sábado, 14 de outubro de 2017

A Disparada do Carro Elétrico

Ao anunciar que proibirão a venda de carros a gasolina, França, Inglaterra, China e Índia promovem uma revolução silenciosa. E o Brasil come poeira.

Michelli Almeida, dona de um raro carro elétrico em São Paulo.

“Há seis meses tenho um carro elétrico. Com ele, trabalho, pego filho na escola, vou à academia, pego marido no trabalho, vou ao supermercado... O dia a dia é parecido com o de qualquer outro carro. A diferença é que ele não tem o problema de jogar fumaça no ar. Quando busco meu filho com outro carro, comum, ele pergunta ‘mãe, o que você está fazendo com esse poluente?’.” Ao lado de seu carro, a empresária Michelli Almeida tenta arrebanhar seguidores em um estande no Salão Latino-Americano de Veículos Híbridos-Elétricos, em São Paulo. Michelli faz parte da Abravei, grupo de donos de carros elétricos, criado há cinco meses, que tenta convencer donos de carros a combustão – movidos a álcool, gasolina ou diesel – a apostar num veículo que abastece na tomada. No Brasil, a pregação do carro elétrico alcança poucos seguidores. O salão de híbridos e elétricos atraiu 6 mil visitantes, menos de 1% do público do último Salão do Automóvel. Em 2016, o Brasil tinha uma frota de 2.500 carros elétricos (0,006% do total) – somando os de carregar na tomada, os com gerador adicional a combustão e os híbridos, com motores elétricos e a combustão combinados.

Noruega, país com maior parcela (45), de carros elétricos.

No mundo, os elétricos representam apenas 1% da frota, mas ensaiam uma aceleração impressionante. Fala-se deles há muito tempo, mas 2017 se tornou um marco em sua adoção. Em julho, a França anunciou que proibirá a venda de carros com motor a combustão a partir de 2040. “É uma revolução”, diz Nicolas Hulot, ministro da Ecologia do governo Emmanuel Macron. Dias depois, a Inglaterra prometeu o mesmo. Na Alemanha, o governo da presidente Angela Merkel discute proibir a partir de 2030. País com maior participação de elétricos – 40% das vendas de zero-quilômetro –, a Noruega pretende proibir já em 2025. As duas nações mais populosas do mundo, Índia e China, anunciam planos.

Em estados e cidades com dinheiro, a mudança acelera. A Califórnia pretende ter 15% de carros elétricos em 2025. Paris planeja proibir a circulação de carros a gasolina ou diesel a tempo dos Jogos Olímpicos de 2024. “Até lá, a cidade deve banir veículos particulares com motor a combustão”, diz o vice-prefeito Jean-Louis Missika. Fruto de um plano urbanístico do século XIX, uma era pré-carro, a capital da França pode se tornar a primeira metrópole da era pós-carro. Uma cidade com menos ruído e ar mais puro.

Carros elétricos emitem tão pouco ruído que o departamento de trânsito dos Estados Unidos os obriga a produzir um som apenas para evitar o atropelamento de pedestres distraídos. Ruas mais silenciosas melhorarão a qualidade de vida na região central das cidades. O maior impacto dos elétricos, porém, se dará na qualidade do ar. A Organização Mundial da Saúde registra 3 milhões de mortes, por ano, devido à poluição atmosférica. Segundo o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), o setor de transportes responde por 14% das emissões de gases de efeito estufa. O Acordo de Paris para restrição da emissão desses gases, assinado por 195 países, entre eles o Brasil (mas abandonado pelos Estados Unidos), dificilmente se cumprirá sem formas alternativas de mobilidade.

