O modelo energético
brasileiro e a violação dos direitos das mulheres
1. Energia para quê e para quem?
O Brasil faz grande
propaganda de sua forma de produção de energia. Com 80% de sua matriz
proveniente de energia hidrelétrica, nosso país se gaba de ter um sistema
“limpo”, barato e eficiente, já que esse tipo de geração garante até 92% de
aproveitamento, contra uma média de 30% dos combustíveis fósseis, que dominam a
matriz mundial, não são renováveis e são poluentes.
Com 22 anos de
organização em território nacional comemorados neste 14 de Março (Dia
Internacional de Luta Contra a Barragens), o Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB) vem fazendo um alerta que, para discutir esta questão, não
basta olhar a forma de gerar energia, mas é preciso questionar para quê
e para quem está servindo a produção de energia do país.
Na leitura do
Movimento, o Brasil, por sua posição na divisão internacional do trabalho e
pela existência de uma base natural vantajosa, vem tendo seu modelo energético
voltado principalmente para o fornecimento de energia barata para grandes
empresas transnacionais, chamadas eletrointensivas, que exploram e exportam
produtos de baixo valor agregado, geram poucos empregos, pouco contribuem para
a dinamização da indústria nacional e são as principais responsáveis pela
degradação ambiental.
Por exemplo, a Tractebel,
a maior dona das barragens privatizadas no Brasil, envia em média cerca de R$ 1
bilhão por ano para sua matriz na França, sem investir um centavo em território
nacional. Das 12 empresas que mais remeteram lucros para fora do país, nove são
do setor de energia.
Por seu baixo custo
de produção, pelo alto valor de mercado (calculado com base no preço do
petróleo) e pela superexploração dos trabalhadores do setor, a produção de
energia no Brasil permite lucros extraordinários. Apesar disso, historicamente,
os atingidos por barragens nunca compartilharam desses benefícios, muito pelo
contrário. De mais de um milhão de atingidos no país, 70% não receberam nenhum
tipo de indenização. E o quadro de violação de direitos só piorou com a
privatização do setor elétrico na década de 90.
Na atual conjuntura,
a crise do capital instensifica a corrida rumo à exploração das bases naturais
vantajosas e aumenta o grau de exploração de trabalhadores e trabalhadoras. Em
uma conjuntura de crise como esta, as mulheres são as que mais sofrem com a
fome e a violência.
2. Mulheres: as mais
atingidas
Em sua busca por
compreender a realidade do impacto das barragens no Brasil, o MAB concluiu que,
dentre a população atingida, seja rural ou urbana, as mulheres são a parte
atingida de forma mais intensa e que tem seus direitos humanos mais brutalmente
violados.
Isso acontece porque
as mulheres ainda se encontram – apesar de todos os avanços históricos
conquistados pela luta feminista -, em posição de subalternidade com relação
aos homens. Os dados mostram isso: que a cada 15 segundo uma mulher é
assassinada no mundo e 90% dos casos a violência acontece dentro de sua própria
casa. No Brasil, a cada 2 horas uma mulher é assassinada. Os casos de estrupo
aumentaram 157% no Brasil nos últimos 3 anos.
Essa posição de
submissão não tem nada de biológica e não é simplesmente cultural, mas decorre
da divisão sexual do trabalho, segundo a qual, historicamente, foram
determinadas práticas diferentes para homens e mulheres com valores distintos
atribuídos a elas. Assim, aos homens coube o trabalho produtivo,
aquele que se dá no espaço público, enquanto as mulheres foram atreladas ao trabalho
reprodutivo e à esfera privada. Enquanto o trabalho do homem é valorizado,
o da mulher é visto como um não-trabalho, um dever natural e que deve ser feito
por amor.
Um dos fatores de
violação dos direitos das mulheres atingidas diz respeito diretamente ao
não-reconhecimento do trabalho. Por exemplo, no cálculo da indenização para os
atingidos pela barragem de Itá (Santa Catarina, 1987), a força de trabalho de
uma mulher adulta foi considerada como 80% da de um homem da mesma faixa
etária. Para os idosos, enquanto a força de trabalho masculina foi reduzida à
metade, a das mulheres caiu para 25% de um homem adulto.
Quando as mulheres
vão para o mercado de trabalho, seu salário é visto como um “complemento” ao do
homem e não à toa elas vão parar nos trabalhos mais precarizados. Uma mulher
negra, por exemplo, chega a ganhar 70% menos que um homem branco. Com isso, quando
é imposta a barragem, elas sofrem mais diretamente a perda de suas fontes de
renda, em geral trabalhos autônomos e informais, que dependem dos vínculos
comunitários que são dissolvidos.
As mulheres também
são mais diretamente afetadas com a desagregação da comunidade, pois, pelo
papel que ocupam no cuidado da casa e dos filhos, dependem de uma rede de apoio
de vizinhos e familiares, seja no trato com as crianças e os idosos, na
garantia da alimentação, entre outras coisas.
Sem contar que ainda
hoje na maior parte dos casos o conceito de atingido adotado pelas empresas é o
territorial-patrimonialista, ou seja, quem não for proprietário da
terra não é considerado atingido. As mulheres ainda são a minoria entre os
titulares de propriedades, ficando sem reconhecimento como atingidas e
permanecendo na dependência de seus maridos ou familiares.
