Falta um lugar seguro para
manter longe do homem os resíduos das usinas nucleares. É uma questão de vida
ou morte: eles podem continuar radioativos durante milhões de anos.
Dentro
de uma piscina cheia de água, numa instalação anexa à usina nuclear Angra I, no
litoral sul do Estado do Rio de Janeiro, 15 toneladas de resíduos radioativos—o
lixo venenoso que resulta da própria operação do reator—repousam em tambores
blindados. Parece muito, mas é uma insignificância perto das 20.000 toneladas
produzidas pelos reatores nucleares em funcionamento nos Estados Unidos,
armazenados em tanques semelhantes. Essa, porém, é a única diferença. Por- que,
no mundo inteiro, os cientistas nucleares enfrentam há muito tempo o mesmo
desafio: encontrar quanto antes uma maneira definitiva de dispor do lixo
atômico, principalmente do chamado material de alta atividade, proveniente do
reprocessamento de elementos combustíveis, capaz de emitir radiações letais
para os seres vivos durante milhares ou até milhões de anos—uma eternidade,
para todos os efeitos práticos. O fato de não se ter encontrado ainda a solução
dessa charada, 36 anos depois da entrada em funcionamento da primeira usina
nuclear destinada à produção de eletricidade, na União Soviética, é um dos dois
principais motivos pelos quais muita gente gostaria de banir tais reatores da
face da Terra; o outro é o eterno risco de tragédias, como a da usina de
Chernobyl, também na URSS, em 1986. Sendo pouquíssimo provável que os homens
decidam dispensar os benefícios do uso pacífico da fissão nuclear—para não
falar dos fins militares—, os cientistas correm atrás, senão da fórmula ideal,
ao menos de uma solução satisfatória para o problema do lixo. Até porque, mesmo
se fosse possível aposentar por um passe de mágica os 431 reatores comerciais
ligados no mundo, seus resíduos não se evaporariam. E há 123 outras usinas em
construção e 37 em fase de projeto.
Nos
reatores movidos a urânio, um átomo desse elemento é bombardeado por nêutrons.
Seu núcleo então se divide, liberando enorme quantidade de energia, raios gama
e mais dois ou três nêutrons que irão bombardear outro átomo e assim por
diante. Dessa reação em cadeia brotam novas substâncias radioativas, como o
plutônio, que serve para fazer bombas ou para alimentar outros tipos de
reatores, e não existe na natureza. O processo gera ao todo mais de 1.000
substâncias altamente radioativas. O que não é reaproveitado no próprio reator
ou para outras finalidades é o lixo atômico.
A
piscina em Angra I foi projetada para acolher resíduos formados em oito anos de
operação. Mas, na realidade, as 15 toneladas ali depositadas equivalem a um ano
de funcionamento da usina brasileira, inaugurada em 1982. Mais lixo não se
formou pela simples razão de que a usina ficou fora do ar a maior parte do
tempo por causa dos intermitentes defeitos que acabaram lhe valendo o apelido
vagalume, que acende e apaga, acende e apaga. "Sobra espaço na piscina,
mas não devemos esperar sua capacidade se esgotar para então agir",
recomenda o físico carioca Luís Pinguelli Rosa, que integra a comissão
organizada na Sociedade Brasileira de Física para estudar o assunto. Pinguelli
é um dos maiores incentivadores da ideia de que o governo junte em volta de uma
mesa os melhores nomes do ramo para que digam o que se pode fazer a respeito—e
logo.
Os
cientistas têm recomendado uma variedade de alternativas. Na França, por
exemplo, 20.000 m3 de lixo radioativo estão aprisionados nos
armazéns de concreto da instalação nuclear de La Hague, no noroeste do país,
aguardando destino definitivo. Com planos de enterrar o material de grande
radioatividade, os pesquisadores franceses investigam quatro tipos de
sepulturas: solos de xisto, de sal, de granito e de argila. Mesmo que uma
dessas formações rochosas tenha as características ideais—algo que será
confirmado apenas em 1997—, o túmulo adequado só ficaria pronto dez anos
depois. Enquanto isso, as centrais nucleares francesas, responsáveis por 70% da
eletricidade gerada no país, lançam cerca de 40 m3 por ano de
material radioativo, ou de radiação ionizante, como dizem os cientistas.
"O Brasil não está numa situação melhor, porque aqui nem se decidiu onde
depositar os rejeitos de baixa atividade", critica Pinguelli.
