Política nuclear brasileira é insuficiente e contraditória
Qual é o propósito do programa nuclear brasileiro? “Esta pergunta deve ser feita às autoridades”, responde o físico da USP à IHU On-Line. Segundo ele, é difícil identificar quais são as prioridades nesta área, especialmente porque não existe uma agência reguladora independente. Desde meados da década de 1980, a Sociedade Brasileira de Física propõe o estabelecimento de dois órgãos: um que fomenta e outro que regula a energia nuclear no país. Entretanto, de acordo com Meneses, a iniciativa “foi em vão”.
Nesta entrevista, concedida por telefone, o pesquisador fala dos equívocos de investir em energia nuclear e enfatiza que a compra de Angra III, nos anos 1970, foi um erro estratégico. “O Brasil comprou um grande pacote alemão que incluía um método de enriquecimento ilusório, chamado ‘jato centrífugo e ducha centrífuga’. Este processo era reconhecidamente inviável e tinha sido tentado em três ou quatro lugares e nunca funcionou”.
Por ser uma liderança importante contra as armas nucleares, enfatiza, o país deve utilizar o programa nuclear para desenvolver produtos pacíficos de finalidade industrial e médica. “O Brasil é um importador de radiofármacos e de várias substâncias de uso industrial, clínico e médico de radiodiagnóstico e radioterapia. Entretanto, o país não precisa ser meramente um consumidor desses produtos. Há potencial para desenvolver esses equipamentos no território nacional. Além disso, um reator multipropósito seria uma importante fonte de nêutrons para pesquisa”, reitera em entrevista concedida à IHU On-Line.
Meneses também critica as relações externas que o país estabelece com o Irã e argumenta que “o Brasil tem de olhar com cuidado as parcerias internacionais para não agravar o quadro de disseminação da capacidade nuclear bélica”.
Bacharel em Física pela Universidade de São Paulo, mestre em Física pela Carnegie Mellon University e doutor em Física pela Universitat Regensburg, Meneses é professor do Instituto de Física e orientador do programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação Interunidades em Ensino de Ciências da Universidade de São Paulo. É articulista da Revista Nova Escola (Fundação Victor Civita).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que problemas o senhor percebe nos órgãos de fiscalização e de fomento do programa nuclear brasileiro?
Luis Carlos de Meneses – Primeiramente, gostaria de esclarecer que coordenei a Comissão de Acompanhamento do Programa Nuclear Brasileiro, da Sociedade Brasileira de Física. Portanto, os pontos de vista que vou expressar nesta entrevista não são estritamente meus, mas expressam um coletivo de físicos da própria Sociedade.
Defendemos que haja uma separação entre o órgão que fomenta, que promove, que desenvolve a energia nuclear e o órgão que fiscaliza essa autonomia. A Agência Internacional de Energia Atômica recomenda mundialmente essa independência. Entretanto, a norma não tem sido respeitada no Brasil. E, por isso, a Comissão Nacional de Energia Nuclear cuida de ambas as questões. Não determinar as competências cabíveis a cada órgão significa ampliar a perspectiva de riscos. Portanto, é preciso criar outro órgão para ser responsável pela fiscalização. A criação deste órgão está sendo proposta, mas não sai do papel.
IHU On-Line – Há quanto tempo estuda-se a possibilidade de criar um órgão fiscalizador?
Luis Carlos de Meneses – Mais de décadas. O relatório feito em 1985 para a Presidência da República já recomendava a criação de um órgão fiscalizador. Nós temos insistido nisso, mas até agora foi em vão.
IHU On-Line – O senhor afirmou recentemente que a confluência de interesses prejudica a supervisão de segurança. A que interesses o senhor se refere?
Luis Carlos de Meneses – O setor nuclear não se relaciona apenas com o Estado. É um setor que estabelece relações com o mercado porque se compra e vende reatores. Apesar disso, é preciso que os interesses públicos sejam olhados para além dos interesses de mercados.
Outros interesses são de natureza corporativa: no interior da Comissão Nacional de Energia Nuclear tem uma série de técnicos, e parte das resistências contra a criação de um órgão fiscalizador vem do interior da própria Comissão Nacional de Energia Nuclear.
IHU On-Line Os físicos fizeram um relatório elencando tópicos que consideram estratégicos para o futuro da pesquisa nuclear no Brasil. Entre as demandas, mencionam a criação de um reator multipropósito, mas há quem defenda que esses reatores não são necessários no momento. Qual sua opinião? Pode nos explicar o que é esse reator e qual a sua importância dele para o país?
