Desobediência civil para libertar-se dos combustíveis
fósseis.
“Por mim ficaria contente se todos os prados do mundo
ficassem em estado selvagem como consequência das iniciativas dos homens para
se redimirem” - Henry Thoreau
“Liberte-se
dos Combustíveis Fósseis”. De 4 a 15 de maio de 2016, uma onda global de
desobediência civil terá como alvo os projetos mais perigosos relacionados aos
combustíveis fósseis, para manter o carvão, petróleo e gás no subsolo e
acelerar a transição rápida para 100% de energia renovável.
Como
tive a oportunidade de mostrar na semana passada, o acordo de Paris assinado no
Dia da Terra (22 de abril) estabelece como meta, no melhor cenário, conter o
aquecimento global em 1,5º C em relação à temperatura do período
pré-industrial, ou seja, antes do início do uso generalizado dos combustíveis
fósseis. O gráfico apresentado no artigo mostra que existe uma alta correlação
entre o aumento das emissões de gases de efeito estufa e o aquecimento global,
sendo que a concentração de CO2 na atmosfera já atingiu 400 partes por milhão
(o seguro é no máximo 350 ppm).
No
mesmo artigo mostrei que os três primeiros meses de 2016 foram os mais quentes
da série histórica das medições iniciadas em 1880. O recorde foi batido por
larga margem, pois, em relação à média da temperatura do século XX, o ano mais
frio foi 1908 com anomalia de -0,44º C, o ano mais quente foi 1998 com anomalia
de 0,63º C, enquanto 2015 chegou a 0,90º C. A rapidez do aquecimento
surpreendeu em 2016, pois o mês de março apresentou anomalia de 1,22º C em
relação à média do século XX. Considerando a média de 1880-1910 (início da
série) o aumento ultrapassou o 1,5º C. Ou seja, atingimos em 2016 aquilo que o
Acordo de Paris prevê para 2100.
Portanto,
não há tempo a perder. É preciso reduzir a emissão de gases de efeito estufa.
Diversas medidas são necessárias. Mas, com certeza, uma das mais urgentes é
superar a dependência dos combustíveis fósseis e fazer a mudança da matriz
energética mundial para o uso de fontes renováveis e para deixar o carvão,
petróleo e gás no subsolo, ao invés de queimá-los e emitir CO2,
acelerando o aquecimento global e a acidificação dos oceanos.
Diante
do poder das grandes multinacionais do petróleo e dos governos que incentivam o
uso dos combustíveis fósseis, a alternativa é a construção de um movimento de
baixo para cima de desobediência civil e de boicote pacífico aos interesses da
indústria fóssil.
A
ideia da “Desobediência Civil” surgiu a partir de um texto lançado por Henry
David Thoreau (1817-1862) que, se opondo à Guerra dos Estados Unidos contra o
México, à escravidão nos Estados Unidos e ao genocídio dos índios americanos,
publicou o seu influente libelo (em 1849) onde propõe uma resistência pacífica
a certas leis de um Estado que era belicista, escravista, perseguia os povos
indígenas e não respeitava a natureza. A ideia da desobediência civil
atravessou as fronteiras geográficas e temporais e se transformou numa grande
referência da luta contra a opressão, a exploração, a injustiça, a
discriminação e pela defesa do meio ambiente.
A
proposta de desobediência civil de Thoreau começou a se espalhar pelo mundo
quando Leon Tolstói (1828-1910) passou a utilizar a ideia no combate ao
totalitarismo czarista na Rússia. Em seguida, Gandhi utilizou os mesmos
princípios na luta contra a discriminação racial na África do Sul e na luta
pacífica pela independência da Índia. O movimento sufragista e a “guerra do
sexo” foram uma forma de desobediência civil em defesa do voto feminino. Também
foi com base no texto da desobediência civil que Martin Luther King organizou a
luta não violenta contra a discriminação racial e pelos direitos civis nos
Estados Unidos, cem anos após a publicação do texto original. Thoreau foi
inspiração para o movimento hippie e o lema “Paz e Amor” dos jovens que
contestavam os valores tradicionais da sociedade de consumo, protestavam contra
a guerra do Vietnã e a hegemonia do complexo econômico-militar.
Outra
obra influente de Thoreau foi o famoso livro “Walden” (de 1854), onde defendeu
um estilo de vida simples, a contemplação, a autossuficiência e a defesa dos direitos
da natureza e da vida selvagem (Wilderness). As obras de Thoreau tornaram uma
das influências mais marcantes do movimento ambientalista. Por exemplo, Thoreau
foi um dos inspiradores da criação do Parque Nacional de Yosemite e do Parque
Nacional de Yellowstone nos Estados Unidos e tantos outros ao redor do mundo.
Na
década de 1970, Thoreau inspirou o movimento de Ecologia Profunda, termo
proposto pelo filósofo norueguês Arne Naess (1973) que sugeriu uma mudança do
paradigma antropocêntrico dominante (chamada de “ecologia rasa”) para uma
concepção ecocêntrica ou biocêntrica. Thoreau também influenciou a luta ética e
estética contra o especismo, pelo abolicionismo animal e pela extensão dos
direitos morais às espécies não-humanas, conforme defendem os filósofos Paul
Singer e Tom Regan.
Agora
em 2016, Henry Thoreau serve de inspiração para o movimento “Liberte-se dos
Combustíveis Fósseis”. No site da campanha está descrito da seguinte forma um
dos objetivos: “Ação direta pacífica: a destruição do nosso planeta e o
envenenamento das comunidades representam um ataque violento. Não reagiremos da
mesma maneira. Não seremos violentos, não destruiremos nenhuma propriedade.
Interferiremos nos negócios. Não faremos mal a nenhum dos envolvidos, mesmo que
nossas ações sofram reações violentas. Estamos comprometidos com uma resposta
pacífica para a crise global que enfrentamos”.
Os
últimos governos brasileiros cometeram um erro estratégico de dar prioridade
para a exploração das jazidas abissais do pré-sal e para a construção de
hidrelétricas na Amazônia. Esse é um caminho equivocado que agrava o
aquecimento global e represa o livre fluxo dos rios, das águas e dos peixes. O
rumo ambientalmente correto é garantir a integridade dos ecossistemas e manter
o petróleo, carvão e gás no subsolo, acelerando a transição efetiva da matriz
energética para uma nova composição 100% renovável. (ecodebate)
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