De
fato, 98% do lixo radioativo brasileiro compõe-se de rejeitos que precisam
ficar isolados do contato humano durante dois ou três séculos apenas. Isso por
causa do fenômeno que os físicos chamam meia-vida: o tempo necessário para que
a radioatividade de uma substância caia pela metade. O césio- 137, por exemplo,
material usado em equipamentos de radioterapia e que contaminou uma série de
pessoas em Goiânia, em 1987, tem uma meia vida de trinta anos. Ou seja, passado
esse período, restará metade da radiação inicial: depois de mais trinta anos,
um quarto; após outros trinta, um oitavo; e assim por diante. Além de provir de
aparelhos desativados, que mexeram com material nuclear, e da água usada para
controlar a temperatura nos reatores—que tende a ficar contaminada por partículas
radioativas—, o lixo de baixa e média atividade é também engordado por
materiais comuns, como luvas e aventais, usados na manipulação de substâncias
radioativas.
Segundo
o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), do governo federal,
cerca de 10.000 brasileiros lidam diariamente com elementos radioativos.
"Basta que uma gota dessas substâncias respingue na roupa e o tecido passa
a ser pequena fonte de radiação", informa a física chinesa, naturalizada
brasileira, Cecil Chow Robilotta, da USP. Segundo ela, embora a energia nuclear
seja cada vez mais usada pela Medicina para diagnosticar ou tratar doenças, a
tendência é diminuir o volume do lixo radioativo dos hospitais. "Os novos
exames clínicos usam substâncias que emitem radiação durante um curto período,
como o tecnécio-99m, cuja meia-vida é de seis horas apenas", explica
Cecil, dentro da "sala quente" do Instituto do Coracão em São Paulo,
onde assessora médicos no serviço de radioisótopos. Ali, cestos de lixo
revestidos de chumbo e tambores de resfriamento guardam material
contaminado—aventais, seringas, pinças, chumaços de algodão—em processo natural
de decaimento, a diminuição gradativa da radioatividade.
Quando
a meia-vida é maior, porém, os rejeitos tanto de hospitais como de indústrias
seguem para armazéns especiais. No Estado de São Paulo, o depósito fica na
Cidade Universitária, na zona oeste da capital, no lugar onde funciona o IPEN.
Ali se acumulavam, até o último mês de julho, 104,9 toneladas de lixo,
distribuído em 615 tambores. Antes de ser armazenado, esse volume passou por um
ritual, praticamente idêntico nos centros de tratamento de rejeitos radioativos
do mundo inteiro. "O primeiro passo se assemelha a uma triagem, para
extrair os resíduos, ou seja, a parte do lixo que ainda pode ser
aproveitada", descreve o físico nuclear Achilles Suarez, responsável pela
equipe que pesquisa rejeitos radioativos no IPEN. "As bombas de césio-137,
quando não se prestam mais para tratar tumores, ainda podem ser aproveitadas em
aparelhos de gamagrafia, que servem para fazer diagnósticos", exemplifica.
A
consequência mais óbvia dessa, reciclagem é que o volume do lixo diminui.
Também para reduzir o volume, aquilo que de fato é rejeito deve ser ainda
compactado, sempre que possível. "Não faz sentido guardar 1 litro inteiro
de água, se apenas poucos mililitros estão contaminados", argumenta ele.
"Por isso, criamos uma espécie de concentrado radioativo." O fluído
em seguida é misturado a algum tipo de sólido, como cimento ou betume, para evitar
toda e qualquer dispersão durante a manipulação do material. Em outros locais,
os rejeitos líquidos de alta atividade são transformados em vidro, também para
impedir derramamentos. Quando o rejeito é sólido, muitas vezes é possível
prensá-lo. Assim. um tambor com 0,5 metro de altura, recheado de lixo atômico,
termina compactado numa pastilha de cerca de 10 centímetros de altura.
Quando
Achilles Suarez entrou na faculdade, em 1957, um veterano pendurou- lhe no
pescoço um cartaz: "Hoje, estudante de Física, amanhã lixo atômico".
O trote foi profético: depois de ter trabalhado mais de dezesseis anos na área
de proteção radiológica do próprio IPEN, o físico acabou assumindo o setor de
rejeitos em 1983. No fundo, as duas áreas têm a mesma finalidade: interpor o
maior número possível de barreiras entre a fonte de radiação e o homem; A
rigor, qualquer corpo serve de obstáculo para a radiação — o problema é que,
conforme a fonte radioativa, o obstáculo pode se tornar menos ou mais
eficiente. Quando, na reação de fissão, um átomo é bombardeado até romper o
núcleo, a energia pode ser liberada por quatro tipos de radiação —alfa, beta,
gama e ainda de nêutrons —que devem ser bloqueados por materiais com
características diferentes. "Se o lixo for enterrado sem maiores
informações sobre a sua radiação, poderá no futuro distante ficar sob os pés de
quem não terá a devida noção do perigo", imagina o físico Giorgio
Moscatti, da USP.