Luis Carlos de Meneses – O Brasil é um importador de radiofármacos e de várias substâncias de uso industrial, clínico e médico de radiodiagnóstico e radioterapia. Entretanto, o país não precisa ser meramente um consumidor desses produtos. Há potencial para desenvolver esses equipamentos no território nacional. Além disso, um reator multipropósito seria uma importante fonte de nêutrons para pesquisa. A pesquisa científica depende, sim, de um bom reator multipropósito, que poderia ser construído.
O conhecimento científico e a produção de radioisótopos para uso industrial e médico se beneficiariam muito com a existência de um bom reator multipropósito porque, como o nome já diz, ele tem diferentes propósitos que darão competência para o setor. Nós desguarnecemos o setor com o abandono de uma política de formação mais adequada. Então, o reator multipropósito é uma segunda recomendação importante da Comissão.
O propósito e o esforço de construir o reator irão recompor a qualificação brasileira, que não está na estaca zero, mas está muito aquém do que deveria estar em termos de competência técnica.
IHU On-Line – Como o senhor reagiu diante dos anúncios do governo de continuar investindo em energia nuclear?
Luis Carlos de Meneses – A energia nuclear para a produção de eletricidade é absolutamente estratégica em países dependentes de outras fontes energéticas. Esse não é o caso do Brasil, porque a maior parte da energia brasileira é provida pelas hidrelétricas. O Brasil tem uma liderança significativa na utilização de bicombustível, de combustíveis renováveis e, por isso, pode pensar em uma série de fontes energéticas além da nuclear para prover a demanda da oferta de energia elétrica. A energia nuclear não é tão vital para o Brasil como é para a França, onde 80% da energia é nuclear. No Japão, a dependência é de 30%. O Brasil depende hoje de 2% de energia nuclear e como o país não tem pressa em ampliar esse setor, não é hora de sair comprando reatores nucleares. Este é um momento de cautela, de desenvolvimento autônomo.
Novas estratégias
No passado, o Brasil incorreu em uma grosseira tolice: fazer parte da corrida nuclear mundial bélica. Brasil, Argentina e outros países da América Latina disputavam quem seria a potência nuclear no subcontinente. Esta tolice foi posta de lado e o Brasil tomou uma iniciativa pioneira no mundo: proibiu a produção de armas atômicas. Este é um item constitucional e foi incentivado pelos cientistas.
O Brasil se tornou uma liderança importante contra as armas nucleares e, portanto, precisa fazer uso disso para lutar pelo desarmamento nuclear global. O país tem cometido alguns equívocos em termos de política externa, os quais precisam ser revistos: o Brasil tem de olhar com cuidado as parcerias internacionais para não agravar o quadro de disseminação da capacidade nuclear bélica. Para isso, é preciso ter uma política externa muito clara de só estabelecer cooperação absolutamente pacífica.
IHU On-Line – Então o senhor discorda da relação brasileira com o Irã?
Luis Carlos de Meneses – Eu acredito que essa relação é um grave equívoco. O Brasil quer estar no Conselho de Segurança da ONU, quer ter uma atitude mundial de sinalização de política correta e, portanto, precisa ter muito cuidado com esta relação.
IHU On-Line – Como o senhor vê os projetos do Brasil na construção de Angra III, considerando que países como Alemanha já anunciaram que irão desistir deste tipo de investimento?
Luis Carlos de Meneses – Angra III foi comprada nos anos 1970. Nesta época, o Brasil tomou uma decisão equivocada e comprou um grande pacote alemão que incluía um método de enriquecimento ilusório, chamado “jato centrífugo e ducha centrífuga”. Este processo era reconhecidamente inviável e tinha sido testado em três ou quatro lugares e nunca funcionou. O país comprou este “conto do vigário”, que, evidentemente, nunca foi colocado em prática.
Este equívoco levou a compra de duas usinas que seriam Angra II e Angra III – Angra I já tinha sido comprada dos norte-americanos.
É preciso bastante cuidado ao instalar Angra III e um esforço concomitante para melhorar a condição de segurança, não somente de absoluto cuidado para que vazamentos ou acidentes maiores não ocorram, mas também para que os riscos à população sejam reduzidos.
IHU On-Line – Como o senhor vê a fiscalização e a questão da segurança na região de Angra dos Reis, caso venha a acontecer um acidente nas usinas Angra I e II?
Luis Carlos de Meneses – Há diferentes dimensões do problema de segurança. A primeira absolutamente essencial é um cuidado estrito na operação do sistema. Quando analisamos acidentes que já ocorreram, por exemplo, em Chernobyl, observamos que houve, sim, descuido. No acidente de Fukushima houve uma situação que seria considerada absolutamente improvável, mas que ocorreu: um terremoto seguido de tsunami. O terremoto promoveu a interrupção da produção de energia e o tsunami acabou com o processo de refrigeração da usina. Acontece que, em uma usina nuclear, a refrigeração do sistema não pode parar nunca, quer dizer, não basta desligar a usina, tem de desligar e mantê-la refrigerada.
