a 10,8
MW.
As primeiras
repotenciações no Brasil, após a de Rasgão, ocorreram em 1996, afetando as
usinas de Jupiá (de 1969) e de Ilha Solteira (de 1973). Os ganhos de potência
instalada foram de 9,9% e 6,6%, respectivamente. Já a mais recente foi a da
usina de Três Marias, no Rio São Francisco. Suas operações tiveram início em
1962, e a instalação passou pelo processo em 2011, com ganho de potência de
1,5%. (ecodebate)
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