Os
cientistas do setor se preocupam não só com qual seria o melhor cemitério para
o lixo atômico, mas também com a necessidade de ser ele mantido sob controle
constante. Por isso, não apreciam particularmente a alternativa clássica de
jogar os rejeitos no mar. "Nunca se saberá direito como a embalagem estará
resistindo debaixo d’água, nem se poderá ter certeza de que os tambores não
acabarão flutuando até alcançar uma praia", adverte o físico Vito Vanin,
da USP. O mar, na verdade, foi o primeiro lixão radioativo: o Mediterrâneo
recebeu 50 toneladas de rejeitos produzidos na Itália; as águas do Atlântico
engoliram nada menos de 126.000 toneladas de tambores repletos de lixo dos
reatores de seis outros países europeus. Os Estados Unidos despejaram no Oceano
Pacífico 370 m3 (os países nem sempre adotam as mesmas unidades de
medida) de material radioativo. A título de comparação, uma piscina olímpica
tem 1.890 m3.
O
empesteamento só cessou em 1986, quando um acordo internacional determinou que
o mar só poderia ser usado quando ficasse provado que a água é capaz de diluir
os elementos radioativos, sem prejuízo para a fauna e a flora marítimas. O
estudo a respeito, a cargo de pesquisadores americanos, ingleses e japoneses,
deverá estar pronto no início do próximo ano. É claro que o terreno ideal para
a construção de um depósito subterrâneo de lixo atômico precisa ser estável—um
terremoto seria capaz de rasgar os tambores recheados de matéria radioativa.
Mas a impermeabilidade da rocha é ainda mais importante. Caso partículas
ionizantes escapem pela embalagem do lixo, elas podem levar até 1 milhão de anos
para alcançar a superfície. Já um lençol de água poderia trazer o mal à tona em
alguns meses, abrindo-lhe as portas para a cadeia alimentar dos seres vivos.
"O
sal é extremamente impermeável, por isso os alemães fazem bem ao depositar o
lixo em minas de sal desativadas. Só que a rocha é muito plástica e talvez não
suporte pesos grandes", pondera o geólogo gaúcho Gérson Dornelles, que
organiza na Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) a busca de um solo
adequado para enterrar o lixo nuclear brasileiro. "O granito, muito mais
resistente, tem a desvantagem de possuir fissuras que facilitam o escoamento de
água."
A
CNEN já apontou duzentas áreas de interesse para depósitos de lixo de baixa e
média atividade no país. A maioria se localiza em solos argilosos, com camadas
horizontais que dificultam a migração de partículas radioativas rumo à
superfície, como em São Fidélis, no Rio de Janeiro, e Trindade, em Goiás. A
decisão, quando vier, terá provavelmente a forma de uma lei votada pelo
Congresso a partir de um projeto encaminhado pelo Executivo. Está prevista para
este mês a entrega à Presidência da República de uma avaliação, elaborada por
uma equipe da Secretaria Especial do Meio Ambiente, de projetos já existentes
sobre rejeitos radioativos, como o de autoria do governo anterior, de junho de
1989, que já recebeu dois pareceres negativos de comissões da Câmara dos
Deputados. Enquanto isso, em tambores deixados a céu aberto, cobertos
precariamente e que já começam a se estragar pela corrosão, 3.460 m3 de
lixo atômico aguardavam há três anos em Abadia, a 20 quilômetros de Goiânia, a
decisão de Brasília sobre o seu destino.
Esse
lixo se originou em um ferro-velho, quando foi violada uma cápsula de césio-137
de não mais de 3 cm3, o tamanho de uma borracha de lápis, matando
quatro pessoas e contaminando mais de duzentas outras. "É preciso criar um
depósito, que eu chamaria de intermediário, para abrigar os rejeitos gerados em
acidentes como o de Goiânia", alerta o físico José Goldemberg, secretário
de Ciência e Tecnologia do governo federal. "Na época do acidente,
cientistas sugeriram levar os rejeitos para a Serra do Cachimbo, no Pará, onde
já existem buracos de 300 metros de profundidade, recobertos de concreto. Seria
a solução perfeita", lembra ele. "Mas um grupo de índios fez uma
manifestação diante do Palácio do Planalto e o governo resolveu voltar atrás.