Se apesar de todo o cuidado ainda houver um acidente, quais são as medidas para minimizar os danos, principalmente os danos humanos? É preciso ter um esquema de retirada da população e disponibilidade de distribuir pílulas de iodo para pessoas que forem atingidas. Não é o caso de distribuir estas pílulas com antecipação, mas é preciso ter esta disponibilidade. Além disso, é preciso garantir que máscaras de oxigênio estejam disponíveis nos postos de saúde.
Então, o cuidado se dá em várias etapas e o primeiro deles é evitar acidentes. Ou seja, é fundamental uma supervisão autônoma da segurança.
IHU On-Line – Em que consiste hoje o programa nuclear brasileiro? Quais são os projetos do Brasil nesta área?
Luis Carlos de Meneses – Esta pergunta deve ser feita às autoridades, porque a sinalização em relação ao programa nuclear brasileiro é insuficiente e contraditória. Há pouco tempo anunciavam a instalação de vários reatores, e estava sendo feita a prospecção para saber quantos iriam ser instalados no Nordeste, no Sudeste etc. Houve um claro recuo do governo nestes investimentos e é sensato que tenha havido. Mas dado este recuo, quais são de fato as prioridades? Vai se estabelecer uma agência reguladora independente ou não?
IHU On-Line – Os países precisam investir em um projeto nuclear?
Luis Carlos de Meneses – Como instância de investigação, pesquisa, produção de competência, o Brasil tem que investir, sim. O propósito garante que o país produza radioisótopos nacionais de uso absolutamente pacífico para finalidades industriais e médicas. Para se ter uma ideia da incompetência que tem gerido o setor, o Brasil tem um enorme potencial mineral de urânio e, ainda assim, importa o produto para uso energético. Quer dizer, nós não temos autonomia sequer para fornecer urânio para Angra I, II e III e, portanto, nem sequer a produção básica está sendo garantida.
É possível, sim, manter a investigação, a pesquisa e isto não é uma questão de física, é, sobretudo, de engenharia, de capacidade tecnológica. É fundamental também ter absoluto cuidado com a segurança e ter uma política agressiva contra as armas nucleares. O país tem condições morais de ter uma atuação mais real contra as armas nucleares. Há centenas ou milhares de ogivas prontas para lançamentos. Contra quem? Elas convidam ao acidente e ao terror e é preciso que se combata isso com responsabilidade mundial.
IHU On-Line – Que futuro vislumbra para a pesquisa nuclear e para as pesquisas na área de física no Brasil?
Luis Carlos de Meneses – O Brasil tem acompanhado o desenvolvimento científico-tecnológico no mundo, mas tem sido menos importante do que poderia. Quer dizer, há um investimento em ciência suficiente para manter uma política de acompanhamento, considerando que há um número bastante importante de físicos no Brasil. Mas não podemos pensar na física isoladamente; temos que pensar em pesquisa científica e em desenvolvimento científico cultural.
Vale a pena ampliar o investimento em ciência, tecnologia e cultura em um sentido mais geral, não somente em universidades e em centros independentes de pesquisa. Falta uma maior ligação entre investigação científica e produção industrial no Brasil. A produção científica brasileira está muito apartada da capacidade produtiva: a maior parte da tecnologia utilizada no país é dependente do que se desenvolve em outras regiões do mundo.
Vou dar dois exemplos em que o Brasil tem sido um partícipe no mundo tecnológico. O primeiro é a prospecção de petróleo. O Brasil é um dos países mais capacitados do mundo para prospecção de petróleo em águas profundas; por isso o pré-sal é importante e não nos assusta, porque a Petrobras é um exemplo de boa relação entre pesquisa científica tecnológica e produção industrial. O segundo exemplo diz respeito à indústria aeronáutica. A Embraer é uma importante indústria aeronáutica no mundo e tem até fábricas no exterior.
Por trás destes exemplos tem uma história: a construção e o investimento no Instituto Tecnológico da Aeronáutica – ITA, em São José dos Campos. Este é o modelo de instituto que precisamos buscar. Nós poderíamos ter também um importante instituto na agroindústria, na pesquisa agroindustrial, na produção de alimentos.
É preciso olhar as vocações do país e buscar o desenvolvimento. Esta é a parte pragmática. Mas cultura científica é parte da cultura em geral, portanto nós não podemos delimitar que investimento científico é só para finalidade tecnológica. Pelo contrario, é para desenvolvimento humano em geral, e um país do porte do Brasil precisa ser partícipe das pesquisas científicas. (EcoDebate)
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