A canoa solar na Amazônia que
ajuda comunidades a navegar pela selva.
Depois
de fazer estudos de navegabilidade, decidiu-se que o desenho da canoa dos
indígenas cofan, no norte da selva equatoriana, era o mais adequado para as
águas amazônicas.
Sob a pálida luz de uma
lâmpada que pendura do teto de um abrigo de madeira, um círculo de homens bebe
litros e litros de uma infusão de folhas preparada na noite anterior pelas
mulheres da casa.
São quatro da manhã e ainda
falta um par de horas para que amanheça em Kapawi, uma pequena comunidade
indígena achuar em um canto remoto da Amazônia equatoriana.
Os homens bebem e bebem até
que o corpo lhes diz que basta.
E,
um a um, desaparecem na escuridão desta noite sem lua para esvaziar o conteúdo
de seus estômagos com ruidosos vômitos.
Hilario
Saant foi um dos quatro tripulantes que trouxeram a canoa do porto de Iquitos,
no Peru, até o território achuar. Foi uma viagem por 1.800 km do rio que
demorou 25 dias.
Na volta, mais acordados e
energizados pela limpeza, começam a relatar e interpretar os sonhos da véspera.
O mundo onírico tem um papel
central na vida dos achuar: não só guia suas ações do dia, mas também seus
planos em longo prazo, o futuro da comunidade.
E foi justamente em uma
dessas cerimônias, um ritual ancestral conhecido como "guayusada",
que os anciãos compartilharam, há mais de meio século, um sonho que acabou
sendo premonitório: pelas águas marrons do rio, viram descer "um barco de
fogo".
A canoa solar que ajuda
comunidades a navegar sem gasolina na Amazônia.
Mito ou história genuína, o
certo é que essa visão se transformou recentemente em uma realidade para um
grupo de comunidades achuar.
Desde abril de 2017, uma
canoa alimentada por energia solar percorre 67 km pelos rios Capahuari e Pastaza
e liga cerca de mil pessoas divididas em nove assentamentos isolados que vivem
em suas margens.
Para
os menores, viajar na canoa é um acontecimento especial.
"Meus pais, meus avós
sonharam com isso. O sonho é uma mensagem. Os achuar conhecem pelos sonhos. O
sonho não é mentira, é a verdade", diz Hilario Saant, um ancião de Kapawi.
A canoa se chama Tapiatpia em
homenagem a um lendário peixe-elétrico da área, e é o primeiro sistema fluvial
comunitário solar nesta parte da Amazônia.
Esse modelo de transporte
sustentável que percorre o território por suas rotas ancestrais, os rios, não
só materializa um antigo sonho: também responde ao desejo profundo dessa
cultura de viver em harmonia com o meio ambiente.
O projeto ainda está em sua etapa
inicial. Mas se for bem-sucedido, tem o potencial de ser implementado em outros
rios da bacia amazônica, um ecossistema ameaçado pelo desmatamento e pela
exploração petroleira e de cujo futuro o clima do planeta depende.
Há
uma década, Utne trabalha desenvolvendo o projeto da canoa solar.
Tecnologia de ponta, desenho
ancestral.
"A canoa solar é uma
solução ideal para esse lugar porque aqui não há rede de rios navegáveis,
interconectados e há uma grande necessidade de transporte alternativo",
explica à BBC Mundo Oliver Utne, o americano que deu vida ao projeto Kara Solar
(Kara significa "sonho" em achuar), depois de conviver com a
comunidade durante anos.
"Como a gasolina só pode
chegar aqui por avião, custa cinco vezes mais que no resto do país",
explica. É um luxo que não se podem dar.
"Por outro lado, a
ameaça de chegada de estradas a esse território, um dos lugares com maior
biodiversidade do mundo, está muito presente."
"Trazê-las até aqui
significaria a destruição dessa biodiversidade e produziria um impacto muito
forte nessas culturas", argumenta o jovem de pouco mais de 30 anos,
cabelos loiros e olhos azuis que os achuar tratam como mais um da família.
Por
causa da canoa, as crianças podem ir ao centro de saúde quando estão doentes.
Com um teto de 32 painéis
solares sobre uma canoa tradicional de 16 metros de comprimento e dois de
largura, Tapiatpia encarna a fusão da tecnologia moderna com o conhecimento
ancestral.
Feita com fibra de vidro em
vez de madeira para estender sua vida útil, a canoa tomou emprestado o desenho
de embarcação típica dos indígenas cofanes do norte do Equador.
Depois de vários estudos de
navegabilidade, foi o modelo que melhor se adaptou às condições amazônicas.