Para além das
violações decorrentes da construção das obras, as mulheres também são vítimas
das contradições do modelo energético. A ausência de energia e água, situação
precária a que muitas famílias atingidas são submetidas, torna o trabalho das
mulheres muito mais árduo, pois elas acabam gastando mais energia humana para
compensar a falta de energia elétrica em casa, além de ter que percorrer
grandes distâncias para conseguir água para a família.
Outro reflexo da
opressão é a ausência das mulheres nos espaços deliberativos. A voz sufocada
das mulheres no espaço público (ou político) é uma consequência de sua
circunscrição à esfera privada. Os homens, seus maridos, irmãos e pais,
oferecem resistência à sua participação nas reuniões sobre a implantação da
barragem, pois não reconhecem na opinião delas força política.
3. Um exemplo
emblemático: Belo Monte
Belo Monte se tornou
um marco de um modelo de desenvolvimento que prioriza o lucro e desrespeita a
natureza e os direitos humanos. Com relação à intensidade com que as mulheres
são atingidas, não é diferente do histórico das barragens construídas no
Brasil.
A barragem de Belo
Monte vai atingir e desalojar mais de cinco mil famílias (mais ou menos 20.000
pessoas) moradoras dos chamados “Baixões” da cidade de Altamira, áreas
alagadas, onde predominam casas de palafita. Nessas regiões, enquanto os homens
tendem a olhar mais para os benefícios da construção da obra, com a geração de
numerosos empregos, as mulheres arcam mais com os ônus, que incluem a perda da
casa e dos laços comunitários, o inchaço das estruturas públicas da cidade
(escolas, creches, hospitais), o aumento da violência urbana e o tráfico, entre
outros.
Além disso, a maioria
das famílias atingidas de Altamira são indígenas e ribeirinhas, com um alto
índice de analfabetismo e o problema é mais grave entre as mulheres. O
analfabetismo deixa os atingidos e atingidas mais desprotegidos e sob risco de
serem ludibriados pela empresa.
Outro drama bastante
reconhecido da construção de barragens diz respeito ao incentivo à prostituição
e tráfico de mulheres, problemas que acontecem com conivência das empresas e
envolvem em geral pessoas de alto poder aquisitivo e político nas regiões.
No início deste ano,
a polícia desarticulou uma casa de prostituição onde havia mulheres, inclusive
menores de idade, vivendo em condição de escravidão e cárcere privado. A Norte
Energia, dona de Belo Monte, e o Consórcio Construtor Belo Monte, negaram
conhecer o local, que, no entanto, fica na estrada que dá acesso a um dos
canteiros de obra e dentro da área declarada de interesse público para a usina.
É lamentável, mas
estes fatos são recorrentes de obra em obra, basta lembrar dos casos recentes
das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, no rio Madeira (RO). Nos espaços de
construção das hidrelétricas, as mulheres são mais uma mercadoria de
entretenimento para distração dos operários. O Estado não toma medidas e nem há
programas de proteção às mulheres nesses espaços. As denúncias são deflagradas
e tornam-se notícias, mas não se avança em medidas estruturantes.
4. Desafios e
conquistas
Nos últimos anos, o
Movimento dos Atingidos por Barragens vem aprofundando sua discussão sobre a
opressão das mulheres e a violação de seus direitos. Essa constatação vem
refletindo nas ações tomadas pelo MAB, mas ainda há muitos desafios a se
superar no interior do Movimento, pelas próprias mulheres, e na sociedade como
um todo.
Um dos aspectos em
que o MAB vem buscando avançar é com relação à formulação da política de
direitos dos atingidos junto ao Governo Federal, dado que não existe no Brasil
até hoje marco legal que dê garantias às populações atingidas. Nesta política,
o MAB tem buscado garantir a igualdade de reconhecimento das mulheres, além de
ressaltar a necessidade de se implementar planos e programas específicos para
fortalece-las e reduzir sua desigualdade econômica, social e política.
Para a barragem de
Barra Grande (Rio Grande do Sul, 2002), por exemplo, a luta das atingidas e dos
atingidos conseguiu garantir que as forças de trabalho dos homens e das
mulheres fossem consideradas iguais para fins de indenização. No entanto, é
necessário que estes avanços estejam reconhecidos em lei para que sirvam de
parâmetro em todas as áreas em que se construam barragens no Brasil e não
fiquem restritos à negociação com uma empresa específica.
O Movimento também
vem buscando fortalecer a participação e a inserção política das mulheres em
todas as suas instâncias, provocando-nos a assumir espaços de coordenação dos
grupos de base, direção, discutir a produção, entre outros. Dentro desse marco,
foi realizado em 2011 o Encontro Nacional das Mulheres, no qual mais de 500
mulheres atingidas de todo o Brasil foram recebidas pela presidenta Dilma
Rousseff.
No jeito de fazer a
luta dos atingidos e atingidas por barragens, também existe a preocupação
permanente em garantir conquistas concretas que melhorem de fato a vida das
mulheres, como o acesso a energia elétrica, incentivos à produção de alimentos
saudáveis através de hortas orgânicas, tecnologias sociais de armazenamento e
aquecimento de água, entre outros.
Reconhecendo e
valorizando esses avanços, o MAB reconhece que há muito ainda que se fazer para
reduzir a desigualdade de gênero na sociedade e nos movimentos sociais. Cada
vez mais precisamos engajar mulheres e homens para construir o Projeto
Energético Popular. Esta é nossa contribuição na construção de um Projeto
Popular para o Brasil, que precisa ser obra de toda a classe oprimida:
trabalhadores e trabalhadoras, atingidos e atingidas, brasileiros e
brasileiras. (EcoDebate)
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