Regras são fundamentais para a ampliação da matriz energética nacional
Para o jornalista e ambientalista Washington Novaes, “está faltando uma discussão mais aprofundada e clara com a sociedade sobre a situação real da crise na matriz energética”. Antes de pensar em aumentar as fontes de energia, Novaes ressalta que é importante discutir sobre a potência instalada, a oferta disponível e a demanda real.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, ele critica a construção de Angra III e chama a atenção para um possível risco na utilização dos biocombustíveis. Ao invés de ser uma solução para o País, eles podem se transformar num problema. A plantação incorreta de cana-de-açúcar, por exemplo, pode acabar com a agricultura familiar, o que contribui para “promover o inchaço das cidades e das periferias urbanas”, explica o ambientalista.
Graduado em Direito, jornalista e ambientalista, Washington Novaes já atuou em várias publicações brasileiras. Ganhou prêmios como O Prêmio de Jornalismo Rei de Espanha, o troféu Golfinho de Ouro e o Prêmio Esso Especial de Meio Ambiente. Atualmente, é colunista dos jornais O Estadão e O Popular, de Goiânia.
Novaes já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Destacamos a publicada na edição 215, de 15-04-2007, intitulada “Uma coisa é certa: a Terra continuará com o ser humano, ou sem ele”. O material está disponível no endereço do IHU (www.unisinos.br/ihu).
IHU On-Line – A crise da matriz energética brasileira denuncia um padrão de desenvolvimento sem planejamento, que consome muita energia e não protege os mananciais. Para o senhor, quais foram os principais equívocos na construção e implantação da matriz energética brasileira?
Washington Novaes – Está faltando uma discussão mais aprofundada e clara com a sociedade sobre a situação real da crise na matriz energética. É necessário discutir qual é a potência instalada, qual é a oferta de energia e a demanda real. A cada dia, nós ficamos ouvindo que acontecerá um novo apagão, que faltará energia. Enquanto isso, a Universidade de Campinas (Unicamp) divulgou um longo estudo que produziu em participação com o WWF, dizendo que o Brasil pode economizar 30% da energia que consome atualmente com programas de eficiência energética e de redução do consumo. O País pode economizar mais 10% se fizer repetência de usinas que já estão fora do prazo e nas quais bastaria substituir alguns equipamentos. Além disso, pode ganhar mais um pouco se criar um programa para reduzir as perdas da transmissão de energia à longa distância. Nós estamos perdendo 15% da energia na transmissão, enquanto na Europa perdem 5 e 6%. Então, com algumas medidas, poderíamos ganhar 50%. No entanto, o governo só pensa em construir novas mega-hidrelétricas com investimentos gigantescos e até usinas nucleares. Mas a discussão não acontece e passa ao largo dos pronunciamentos do governo e do setor elétrico.
Economia de energia
Que se pode economizar energia, nós já sabemos e vimos com o apagão de 2001. Naquela ocasião, com programas de eficiência energética e de adequação ou substituição de aparelhos, nós conseguimos economizar 30% da energia. Até hoje ninguém mostrou que houve qualquer prejuízo com isso, a não ser a redução da venda das empresas distribuidoras de energia elétrica. Como o consumidor aprendeu a substituir equipamentos, lâmpadas incandescentes por florescentes, o consumo brasileiro ficou 20% abaixo do que era em 2001. Então, esse debate tem que anteceder qualquer discussão sobre a matriz energética brasileira, o que não está acontecendo.
IHU On-Line – O que implica a opção brasileira de construir sua matriz energética baseada, principalmente, nas hidrelétricas? O que isso significará e representará para o País daqui a alguns anos?
Washington Novaes – Há várias questões envolvidas aí. Uma consiste no argumento de que, com a construção dessas obras, o PIB vai crescer. Mas o crescimento do PIB não significa uma grande vantagem para o País. O Lutzenberger costumava dizer que não há nada melhor para o crescimento do PIB do que um terremoto, porque o prejuízo não é contabilizado. Assim, o crescimento do PIB não é em si, abstratamente, um bem. Além disso, o que não for aplicado nessas hidrelétricas pode ser aplicado em outras áreas, já que o Brasil está muito carente. Esses investimentos podem ser direcionados para o transporte, para a educação e saúde. Agora, há também uma pressão muito grande das mega-construtoras e das mega-empreiteiras, para que esse caminho seja adotado, mas o País não é obrigado a segui-lo.