Desde
que a viagem ficou mais barata (a viagem custa US$1, mas os estudantes pagam um
preço mais barato), há mais alunos inscritos na escola.
As rotas, os horários, o
porto central e outros assuntos relativos a seu funcionamento foram decididos
pelas próprias comunidades com ajuda da "Plan Junto", uma organização
que se encarrega do aspecto comunitário do empreendimento.
"De nada serve o barco
se não houver um grupo de gente pensando em como usá-lo e como
aproveitá-lo", explica Celia Salazar, gerente de operações de campo de
Plan Junto.
Mais alunos nas classes
De
pé na popa do Tapiaptia, com os olhos direcionados à rota, Saant me conta
orgulhoso como pouco a pouco a canoa está mudando a vida da comunidade.
Os
jovens Achuar querem aproveitar novas tecnologias, mas sem destruir seu
território.
"Estamos ajudando a
comunidade quando há crianças doentes. Me chamam por rádio e levamos as
crianças ao centro de saúde. Tapiaptia ajuda a salvar vidas", me diz, emocionado.
É que sua relação com o barco
se remonta aos dias em que era só uma ideia.
Além disso, ele foi um dos
quatro tripulantes que fizeram a viagem épica de 1,8 mil km durante 25 dias
para trazer a canoa do longínquo porto de Iquitos, no Peru, até o território
achuar.
Sem
deixar de olhar para frente, indica com sinais a rota ao capitão sentado na
parte traseira da embarcação.
As
pistas de aterrisagem são as únicas lisas da selva.
"Agora as crianças podem
fazer passeios escolares", continua. "E, se moram longe, podem ir à
escola e voltar no fim de semana e ajudar seus pais."
Mateo Tseremp é testemunha
disso. Professor da única escola secundária para 15 comunidades da área, viu um
incremento no número de alunos.
Da
canoa, Hilário Saant pode ver os animais que se escondem na selva.
"Nos ajuda a trazer mais
estudantes à unidade educativa Tuna. É muito mais econômico", me diz
durante uma pausa depois da aula.
A canoa também ajuda os
jovens a praticar esporte. Além disso, diz Sant, "na canoa podemos
conversar". O ruído de um motor elétrico é quase um sussurro comparado com
o ensurdecedor ruído do barco típico da Amazônia que funciona a gasolina. Outro
ponto a favor: como o barco é silencioso, não espanta os animais - em um das
viagens, a reportagem viu um boto-cor-de-rosa a poucos metros do barco.
Todas
as decisões sobre a canoa e seus usos se discutem em uma assembleia
comunitária.
Contra as estradas
Mais além das vantagens
econômicas de um transporte de custo baixo para essas comunidades que vivem
principalmente da caça, a agricultura de subsistência e a pesca, um benefício
que eles consideram crucial é que não destrói nem polui o meio ambiente.
"Queremos que as
crianças conheçam a mesma selva que eu conheço", diz Saant com firmeza.
A ameaça dos caminhos que vêm
da indústria petroleira e madeireira, contudo, está cada vez mais próxima.
Canelos
quer desenvolvimento, mas sem estradas em seu território.
Em janeiro desse ano, por exemplo,
o governo começou a perfurar a primeira de uma centena de poços petroleiros
dentro do Parque Nacional Yasuní, no nordeste do país, em plena Amazônia
equatoriana.
Essa área abriga
nacionalidades indígenas que vivem em isolamento voluntário.
Cada
comunidade tem uma pista de terra para permitir a chegada de aviões - é a única
via de acesso.
Impacto
Mas que impacto pode ter um
projeto tão pequeno como esse na luta global contra a mudança climática?
Na Amazônia, uma região que
perdeu cerca de 17% de seus bosques nos últimos 50 anos, segundo o Fundo
Mundial para a Natureza, e em que o desmatamento continua crescendo a um ritmo
alarmante, o que pode fazer uma pequena canoa?
E mesmo se multiplicarem, que
impacto real podem ter duas, três, dez canoas solares diante do avanço
incessante da mineração e da indústria madeireira e petroleira?
A
canoa foi batizada de Tapiatpia, em homenagem a um peixe-elétrico lendário da
região.
Para Utne, "a ideia
fundamental é que se possa servir como exemplo de um projeto que funciona para
uma economia amazônica".
"E, se não, ao menos
pode ter impacto na vida das pessoas daqui", diz, com humildade.
*Kara Solar é um projeto
conjunto dos achuar, a Fundação ALDEA (sigla em espanhol para Associação
Latino-americana para o Desenvolvimento Alternativo) e Plan Junto.
Esta
série da BBC foi produzida com financiamento da Fundação Skoll. (bbc)
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