Interação energia eólica, hidráulica e gás natural
Ainda no inicio deste ano,
estávamos envolvidos em pesquisas europeias sobre a integração das indústrias
de eletricidade e gás natural, nas quais um dos problemas mais discutidos é a
necessidade de construir estocagem elétrica. Nos últimos dez anos, com a
introdução de energia eólica, as térmicas a gás se tornaram o mecanismo preferencial
de “backup” do sistema (o uso das térmicas passou a responder de maneira
complementar a geração eólica).
No entanto, a introdução massiva de
produção eólica, e as grandes necessidades de resposta muito rápida associadas
a esta, gerou a necessidade de dispor, em alguma medida, de estocagem elétrica
para complementar o sistema de forma mais segura e econômica. No momento, a
maneira mais econômica de estocar algo de eletricidade (energia, não potência)
é a através da energia hidráulica. Por exemplo, é cada vez mais frequente na
Europa a proposta de usar usinas fio d’água combinadas com usinas de bombeio
puro.
Na maior parte destas discussões
europeias, o mundo ideal seria um sistema com reservatórios de grande porte. A
postagem de Losekann na semana passada (“Desafio do setor elétrico brasileiro:
novo papel dos reservatório”), chamou a atenção sobre os complexos problemas do
“mundo ideal” europeu (que pode ser observado no Brasil), nos permitindo
observar que a definição do papel dos reservatórios no mercado elétrico
nacional se tornou um tema central, e provavelmente retornará toda vez que a
decisão sobre a quantidade das reservas hidráulicas for colocada em questão.
Um dos motivos para se pensar no
papel da estocagem no sistema elétrico é a interação que esta terá com a
energia eólica. A energia eólica vai jogar um papel relevante no futuro do
sistema elétrico brasileiro. Os projetos de novos parques eólicos apresentados
para o próximo leilão somam uma capacidade de 8.999 (MW) e segundo as projeções
da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) no Plano Decenal de Expansão de
Energia, a capacidade instalada deve crescer de 1.403 MW (2011) para 15.563 MW
(2021), o que faria da energia eólica a segunda fonte de energia elétrica no
país (com 8,5% da capacidade instalada de geração nacional). Nesse contexto, o
sistema brasileiro enfrenta um conjunto de decisões particulares de um sistema
com reservatórios, que em grande medida não são tão relevantes em outros
sistemas mais térmicos.
O problema da definição da geração de
backup pode se relacionar também com o velho problema “potência firme ou
energia firme”. Num sistema térmico, supondo um fluxo de combustível mais ou
menos fiável, a limitação é a capacidade (“potência”) das usinas. Num sistema
hidrelétrico com estocagem, a limitação é o reservatório (“energia”).
Tradicionalmente, os sistemas elétricos mais térmicos, quando a limitação é de
potência, precisam de uma coordenação de curto prazo muito precisa (porque não
há estocagem). Nos sistemas elétricos mais hidráulicos, as necessidades
principais são de coordenação intertemporal, i.e. quando gastar a água. Dessas
características técnicas são derivados sistemas de coordenação muito
diferentes. Na Europa e Estados Unidos (sistemas tipicamente térmicos), é
preciso escolher entre um número grande de usinas com diferentes custos
aproximadamente no mesmo período. No Brasil, a escolha se dá entre usinas com
aproximadamente o mesmo custo, mas em diferentes períodos.
Nesta postagem, discutiremos se a
energia eólica implica mudanças conceptuais na análise tradicional, ou somente
mudam os parâmetros do problema. Observamos que, se as características de
“sistema térmico” se mantiverem, a reação da Europa ante a introdução de
energia eólica responde à lógica tradicional. O vento introduz variabilidade, e
portanto, os prazos que se consideram “aproximadamente o mesmo período”
tornam-se mais curtos. O Brasil possui estocagem. Sua participação é menor do
que observada há alguns anos, mas comparativamente muito maior que a estocagem
na Europa. Nessa perspectiva, o problema no Brasil se refere às reservas de
longo prazo e como será impactada pelo aumento das incertezas relativas a
produção eólica. Certamente, não são as mesmas questões, mas até onde são
diferentes ainda esta em aberto. O “backup” necessário no Brasil se refere às
incertezas de médio prazo característico da geração hidráulica. Isso pode
significar maior presença de tecnologias a gás, o que faz com que os períodos
com “aproximadamente o mesmo custo” sejam menores. Nesse caso, é preciso contar
com mecanismos de coordenação adequados que considerem a alocação intertemporal
de custos.
O problema nos sistemas “térmicos”;
Europa - A importância da energia eólica nos países Europeus
vem transformando o parque gerador. Nos últimos 10 anos a geração eólica nos
países da União Europeia cresceu de 1.913 milhares de toneladas equivalentes de
petróleo (TEP) para 15.930 milhares de TEP, como observado na figura abaixo,
sendo a Alemanha, a Espanha e a Inglaterra os países com maior produção eólica
(em 2011).