O que essas hidrelétricas representarão no futuro dependerá da demanda real de energia que o Brasil terá daqui 20 ou 30 anos. Daqui a algum tempo, pode haver energia sobrando ou pode haver desperdício: tudo irá depender das medidas tomada pelo governo.
IHU On-Line – Se existem tantos argumentos contrários à implantação de energia nuclear no Brasil, tendo em vista as alternativas naturais existentes, por que o governo insiste na ideia de construir Angra III?
Washington Novaes – A energia nuclear, em primeiro lugar, é mais cara que outros formatos de energia que estão ao nosso alcance. Em segundo lugar, ela é mais insegura e está sujeita a riscos muito sérios. Em terceiro, ela é muito vulnerável a ataques de terroristas. E, em quarto lugar, destaco o problema mais grave de todos: ninguém arranjou até hoje, no mundo inteiro, solução para o problema do lixo nuclear, que é altamente radioativo, perigoso e não tem onde ser colocado. O Brasil mesmo continua mantendo todo seu lixo nuclear das usinas Angra I e II dentro das próprias usinas. Isso é um absurdo, porque o risco radioativo dura por milhares de anos. Então, a alternativa nuclear não tem nenhuma razão de existir no Brasil, já que o País dispõe de outros formatos. Além da hidrelétrica, o Brasil pode trabalhar com a energia solar, eólica, de mares. Desse modo, o País tem uma porção de possibilidades e não precisa de forma nenhuma de energia nuclear. Entretanto, há uma pressão muito grande, porque a opção pela energia nuclear permitiria desenvolver o ciclo completo do urânio e a exploração do mineral. Acredita-se que, como o Brasil tem muito urânio, a exploração traria desenvolvimento. Mas o desenvolvimento e o crescimento econômico não podem ocorrer a qualquer preço.
Argumentos para a construção de Angra III
São apresentados três argumentos para a construção da usina nuclear. Um deles é que o País já aplicou mais de um bilhão de dólares na compra desses equipamentos e já pagou aos produtores alemães; o segundo motivo é que isso permitiria também consumir e desenvolver a utilização do urânio; e há quem diga que há nisso uma pressão militar, pois os militares desejariam ter o domínio completo.
IHU On-Line – Ao rever a matriz energética brasileira, que medidas deverão ser tomadas para alcançar mudanças a longo prazo, garantindo a sustentabilidade energética?
Washington Novaes – Primeiramente, é necessário discutir qual é a demanda real de energia no País. Segundo, saber como ela pode ser suprida. Então, esse caminho que a Unicamp está apontando da eficiência energética, da conservação de energia é verdade. Se é verdade, nós temos que fazer isso imediatamente, ao invés de gastar dinheiro ampliando uma oferta de energia que não seria necessária. Em terceiro lugar, é preciso examinar todas as possibilidades da matriz energética e apresentá-las com muita clareza para a sociedade, para que ela consiga influir nessas decisões.
IHU On-Line – Especialistas dizem que a produção de biocombustíveis poderá gerar uma monocultura, encarecendo, consequentemente, os alimentos agrícolas. Quais são as implicações dos biocombustíveis para a agricultura familiar?