Os carros elétricos ajudarão a enfrentar o problema por terem o triplo da eficiência dos modelos convencionais. Transformam 60% da energia abastecida em energia cinética, em comparação com os 20% nos carros a gasolina. Mesmo quando a fonte da eletricidade é suja – segundo o Banco Mundial, 40% da eletricidade no mundo vem de usinas a carvão –, o carro a pilha traz vantagens. Se gerada numa usina, a fumaça fica distante da população e pode ser filtrada com mais controle do que milhões de escapamentos. O carro elétrico beneficia a cidade também por funcionar como reservatório de energia. “Parece um carro, mas não é apenas um carro. É uma bateria com rodas”, diz Masaki Toriumi, vice-presidente da Nissan, sobre a nova geração do Leaf, o elétrico mais vendido do mundo. “Ele pode carregar energia em horários de tarifa barata e fornecer de volta à rede em horários de tarifa cara.” Graças à integração dos carros, o edifício sede da Nissan, em Yokohama, no Japão, reduziu seu impacto no sistema de distribuição de energia na área. Nos horários de pico, três carros, plugados a pontos de recarga, dão uma força. Se faltar luz, eles mantêm o prédio aceso por quatro horas. O carregador dos carros Tesla vai além, ao integrar painéis de captação de energia solar. A empresa enviou centenas desses aparelhos para socorrer Porto Rico, devastado pelo Furacão Maria. Fundada em 2003 para fazer carros elétricos, entre abril e junho a Tesla foi a montadora com maior valor de mercado dos Estados Unidos, à frente da General Motors.

A transição para os veículos elétricos afeta a geopolítica e a dinâmica econômica global. Como metade do petróleo hoje se destina a produzir gasolina, a nova perspectiva já desacelera o trabalho de prospecção e perfuração de poços. Produzir petróleo não se traduzirá mais em tanta influência internacional. As reservas que o Brasil encontrou no pré-sal podem permanecer eternamente lá. “A janela do pré-sal já fechou”, disse David Zylbersztajn, ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Países ricos em substâncias usadas na fabricação de baterias – como a Bolívia, dona da maior reserva de lítio – ganham importância. A evolução reembaralha a disputa entre montadoras. Em abril, o governo da China anunciou que não mais classificará como elétricos os carros híbridos. A decisão envolve questões ambientais (híbridos produzem bem menos fumaça, mas produzem) e comerciais. Hoje coadjuvantes, as montadoras chinesas querem ganhar com a mudança. Maiores consumidores de carros do mundo, os chineses tentam assumir a ponta na nova tendência. A indústria acompanha: Volvo, Jaguar e Land Rover anunciaram que, a partir de 2020, lançarão apenas carros elétricos ou híbridos. Especialistas divergem sobre quando eles ultrapassarão os modelos a combustão. Para a empresa de energia francesa Total, os elétricos representarão 30% das vendas em 2030. A partir daí, a demanda por petróleo deverá se estabilizar ou cair, diz Joel Couse, economista-chefe da Total. Daniele Schillaci, vice-presidente da Nissan, diz acreditar que o custo de produção alto ainda seja o principal fator a conter o avanço dos elétricos – mas ele cai constantemente. Entre 2010 e 2016, o preço das baterias de íon de lítio caiu 73%.

Enquanto o mundo acelera, o Brasil engata a primeira marcha. O código de obras de Brasília será o primeiro do país a exigir tomadas em estacionamentos. Postos de combustível, shopping centers e supermercados vêm instalando voluntariamente pontos de recarga – na cidade de São Paulo, há cerca de 200. Mas não podem cobrar pela eletricidade, pois a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) não regulamentou o comércio. Em 2015, o governo zerou o Imposto de Importação dos carros elétricos – mas manteve o das motos em 20%. “Os carros elétricos pagam 25% de IPI, em comparação com os 11% de um veículo a combustão. Não faz sentido”, diz Helder Boavida, presidente no Brasil da BMW, única marca a vender carros elétricos no país. 

Maior fábrica chinesa de carros elétricos, a BYD inaugurou em abril linhas de produção de ônibus e baterias em Campinas, São Paulo. Ela aguarda planos de renovação do transporte público das capitais – como a Lei de Mudanças Climáticas, que a prefeitura de São Paulo aprovou em 2009, mas não pôs em prática. O governo federal está prestes a apresentar o Rota 2030, programa que pretende nortear o desenvolvimento da indústria automotiva no país nos próximos 15 anos. No rascunho em negociação com a Anfavea, a associação dos fabricantes, os elétricos têm papel secundário. “Se taxar os carros por eficiência energética, o Rota pode incentivar híbridos e elétricos”, diz Ricardo Bastos, diretor de relações governamentais da Toyota e vice-presidente da Anfavea. A Nissan, que há anos planejava fabricar o Leaf no Rio de Janeiro, desistiu. Antes de importar o novo modelo, a empresa negocia com prefeituras e universidades a criação de um microcosmo capaz de aproveitar o potencial do produto – algo parecido com o que a cidade de Rio Claro, em São Paulo, fez, em 1975, para atender ao Gurgel Itaipu. (globo)

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