domingo, 30 de março de 2014

Voo verde

Estudo incentiva a produção de bioquerosene para a aviação civil.
A conta já está feita. A aviação comercial deverá reduzir em 50% as emissões de dióxido de carbono (CO2) até 2050 em relação ao que foi emitido pelos motores de aviões em 2005.
Para isso, um grande esforço de pesquisa e desenvolvimento está sendo feito em vários países por instituições e empresas no sentido de alcançar um querosene não mais produzido de petróleo, mas de origem renovável, que lance menos gases nocivos na atmosfera.
O bioquerosene, como está sendo chamado, tem grandes chances de levar o Brasil a novamente se tornar um centro de referência mundial importante para o desenvolvimento e produção de um biocombustível como foi com o álcool e o biodiesel. Essa tendência está destacada no estudo “Plano de voo para biocombustíveis de aviação no Brasil: plano de ação” apresentado no início de junho, em São Paulo, e patrocinado por duas das três maiores fabricantes de aviões do mundo, a Boeing e a Embraer, com financiamento da FAPESP e coordenação do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (NIPE) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Também participaram do estudo, desenvolvido ao longo de um ano com a realização de 8 workshops, 33 parceiros, entre empresas nacionais e internacionais, universidades e institutos de pesquisa.
O estudo apresenta várias rotas tecnológicas que podem partir de matérias-primas - como a tradicional cana-de-açúcar até algas, gordura animal, óleos vegetais, material lignocelulósico, amidos e lixo urbano – e utilizar variadas tecnologias de conversão e refino até a obtenção do bioquerosene. Nessas etapas, indica o estudo, ainda existem muitas lacunas importantes no âmbito tecnológico e de custos a serem preenchidas. São dificuldades técnicas que vão exigir a participação de todos os envolvidos, de fabricantes de aviões a empresas de aviação, desenvolvedores e fornecedores de combustível, além das entidades certificadoras mundiais. Outro fator a ser levado em consideração é o da logística de produção e distribuição do biocombustível para 108 aeroportos nacionais onde pousam as grandes aeronaves, o que representa 1 milhão de voos programados apenas no espaço aéreo brasileiro, além da necessidade de servir aos 62 mil voos internacionais que partem por ano do Brasil, com destino a 58 aeroportos de 35 países. Esses voos para o exterior representam 60% do consumo de querosene para aviação no país.

Frota da Embraer: empresa se une à Boeing para pesquisar alternativas para o querosene de petróleo.
O bioquerosene para ser qualificado precisa de critérios específicos e rigorosos. É preciso que ele satisfaça as mesmas especificações técnicas do combustível atual para ser considerado drop-in, característica que garante o pronto abastecimento nos motores atuais e naqueles ainda em desenvolvimento, além de poder ser misturado com querosene de aviação convencional. “É consenso que nas próximas décadas não vai haver uma grande mudança tecnológica nos combustíveis para a aviação comercial, como a incorporação de energia solar, células a combustível que funcionam com hidrogênio ou baterias de lítio, por exemplo. Esses equipamentos ocupam muito espaço e são pesados, o que exige maior gasto de combustíveis”, explica o professor Luís Augusto Cortez, vice-reitor de relações internacionais da Unicamp e coordenador do estudo. “Não há como diminuir as emissões apenas com a melhora da eficiência dos motores e por isso estamos incentivando a pesquisa para novos biocombustíveis”, diz Mauro Kern, vice-presidente executivo de engenharia e tecnologia da Embraer. A empresa anunciou em junho a nova linha dos seus jatos, a E2, que começa a voar a partir de 2018 com menos gastos de combustível e diminuição das emissões.
Entre as tecnologias mais avançadas em desenvolvimento no Brasil e que foram citadas durante o anúncio do estudo estão os bioquerosenes da Amyris e o da Solazyme, duas empresas de bioenergia, ambas com origem no estado da Califórnia nos Estados Unidos. As duas fazem parte do grupo de parceiros no estudo coordenado pela FAPESP. A primeira, fundada por pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Berkeley, está no Brasil desde 2007. A empresa já produz desde dezembro de 2012, no município de Brotas, no interior paulista, o farneseno, um produto líquido feito a partir do caldo de cana com o uso de linhagens de leveduras Saccharomyces cerevisiae modificadas geneticamente.