A principal característica da
geração eólica do ponto de vista operacional do sistema é a incapacidade de
gerenciar a produção: as máquinas produzem quando há vento e os agentes são
incapazes de influir nesta dinâmica (quando, quanto, onde). Como consequência a
relação quantidade produzida/capacidade no ano tende a ser baixa (na Alemanha
entre 2002 e 2009 esta relação variou anualmente entre 17% e 21%[1],[2]).
Ademais com as técnicas atuais tão pouco é fácil prever a produção de forma razoavelmente
precisa para horizontes maiores que umas poucas horas. Em um horizonte de 48
horas os erros de previsão variam na media entre 10% e 20% da capacidade
instalada. Os erros diminuem com a aproximação do tempo real, com uma hora de
antecedência, os erros de previsão caem para 4% a 5%[3].
Deste modo, os mercados elétricos
europeus, que tipicamente fechavam a grande maioria das suas operações no
chamado mercado diário (às 24 horas de um determinado dia são definidas na
manhã do dia anterior), começaram a se encontrar com uma grande quantidade de
plantas de geração que não são mais capazes de realizar uma oferta precisa em
este horizonte temporal. Devido à grande margem de erro das previsões
meteorológicas chaves para a oferta das plantas eólicas, os agentes acabam se
limitando a realizar uma oferta aproximada e corrigir os erros nos horizontes
de mais curto prazo.
Os mercados mais próximos do tempo
real, que eram tipicamente dedicados a ajustes da demanda ou situações
excepcionais (problemas técnicos, por exemplo), se converteram em mercados onde
se realizam uma parte relevante da cassação da energia total do sistema. Com a
introdução massiva de eólicas no mercado elétrico há um deslocamento importante
do mercado elétrico para prazos cada vez mais curtos.
O problema gerado por este
deslocamento do mercado está nas implicações técnicas. Grande parte do dos
geradores de eletricidade podem organizar a sua produção para responder as
necessidades detectadas no mercado diário. Isto é, os grupos possuem suficiente
flexibilidade para negociar sua energia no mercado diário e ajustar sua
produção aos resultados destes, de modo que o produto coincide (em grande
parte) com os contratos. Contudo, nem todos geradores possuem flexibilidade
para seguir as decisões de mais curto prazo.
Por exemplo, a geração a carvão é
uma tecnologia que não consegue entrar em operação (de forma economicamente
eficiente) com decisões geradas com poucas horas de antecedência. Neste sentido
o encurtamento dos horizontes de negociações diminuem as possibilidades de
escolha da tecnologia que será despachada e frequentemente possuem implicações
sobre os custos do sistema.
As características da geração
eólica permitem variações de produção que podem chegar a 100% da sua geração
programada. Ademais estas variações ocorrem em intervalos muito curtos de tempo
– uma hora ou poucas horas. Por exemplo, o sistema espanhol experimentou em
2009 flutuações eólicas da ordem de 7000 MW. Por comparar, os desvios da
demanda em relação ao programado raramente passam os 100 MW. Estas variações
tendem a crescer com aumento do uso de eólicas no sistema.
Diferença da produção eólica (em
MW) real e programada: Espanha
Quando a geração eólica aumenta
rapidamente, outros geradores têm de ser capazes de baixar a produção para
compensar. Quando a geração eólica cai deve haver outras tecnologias capazes de
aumentar a sua produção para substituir a queda da eólica. Caso esta
substituição não ocorra, o sistema se torna instável e pode gerar mesmo a queda
do sistema. Como somente parte dos geradores de eletricidade é capaz de
responder em prazos tão curtos, este nível de flexibilidade requer uma energia
mais rápida que só uma parte das tecnologias é capaz de prover. Estas
tecnologias possuem custos mais elevados, o que implica custos adicionais se
comparado com cenário com desvios conhecidos no mercado diário.
Em resumo, o problema da energia
eólica na Europa não é somente a grande variabilidade da produção e a pouca
antecedência com que as variações são conhecidas. O outro fator central é a
falta de potência instalada com capacidade de resposta. A falta de estocagem
elétrica (principalmente hidrelétricas) faz com que se precise geração
termelétrica. Nesse caso, se precisa de geração rápida. É um “problema de
potência”.
O problema “hidráulico”: Qual é o
backup que o Brasil precisa? - A peça chave da lógica
anterior (análise dos sistemas térmicos com penetração de energia eólica) é que
o sistema tem um “problema de potência”: a limitação de combustível para gerar
eletricidade é relativamente pouco importante, dado que o problema central é a
limitação de capacidade (neste caso, a capacidade de resposta rápida). Porém,
tradicionalmente o Brasil enfrentava um “problema de energia”. Os reservatórios
de grande porte faziam que a limitação de capacidade fosse relativamente pouco
importante. O problema central era a limitação de disponibilidade de
combustível, particularmente de água.
