Tese analisa efeitos da variação
climática na geração de energia
Estudo faz projeções acerca de precipitação
pluviométrica que se transforma em vazão.
Rafael de Oliveira Tiezzi, que acaba de obter seu
doutorado em engenharia civil na área de recursos hídricos, energéticos e
ambientais, afirma que os pesquisadores de sua área evitam o termo “mudanças climáticas”
por julgá-lo permeado de uma questão de fé: se é o homem o causador das
mudanças ou se elas são parte do processo natural de conformação do planeta.
“Não entramos nesta discussão. Partimos do consenso científico de que existe de
fato uma variação do clima, independentemente do seu efeito causador.
Existindo, estudamos como esta variação pode afetar o uso dos recursos hídricos
e, consequentemente, a geração de energia elétrica, foco das nossas pesquisas”,
justifica.
Rafael Tiezzi é autor da tese “Variabilidade hidro
climatológica e seus efeitos no suprimento de energia elétrica do Sistema
Interligado Nacional”, orientada pelo professor Paulo Sérgio Franco Barbosa, na
Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp. “O impacto
da variação climática (ou mudanças climáticas) sobre a geração de energia
hidrelétrica é um tema que abordo desde o mestrado em 2007 e que agora se
tornou bem atual. Trata-se basicamente de fazer projeções sobre a precipitação
da chuva, que se transforma em vazão de rio, vazão que vai ser turbinada na
usina.”
O engenheiro explica que desenvolveu a tese a partir
de um estudo do Hadley Centre da Inglaterra, considerado o principal instituto
mundial em pesquisa sobre mudanças climáticas. “É uma simulação nomeada HadCM3,
que traz 17 cenários de variações climáticas em todo o planeta para os próximos
90 anos. O Inpe [Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais] regionalizou esse
estudo para a América do Sul, mas focando apenas quatro dos 17 cenários: o
cenário controle, sem anomalias (Cntrl); de alta densidade de
perturbações (High); de baixa densidade de perturbações (Low);
e intermediário (Mid), com perturbações entre os cenários Low e Cntrl.”
Foi a partir desta regionalização pelo Inpe que o
autor da tese transformou os dados de precipitação de chuvas em vazão dos rios
que formam as principais bacias hidrográficas brasileiras geradoras de energia
– são 26 bacias, onde estão 80% dos nossos rios e se produz 98% da energia
elétrica do país. “Trabalhamos com tendências de perdas ou ganhos de volume de
água neste período de 90 anos, fornecendo índices mensais de vazão para os
quatro cenários e para as 26 bacias. É uma infinidade de dados com os quais
geramos valores de ENA (energia natural afluente, ou seja, a vazão transformada
em potencial de geração) relacionados a cada um dos quatro subsistemas
brasileiros (Norte, Sul, Nordeste e Sudeste/Centro-Oeste), bem como ao sistema
interligado inteiro.”
Rafael Tiezzi acrescenta que isso tornou possível
inferir regiões com problemas futuros de água e possíveis riscos à capacidade
de geração de energia. “O resultado final mostra que, para o sistema nacional
como um todo, o impacto varia de 10% de ganho a 15% de perda na capacidade de
ENA, respectivamente no melhor e no pior cenário. São impactos que devem ser
considerados, ainda que o sistema interligado permita enviar energia de uma
região para outra que esteja com a capacidade de geração comprometida. Porém,
para outros usos de água, como no abastecimento, os efeitos podem ser severos
principalmente nas porções Norte e Nordeste.”
A previsão do HadCM3 para os próximos 90
anos inclui inúmeros dados meteorológicos como temperatura da atmosfera,
ventos, ventos em superfície, ventos em alta atmosfera e, obviamente, chuvas –
cujas informações foram transpostas pelo autor para cada célula de 40 por 40
quilômetros das bacias. “É preciso observar que a meteorologia lida com
previsões até um prazo máximo de seis meses e que depois disso passamos à
climatologia, que faz projeções de longo prazo. Outra observação é que um
aumento de 2 graus na temperatura não implica necessariamente em mais chuvas,
pois a resposta dos modelos climáticos não é linear. A título de exemplo, com 2
graus a mais podemos ter aumento de chuva no Sudeste e diminuição no Nordeste,
ou vice-versa no caso de 3°C a mais.”
Fatias de tempo
O autor da tese recorreu a 83 anos de histórico (1931-
2012) para comparações com os cenários futuros, em que a previsão climática é
dividida em fatias de tempo de 30 anos (2011-2040, 2041-2070, 2071-2100),
paralelamente à abordagem global dos 90 anos. “Estudos hidrológicos mostram
que, a partir da década de 1970 até o início dos 80, houve uma quebra na série
histórica com diferenças de vazão muito grandes, o que se deve principalmente
ao crescimento das cidades: a ocupação do solo e a mudança de dinâmicas como de
infiltração e escoamento da água impactaram na vazão dos rios. Por isso,
incluímos na tese um comparativo futuro com os 29 anos de 1984 a 2012, desconsiderando
1983, ano muito fora da curva em termos de cheias.”