Esses microrganismos transformados atuam no processo de fermentação e levam a produção do farneseno, e não do etanol. A partir desse produto é possível, por processos de refino específicos, fabricar tanto o bioquerosene como produtos para a indústria química ou, ainda, o diesel que foi o primeiro alvo da empresa no Brasil (ver Pesquisa FAPESP n° 153), utilizado experimentalmente em algumas frotas de ônibus nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
“Com um processo mínimo de hidrogenação, o farneseno se transforma em farnesano, que nada mais é do que o bioquerosene”, diz Joel Velasco, vice-presidente sênior da Amyris. “As nossas patentes e tecnologia estão principalmente nas linhagens da levedura desenvolvidas pela Amyris, porém o farnesano não é um produto transgênico”, diz Velasco. “Até agora o farneseno foi produzido em escala relativamente pequena, resultando obviamente em custos maiores que o querosene tradicional. Porém esses custos já estão reduzindo na medida em que aumentamos a escala”, diz Velasco. Fundada em 2003, a Amyris recebeu investimento, na forma de compra de parte das ações, da Total, a quinta maior companhia de petróleo e gás do mundo, com sede na França e atualmente a maior distribuidora de querosene de aviação na Europa. “Quando estivermos operando em escala industrial, esperamos ser a alternativa mais competitiva dentre os querosenes de aviação renováveis”, diz Velasco.
1 Motores do Boeing 747: bioquerosene para voos internacionais
2 Design do E2: novo jato da Embraer vai ter motores mais econômicos
Para ser um fornecedor de bioquerosene, as empresas que desenvolvem esse biocombustível precisam receber a aprovação da Sociedade Americana para Testes e Materiais (ASTM, na sigla em inglês). Como parte desse processo, foram realizados voos-teste com no máximo 50% de biocombustível misturado a igual porção de combustível tradicional. Foi o que aconteceu quando a Amyris, junto com a Total, supriu com bioquerosene um Airbus 321 durante o Paris Air Show. “O combustível usado foi produzido com cana-de-açúcar do Brasil”, diz Velasco. Antes, em junho de 2012, a empresa já havia fornecido bioquerosene para um voo no Rio de Janeiro durante a Conferência Rio+20. Nesse caso, a aeronave foi um jato E195 da Azul Linhas Aéreas, fabricado pela Embraer. Em junho deste ano, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) publicou a especificação brasileira para bioquerosene de aviação, alinhada com os procedimentos internacionais, possibilitando que voos comerciais possam usar o biocombustível no país.
Mais de 1.500 voos comerciais e militares já foram realizados com misturas de querosenes renovável e fóssil. A Solazyme também se vale de testes em aeronaves tanto para obter os certificados como para verificação e análise dos fabricantes de aviões. O primeiro voo comercial com o bioquerosene produzido pela empresa aconteceu em 2011, num Boeing 737-800 da United Airlines, entre as cidades de Houston e Chicago, numa distância de 1,7 mil quilômetros. Segundo dados da Solazyme, o voo deixou de emitir de 10 a 12 toneladas de CO2 na atmosfera. Essa quantidade é equivalente ao percurso de 48 mil quilômetros de um automóvel de passageiro médio utilizando gasolina nos Estados Unidos. A empresa, fundada em 2003 e no Brasil desde 2011, produz bioquerosene a partir de microalgas alimentadas com açúcares. Depois da “engorda” em fermentadores, elas geram óleo em seu interior. Por esmagamento, é feita a extração do óleo, o qual, após um processo de refino semelhante ao utilizado pela indústria petroquímica, é fracionado em vários tipos de biocombustíveis e produtos para a indústria química. “Fazemos um craqueamento no óleo produzido pela alga.
