Há poucos dias (maio/2010) morreu em Israel, onde morava, o físico José Júlio de Rosenthal, a quem o Brasil e, principalmente, Goiás muito devem, embora raramente disso se fale. Mas num domingo, no final de setembro de 1987, Rosenthal, que estava no Rio de Janeiro, foi convocado pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) para ir a Goiânia, pois havia notícia de um acidente, ali, com uma bomba de césio 137.
Rosenthal convocou auxiliares e com eles combinou de se encontrarem no final da noite no aeroporto da capital goiana. De lá, com a roupa do corpo, seguiram para uma tapera numa área cedida para a construção de um centro de convenções, mas embargada pela Justiça a pedido de um instituto de radioterapia que ali funcionara. À luz de isqueiros, os técnicos da CNEN só encontraram lá um bando de mendigos que dormia, como disse Rosenthal a uma comissão de inquérito da Assembleia Legislativa goiana. A bomba de césio, desativada pelo instituto e furtada, fora rompida a machadadas por um catador de lixo, em outro local (imagine-se o que seria dos técnicos se estivesse ali, rompida).
Embora contivesse pouco mais de cem gramas de césio, a bomba rompida provocou mortes e milhares de contaminações entre as mais de 100 mil pessoas que passaram por exames nos dias posteriores. Aterrorizadas, como toda a população da cidade, pelo noticiário das televisões, que mostrava pássaros e gatos entrando livremente e saindo da área interditada onde fora rompida a cápsula – diante da impotência dos técnicos da CNEN, a essa altura já usando macacões providenciados pelo governo do Estado, mas sem saber o que fazer com os milhares de toneladas de resíduos da casa demolida do catador de lixo e de outros locais contaminados. A lei federal mandava que fossem para um depósito federal inexistente e que nenhum Estado aceitava. O governo goiano, sem outra solução, mandou-os para um antigo lixão a uns 20 km de Goiânia – onde a CNEN faria depois o depósito definitivo, embora para isso não fosse adequado (o depósito teve de ser implantado acima do solo, dada a presença de um lençol freático quase superficial).
Uma bomba com pouco mais de cem gramas de césio, perto do combustível ou dos resíduos de uma usina nuclear, é quase brincadeira de criança. Mas o governo brasileiro, que até hoje não tem solução para os resíduos altamente radiativos das Usinas Angra 1 e 2 – mantidos dentro de piscinas no interior das próprias usinas -, já tomou a firme decisão de construir algumas outras unidades. Não que haja alguma solução à vista para o mais perigoso dos lixos – ninguém ainda a encontrou, no mundo todo: o projeto norte-americano de um depósito 300 metros abaixo da Serra Nevada (a maior esperança) continua embargado pela Justiça, por falta de garantias. Mas, ainda assim, programam-se usinas para o Nordeste e para o Sudeste. E Angra 3, com custo previsto de muitos bilhões de reais, já tem a primeira licença, embora o conceituado físico brasileiro Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e coordenador do científico do Programa Brasileiro de Mudanças Climáticas, tenha dito que se deve encarar “com muita cautela” um projeto de usina nuclear à beira-mar, tendo em vista o processo de elevação do nível das águas dos oceanos (inclusive no litoral brasileiro), já em curso, e as previsões de novas elevações.
É mais um capítulo desse inacreditável processo decisório na área energética do Brasil, em que se vai avançando e programando a ampliação da oferta de energia, baseada em estimativas do crescimento da demanda altamente discutíveis – como já se escreveu aqui -, tendo em vista estudos que mostram outras possibilidades mais baratas e seguras: reduzir o consumo em até 30% com programas de eficiência e conservação de energia (como em 2001), aos quais se somariam 10% de ganhos na perdulária rede de transmissão (que desperdiça em torno de 15% do total transportado) e outros 10% repotenciando, a custos muito menores que na nova geração, antigos reatores de baixa produção. Tudo isso está em estudos da Unicamp, do WWF e outras instituições, diante dos quais os mandatários do setor se fazem de surdos, empenhados em grandes obras.
Tudo faz lembrar episódio do final da década de 80, quando a Eletrobrás contratou consultor muito renomado do Banco Mundial, Howard Geller, para analisar o plano de expansão previsto para uma década, que partia da “necessidade” de duplicar a oferta de energia, a um custo brutal. Geller deu parecer dizendo que o consumo de energia seria muitas vezes inferior ao projetado; mesmo que fosse maior, não haveria recursos disponíveis para a expansão planejada. Esqueceu-se o parecer e deu-se início a um plano logo abortado. E o tempo encarregou-se de mostrar que Geller tinha absoluta razão.
Agora, com base num crescimento projetado de 5,1% ao ano no consumo nacional de energia – mas sem discutir a matriz -, prevê o governo federal investimentos de R$ 951 bilhões na área de energia entre 2010 e 2019, dos quais 71% para petróleo e gás e 22,5% (R$ 214 bilhões) para energia elétrica, o que exigirá que novas fontes, inclusive 39 hidrelétricas previstas, gerem tanta energia quanto a Usina de Belo Monte (Estado, 5/5). E com baixíssima prioridade para fontes como energia solar, eólica e outras. A alegação é sempre a mesma – a energia eólica é “muito mais cara” que a hidrelétrica -, esquecendo, como lembra o professor Ildo Sauer (ex-diretor da Petrobrás, 2003-2007), que hoje o custo da energia elétrica é de R$ 110 por MW, como se alega na comparação com as energias alternativas, mas o preço final cobrado aos usuários nas tarifas é de R$ 450 – a não ser para os privilegiados consumidores do setor de eletrointensivos (alumínio, ferro-gusa e outros), que chegam a ter subsídios acima de 50% (e por isso os outros consumidores têm de pagar mais em suas contas).
É assim que se explicam usinas nucleares, Belo Monte e quejandos. (EcoDebate)
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