De acordo com Tiezzi, as comparações com o histórico
de 83 anos e com o período 1984-2012 não mostram impactos futuros
significativos para o Sistema Integrado Nacional: em relação ao histórico, seria
de 10% de ganho de ENA a 7% de perda; e quanto aos últimos 29 anos, de 7% de
ganho a 10% de perda. “Por esta lógica, podemos trabalhar com impactos variando
de 10% positivos a 10% negativos nos próximos 90 anos. E, nas fatias de 30
anos, verificamos um impacto maior entre 2071 e 2100, que no cenário mais
pessimista chega a 15% de perda de ENA.”
O pesquisador observa que no Sul, em alguns cenários,
existe a possibilidade de repetição dos ganhos de até 100% no volume de água
registrados entre 1971 e 1990; e que no Norte e Nordeste as perdas de ENA podem
ficar quase 70% abaixo do volume histórico. “Este aumento de 100% na vazão
precisa ser estudado mais a fundo, pois isso não significa que as usinas do Sul
terão capacidade de acumulação de água para gerar o dobro de energia elétrica.
Temos aí um grande nó em termos de planejamento: ou se cria novos reservatórios
para armazenar esta água, ou se renova as turbinas das usinas para que fiquem
mais potentes. Por outro lado, este aumento pode agravar o problema de cheias e
enchentes na região, o que merece estudos específicos, já que não foi o foco da
pesquisa”.
A projeção para o subsistema Sudeste/Centro-Oeste é
mais amena, conforme o autor do estudo, que apresenta um gráfico com traços
vermelhos (indicando os piores cenários), verdes (os mais positivos) e amarelos
(os intermediários). “No Sudeste predominam os traços amarelos, que são
negativos em termos de energia natural afluente, mas pouco preocupantes diante
dos impactos de até 70% esperados para o Nordeste. São Paulo, por exemplo,
apresenta índices negativos de 1% a 4% nas projeções climáticas, o que está na
margem de erro do modelo. Até mesmo impactos da ordem de 10% negativos, embora
importantes, podem ser controlados com um planejamento bem feito do sistema,
através da criação de reservatórios estratégicos e investimento em outras
formas de geração de energia. São ações de baixa complexidade, não há
necessidade de reformular todo o sistema.”
Acumulação de água
Acumulação de água
Rafael Tiezzi estudou o mesmo fator ENA para uma área
na confluência dos estados de Goiás, Minas Gerais e São Paulo, que detém 65% da
capacidade de reservar água para o sistema elétrico nacional – o chamado
polígono de acumulação de águas. Ali ficam cinco cabeceiras dos rios São
Francisco, Tocantins e três do rio Grande, com suas respectivas usinas e
reservatórios: Emborcação, Nova Ponte, Furnas, Três Marias e Serra da Mesa. São
os chamados reservatórios de acumulação, pois conseguem armazenar água para um
gerenciamento plurianual (de até cinco anos). “Trata-se de uma região central
do país e de transição climática, onde os modelos podem apresentar erros
maiores. Mas tivemos uma boa surpresa, pois segundo as modelagens os impactos
das alterações climáticas não serão grandes.”
Comparando os cenários futuros com o histórico, o
autor da tese vê, por exemplo, impactos negativos em Serra da Mesa e positivos
em Furnas e em Três Marias, mas sem perturbações importantes na área como um
todo. “Vemos até um aumento de vazão, indicando que a acumulação de água não
será comprometida. Ainda assim, deve-se pensar nesta problemática do
armazenamento, que talvez não seja a solução, mas é um dos mecanismos para
garantir a geração de energia. Também é certo que, no sistema interligado, o
cenário mais ameno do Sudeste/Centro-Oeste (responsável por 70% da energia
gerada no país) permitiria compensar um impacto negativo nesta região. A
questão é que em previsão climatológica, quando se trabalha no longo prazo, há
sempre uma incerteza associada.”
Crise hídrica
Embora reiterando que o foco da tese está na previsão
de precipitação de chuvas para a geração de energia elétrica, e não para
abastecimento de água, Tiezzi não se furtou a comentários sobre a crise hídrica
no Sudeste. “Fiz um gráfico para a região mostrando que nos últimos 14 anos
(2000-2014) os valores de ENA ficaram bem abaixo da média histórica: 85,1% em
2001 (quando houve racionamento de energia) e 80,8% no ano passado (muito
pior). A falta de chuva pesou bastante neste processo, mas a crise energética
de 2001 levou à criação de usinas térmicas, que não precisam de água e deram
fôlego aos reservatórios. Quanto ao abastecimento, parte do impacto se deve à
falta de um plano B como das térmicas no setor de energia.”
Rafael Tiezzi observa que seu estudo sobre o impacto das
alterações climáticas nas bacias brasileiras é preliminar, e trabalhando com um
horizonte distante, mas espera que estas informações sirvam para outras
análises mais pontuais ou regionais. “No planejamento da expansão do sistema
elétrico, leva-se em conta fatores socioeconômicos, como crescimento da
população e do PIB, quando somos altamente dependentes do clima para a geração
de energia. O que pretendemos é inserir fatores quantitativos (numéricos) sobre
futuras alterações climáticas no planejamento do Sistema Interligado Nacional
de Energia, principalmente no planejamento de médio e longo prazo.” (ecodebate)
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