Depois vem a fase de hidrogenação e isomerização resultando, entre outros produtos, num bioquerosene que atende às especificações da aviação”, diz Rogério Manso, diretor comercial global da Solazyme. “Para desenvolver nosso processo, selecionamos na natureza indivíduos entre as microalgas que são mais adaptados a produzir óleo. Depois, por meios tradicionais de seleção, induzimos a mutações, e por fim existe um trabalho de engenharia genética para a seleção final das nossas cepas de microalgas”, diz Manso.
1 Usina da Amyris, em Brotas (SP)
2 Cultivo de microalgas da Solazyme
A Solazyme, no Brasil, firmou uma parceria com a empresa Bunge, produtora de óleos vegetais para o mercado de nutrição e biodiesel, que possui usinas de cana- de-açúcar. Assim, a Solazyme Bunge Produtos Renováveis está construindo uma unidade de produção ao lado de uma usina, no município de Orindiúva, no interior paulista. O óleo primordial é produzido a partir de um processo de fermentação do açúcar existente no caldo de cana por meio das microalgas, cuja espécie a empresa não divulga o nome. “Pelo nosso processo o caldo de cana é transformado em um óleo de alto valor agregado”, diz Walfredo Linhares, diretor da Solazyme no Brasil. Ele informa que a empresa já tem parcerias com a Volkswagen e contrato de fornecimento para a Marinha norte-americana que não quer depender mais exclusivamente dos derivados de petróleo. A produção no Brasil deve começar no final de 2013 e a Solazyme Bunge conta com um investimento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) de R$ 246 milhões. A fabricação do bioquerosene no Brasil ainda depende de acertos com alguma outra empresa especializada em refino ou mesmo com a construção de uma unidade própria. Tanto a Solazyme quanto a Amyris podem adaptar as tecnologias próprias para outros tipos de açúcar como a beterraba na Europa, o amido do milho, nos Estados Unidos, e também o bagaço de cana-de-açúcar.
Outra tecnologia de fabricação de bioquerosene renovável, dessa vez desenvolvida na Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Unicamp, sob a coordenação do professor Rubens Maciel Filho, está na escala de laboratório e pronta para passar para uma linha de produção-piloto (ver Pesquisa FAPESP n° 164). “Atingimos o máximo de produção que pode ser feita dentro de um ambiente de laboratório, agora estamos trabalhando para captar recursos, ampliar a produção e fazer uma avaliação econômica do nosso bioquerosene e em paralelo um estudo de sustentabilidade”, diz Maciel, que também é um dos coordenadores do Programa de Pesquisa em Bioenergia (Bioen) da FAPESP. “Um acordo comercial está sendo negociado”, diz ele sem revelar o nome da empresa.
Nesse processo, vários óleos e gorduras podem ser usados conforme a disponibilidade local, o que contribui com a logística de matéria--prima com importante impacto nos custos de produção. “O biocombustível é produzido com óleos vegetais, etanol e um catalisador específico que promove a reação sem a necessidade de microrganismos geneticamente modificados”, diz.
Os exemplos de processos em desenvolvimento no país para produção de bioquerosene renovável mostram que o Brasil busca se firmar na linha de frente no mundo dos biocombustíveis.
“O país tem vantagens relevantes e uma situação diferente à do etanol e do biodiesel, cuja aceitação por parte das empresas resultou do incentivo dos programas de governo. Agora é diferente. Existe uma demanda global por parte das companhias de aviação para um combustível que emita menos CO2”, diz o professor Luiz Horta Nogueira, da Universidade Federal de Itajubá (Unifei), em Minas Gerais, participante do estudo. O trajeto, até caminhões de bioquerosene adentrarem os aeroportos para abastecer os aviões, ainda é longo e depende também da comprovação de quanto cada biocombustível deixa de emitir CO2 e outros poluentes, em comparação ao feito de petróleo. “Ainda temos uma dificuldade em estabelecer e analisar o ciclo de vida das emissões do bioquerosene. Não existem dados confiáveis, conforme diagnosticado em nosso estudo”, diz Cortez. (revistapesquisa.fapesp.br)

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