Washington Novaes – Os biocombustíveis podem ser uma das boas alternativas para o Brasil, mas isso está ameaçando se transformar num problema, ao invés de ser uma solução, pois está sendo feito sem nenhuma regra. O avanço da cana-de-açúcar para produzir o etanol, por exemplo, está sendo feito sem nenhum cuidado e se concentrando no Centro-Oeste, principalmente. Assim, corre-se o risco de repetir algumas coisas que já aconteceram em São Paulo, onde, por exemplo, a agricultura familiar e de alimentos foi expulsa para mais longe, e a cana-de-açúcar tomou conta de tudo. Isso significou, em primeiro plano, o encarecimento do custo dos alimentos. Em segundo plano, trouxe uma grande perda para a agricultura familiar e um deslocamento de uma grande parte das pessoas que trabalhavam na agricultura, o que ocasionou esse êxodo rural que ajudou a promover o inchaço das cidades e das periferias urbanas. Além disso, é preciso ter regras para as questões dos nutrientes, pois eles são um problema muito sério na cana-de-açúcar, porque eles vão para os rios e promovem eutroficação no mar e contribuem para a chuva ácida. Também existe a questão do trabalho nesses imensos canaviais, que é um trabalho semidegradante, em péssimas condições de remuneração. Tudo isso precisaria ser cuidado, além de evitar o conflito com outras culturas como está acontecendo em Goiás, os conflitos com a soja. Então, os biocombustíveis podem ser uma das alternativas das energias renováveis e menos poluentes, mas precisam ter regras, definições.
IHU On-Line – Com a escassez de recursos naturais no mundo, o Brasil se torna bastante visado pelo capitalismo mundial. Assim, muitos países buscarão financiar a produção de álcool e óleo diesel no Brasil. Como se dará essa relação de interesses nos próximos anos? O Brasil acabará vendendo sua matéria-prima, tendo que comprar produtos (combustíveis) de outros países?
Washington Novaes – A relação de interesses se dará na forma que nós formos competentes para fazer. Se formos competentes, estabeleceremos regras que não sejam prejudiciais para o País, caso contrário, isso poderá trazer muitos prejuízos. É preciso estabelecer regras também para a ocupação de terras. É fundamental que fique definido quais as áreas que precisam ser preservadas e as que podem ser ocupadas com plantação. Agora, tudo isso vai depender de como o Brasil irá estabelecer essas regras. No momento, o País não está estabelecendo regra nenhuma.
Se continuarmos nesse caminho, o Brasil pode seguir no que ele vem fazendo há 500 anos, que é exportar produtos primários a baixo custo, sem nenhuma remuneração pelos custos sociais e ambientais dessa produção, o que já acontece. E, enquanto isso, paga fortunas pelos produtos importados, porque é no exterior que os preços são determinados, tanto no que vendemos e compramos, seguindo-se regras que favorecem os países do Primeiro Mundo.
IHU On-Line – O senhor acha que o capitalismo internacional reserva para a América Latina o papel de se tornar um campo de plantio da agricultura para a geração de energia? Se não ocorrerem mudanças drásticas, o Brasil poderá ficar estagnado tanto no desenvolvimento industrial quanto na agricultura?
Washington Novaes – Não sei se é esse o projeto do capitalismo internacional, mas se for nós temos que ter competência para estabelecer as regras e cuidar dos nossos interesses. O País até pode ter índices de crescimento econômico, mas isso não significa que ele vá resolver os seus problemas. Nós estamos tendo o crescimento econômico e, ao mesmo tempo, resolvendo muito pouco os problemas de pobreza, de violência, de concentração urbana. E nós deveríamos pensar num novo modelo que colocasse no centro da nossa estratégia a questão dos serviços e dos recursos naturais. Esses são os fatores escassos no mundo, e assim, nós deveríamos trabalhar para valorizar tais elementos.
IHU On-Line – Que estratégias o senhor aponta para avançarmos na discussão em torno das políticas que comandam a área de recursos e serviços naturais?
Washington Novaes – Seria preciso que o Governo Federal tivesse uma política voltada para isso, que promovesse debates, que levasse essa questão para todas as áreas do governo e que cada área fosse obrigada a seguir as mesmas regras. Hoje, nós temos o Ministério do Meio Ambiente falando em transversalidade da questão ambiental, mas isso é apenas um discurso do Ministério. Onde essa transversalidade chega na agricultura brasileira? Onde ela chega nos transportes e em outras áreas? É preciso passar do discurso à prática, fazendo disso uma estratégia governamental. (Ecodebate)