Nesse contexto, a decisão central
na operação de um sistema baseado em energia hidrelétrica é a escolha entre
gastar a água hoje ou estocá-la para produzir amanhã. Na maioria dos sistemas
com mais penetração de tecnologias térmicas, essa escolha está na mão das
empresas proprietárias das usinas. No Brasil, a escolha está na mão do Operador
Nacional do Sistema Elétrico (ONS). O problema pode ser esquematizado como na
figura embaixo:
Figura 1: Esquema das escolhas do
uso da estocagem das hidroelétricas
Nesse contexto, o valor da água era
definido principalmente pela relação de estimativas em cada período entre o
risco de verter a água e o risco de racionamento. As usinas termelétricas foram
introduzidas como medida de segurança adicional para evitar o racionamento. A
escolha então ficava como em a figura embaixo:
Figura 2: Esquema das escolhas do
uso de tecnologias
A nova situação no Brasil, onde uma
grande parte da produção de eletricidade usa tecnologias com grande
volatilidade, faz com que o sistema elétrico possa apresentar maiores “pontas
de carga”. A aparição de pontas de carga, parecido com o observado nos sistemas
europeus, parece crescer. Neste sentido o problema parece não apresentar
mudanças estruturais, mas sim na sua dimensão.
Se os recursos hidrelétricos são
destinados a cobrir as pontas (as variações de curto prazo), o nível dos
reservatórios decresce. Então, o sistema fica numa posição de risco de que no
futuro as chuvas sejam escassas. Para evitá-lo, a solução é a introdução de
geração alternativa disponível (como as térmicas) quando as chuvas são
escassas. Sendo assim, o raciocínio é formalmente o mesmo que o anterior à
introdução de energia eólica. A única mudança é que os níveis de backup devem
agora considerar também as variações da geração eólica, e como consequência
temos o aumento da dimensão do problema. De outra maneira, pode-se considerar
que o problema europeu é geração de “backup” para energia eólica. No Brasil, o
problema é a geração de “backup” para a energia hidráulica. Os problemas são
diferentes, contudo em ambos os casos as térmicas a gás tiveram um papel
importante. No apartado embaixo analisamos alguns dos elementos centrais do
problema.
Uso de usina de gás natural: como
obter a informação? – O problema de como definir o “backup” da energia eólica é
complexo. Mas permitam-nos fazer a suposição de que as usinas a gás natural jogarão
um papel relevante no backup dos reservatórios. Mesmo assim, não é simples
desenhar o mecanismo pelo qual o ONS pode fazer a otimização (escolha) de
quando consumir os recursos de gás e água. Num sistema de grande presença de
usinas hidrelétricas, as usinas a gás natural não podem ser consideradas mais
só como centrais “limitadas por potência”. Os preços do combustível vão influir
na definição do “valor da água”. Na figura 2, a decisão entre produzir com água
hoje ou amanhã depende muito do preço do gás natural.
Na escolha representada na figura
2, a produção com as usinas hidrelétricas está substituindo á produção das
usinas a gás em um dos dois períodos. Usando um argumento de arbitragem, o
valor da água em um determinado período vai ser o seu custo de oportunidade: o
custo que o sistema teria se não produzisse com água, mas com termelétricas a
gás. Isto é, o preço do gás natural usado para produzir eletricidade nesse
período. O problema para o ONS é que o cálculo desse preço do gás é
extremamente difícil. Teria que ser feita a comparação entre o preço de gás
natural spot e de longo prazo, incluindo produção nacional, possíveis contratos
take-or-pay, diferentes cláusulas dos contratos, diferentes possibilidades de
arbitragem, preços de transporte de gás nacional, de estocagem de gás, etc.
Os mecanismos de coordenação entre
os sistemas de gás e elétrico tornam-se mais relevantes na nova situação.
Quando os volumeis de gás eram relativamente reduzidos, as necessidades de
otimização intertemporal do gás eram menores também. Mas quando o gás tem uma
presença relevante no sistema elétrico, a coordenação é central. E uma das
necessidades da nova situação é que o ONS tenha as informações completas dos
preços do gás natural nos diferentes períodos. Neste sentido, mesmo que os
períodos de decisões sejam distintos, o problema da interação gás e
eletricidade e a necessidade de coordenação entre as indústrias não se torna
tão distante dos problemas observados na Europa.
Nesse contexto parece importante
desenhar um mecanismo que permita aos agentes do sistema de gás natural enviar,
com um horizonte longo suficiente (de forma que seja possível a coordenação da
logística envolvida, e.g. um ano, ou menos inclusive), uma curva definindo o
preço do gás para geração elétrica. Estes preços devem ser capazes de realmente
refletir as condições da indústria de gás natural. Desta forma, o ONS seria
capaz de incluir os preços futuros do gás (incluindo o risco e a logística
estimada pelos agentes do sistema de gás) na decisão entre consumo de água ou
de gás natural. Um mecanismo frequente usado para facilitar o intercambio de
informações entre diversos agentes é o leilão. O uso de leilões para revelar
preços de gás e eletricidade no médio prazo não é uma novidade (Europa e EUA
possuem vários exemplos interessantes). O uso deste mecanismo no Brasil deveria
ser melhor analisado, podendo potencialmente contribuir para a coordenação
entre a indústria de gás e eletricidade. (ambienteenergia)