Um absurdo. Enterrado ali, o lixo não ofereceria nenhum risco."
Para
saber:
A sujeira
nossa de cada dia - (SUPER número 7, ano 7)
Agentes
da desordem
No
organismo humano, a cada minuto, cerca de
250
000 átomos se desintegram, emitindo radiação. Além disso, uma pessoa recebe do
ambiente uma média de 100 milirems (mR) por ano— rem (de Roentgen equivalent
man) é a unidade usada para medir a dose de radioatividade absorvida pelo
homem. Uma chapa de pulmão expõe o paciente, em média, a 17 mR. Nas células, a
radiação produz os chamados radicais livres, moléculas que tumultuam as funções
orgânicas, ao reagir com tudo que encontram pela frente. A energia da
radioatividade também pode perturbar o DNA, a molécula da hereditariedade, que
programa o trabalho das células.
Estas,
então, correm o risco de se tornarem cancerosas ou, no caso da célula sexual,
de transmitir anomalias aos descendentes. De modo geral o organismo lida
satisfatoriamente com esses agentes da desordem. "Já nos acidentes
atômicos, a enorme radiação provoca mais estragos do que o organismo consegue
corrigir", explica a física paulista Emico Okuno, da Universidade de São
Paulo. Quando esse material radioativo penetra no organismo, causa nas células
estragos 25 vezes maiores e transforma a própria vítima em fonte de radiação.
Barreiras
sob medida
As embalagens
para lixo atômico combinam materiais diferentes porque existem radiações e
radiações. Um núcleo radioativo está sobrecarregado de energia, da qual tenta
se livrar, emitindo, por exemplo, partículas idêntica ao núcleo do gás hélio
constituído por dois prótons e formam as partículas alfa. São tão pesadas que
se deslocam em linha reta, trombando com a primeira molécula que encontrarem
pela frente: assim, uma folha de papel ou mesmo uma peça de roupa podem
barrá-las. Mas, para liberar energia, o átomo também pode emitir elétrons. É a
radiação beta. Bem mais leves, os elétrons caminham zanzando e se desviam de
eventuais obstáculos: para barrar os raios beta é preciso, no mínimo, uma folha
de alumínio; na pele, dependendo da energia, eles penetram até 0,5 centímetro.
Em
busca da estabilidade, um átomo emite ainda ondas eletromagnéticas um milhão de
vezes mais energéticas do que a luz, os raios gama, capazes de atravessar o
corpo humano; apenas materiais muito densos, como aço e chumbo, conseguem
segurá-los. Finalmente, existem os nêutrons. Embora muito penetrantes, reagem
com materiais ricos em hidrogênio, sendo barrados pela água, pela parafina ou
pelo grafite.
Os
lixões de cada um
Como
vários países tentam livrar-se dos resíduos de suas instalações nucleares:
Estados
Unidos - Até 1982, os rejeitos eram
depositados na superfície ou jogados ao mar. Em 1983, o lixo de alta atividade
foi levado para uma mina de sal no Estado do Novo México, desativada em seguida
por falta de segurança. Hoje esse material está guardado no deserto de Nevada,
enquanto 600 000 metros cúbicos de rejeitos de meia-vida curta se encontram
espalhados por diversos depósitos.
União
Soviética - Existem 35 depósitos
superficiais de cimento revestido com chumbo.
Inglaterra
- Desde 1986, com a proibição de
lançar o lixo ao mar, procura-se um lugar para enterrar o lixo de alta
atividade. Para os rejeitos de baixa atividade, construíram-se depósitos de
cimento próximos a usina nuclear de Windscale Sellafield, no nordeste do país.
França - Todo o lixo está nos armazéns da usina de La Hague,
no noroeste do país; estuda-se o solo de quatro regiões para construir até 2007
um depósito de grande profundidade.
Alemanha - O material de alta atividade é tratado na França e
depois transportado para minas de sal no norte do país. Só os rejeitos da usina
nuclear de Niederaichbach, desativada em 1983, foram enterrados a 1.200 metros
de profundidade, numa mina de ferro desativada.
Suécia
- Em 1988, inaugurou o primeiro
depositário subterrâneo do mundo, a 140 quilômetros de Estocolmo, um conjunto
de câmaras construídas em rochas de granito, com paredes revestidas de cimento
e chumbo.
Japão - No ano passado, cientistas começaram a estudar a
possibilidade de construir depósitos no fundo do mar, aproveitando o fato de
que os sedimentos marinhos são muito pouco permeáveis. (abril)