Hoje há uma grande discussão de
como será o carro do futuro em diversos aspectos (desenho, funcionalidades,
tecnologias, usos…) e certamente esta indústria impactará fortemente no futuro
do mercado energético. Atualmente cerca de 20% da demanda mundial de energia
advém do setor de transporte, como mais de 90% desta demanda ainda é
concentrada em derivados de petróleo, significa que cerca de 60% do consumo de
petróleo mundial depende do setor de transporte. Rapidamente, podemos
imaginar o que ocorreria com o mercado de petróleo mundial caso alguma
tecnologia substituta realmente consiga deslocar os combustíveis derivados do
petróleo.
A distância que estamos deste
futuro é uma questão que vale certamente muito mais que um milhão de dólares.
Contudo, o que se pode observar é um forte movimento de desenvolvimento de
diversas tecnologias alternativas. Algumas destas
tecnologias podem se complementar, mas certamente haverá (e já está presente)
uma disputa entre as tecnologias por participação no mercado. Por outro lado,
os carros baseados em gasolina e diesel buscam inovações para o aumento de
eficiência dificultando assim a sua superação. Será que não haverá um carro do
futuro, mas sim conjunto de possibilidades? Será que a matriz de combustíveis
será diversificada e heterogênea como a matriz elétrica?
Logo, desculpem-nos os grandes
amantes das tecnologias automotivas, mas ao contrário do que o título pode
levar a crer, não analisaremos a possibilidade de ter os nossos carros
dirigidos pelos softwares do Google ou se em breve entraremos voando em um dos
carros dos Jetsons. Este é o primeiro de uma série de textos que objetiva
discutir o desenvolvimento de combustíveis lternativos. Mais precisamente, a
interação entre a indústria da energia (mercado, regulação e política), a
indústria do transporte (considerando aspectos da mobilidade urbana) e a
promoção de novos combustíveis.
Este artigo introdutório a série
objetiva chamar a atenção para a necessidade de trata o tema de maneira
sistemática. Diversos temas relacionados aos combustíveis alternativos (etanol,
biodiesel, veículos elétricos, gás natural veicular, células de hidrogeno)
foram já tratados em artigos acadêmicos, por órgãos governamentais e mesmo
neste blog, embora que isoladamente. A perspectiva que adotaremos aqui, no
entanto, objetiva a busca de uma estrutura e de elementos chaves no tratamento
das diversas alternativas para o carro do futuro. Tentaremos seguir o conselho
de aquela lenda indiana dos cegos palpando parte de um elefante: o cego que
palpava a trompa falava que era flexível como uma mangueira, mais o que palpava
uma perna achava que era como um poste. Todas aquelas experiências eram
verdade, embora que aparentemente contraditórias. Da mesma maneira, tentaremos
nesta série combinar diversas experiências para tentar imaginar todo o
elefante.
Definição preliminar de
combustíveis alternativos
Há uma ampla gama de produtos que
são frequentemente tratados como combustíveis alternativos: desde tecnologias
hibridas (que aumentam a eficiência dos combustíveis derivados do petróleo) a
tecnologias baseadas em células de hidrogênio (ainda sob desenvolvimento do
ponto de vista comercial). Abaixo segue uma breve apresentação dos combustíveis
alternativos em discussão.
Tabela 1: Sumário dos combustíveis
alternativos considerados
Veículos elétricos - Veículos
elétricos são aqueles que possuem baterias elétricas e são capazes de
recarregar estas baterias através de acesso a rede elétrica (plug-in). A
transferência na energia da rede de distribuição para as baterias dos carros
necessita, no entanto, de infraestruturas e coordenação específica para
garantir o bom funcionamento do sistema. Note que os veículos podem ser
flexíveis, i.e., permitir o uso da bateria elétrica e do combustível
tradicional ou serem completamente elétricos.
Células de hidrogênio - As células
de hidrogênio são usadas para a produção elétrica, já dentro do veículo. As
células convertem a energia química do hidrogênio em eletricidade. Para tanto
seria necessário infra-estrutura de produção, distribuição e armazenagem de
hidrogênio. Um dos principais problemas do hidrogênio é sua armazenagem no
veículo, que não é segura se mantida pressão e temperatura ambiente.
Biodiesel - O biodiesel é um
combustível renovável que pode ser fabricado a partir de óleos vegetais,
gorduras animais e através da reciclagem de gorduras utilizadas. O biodiesel
quando usado diretamente (sem misturar com outros combustíveis) é chamado de
B100. No entanto, atualmente o mais frequente é o uso do biodiesel misturado
aos derivados do petróleo como o tradicional diesel.
Etanol - Etanol é o combustível
obtido da fermentação de açucares. Novas tecnologias têm permitido a produção
de etanol através da celulose. Assim como o biodiesel, o etanol pode ser usado
como único combustível ou misturado em derivados do petróleo (como a gasolina).
Gás Natural Veicular (GNV) - O GNV
é uma mistura de hidrocarbonetos leves que, à temperatura e pressão
atmosférica, permanece em estado gasoso. Ele é constituído predominantemente
por metano.
Note que os diferentes combustíveis
estão em distintos níveis de desenvolvimento tecnológicos e de introdução
comercial. Todos eles, no entanto, são alvos investimentos privados e de
políticas seja para introdução massiva, seja como parte de projetos pilotos.
Todas as tecnologias possuem, assim, certa maturidade, mesmo que ainda estejam
sujeitas a pesquisa e desenvolvimento.
Motivações à busca do combustível
alternativo - Pode-se de destacar três grandes motivações para a corrida dos
países por uma tecnologia alternativa: questões ambientais (como a emissão de
gases de efeito estufa), a característica esgotável do petróleo e a
concentração em algumas áreas geográficas das reservas de petróleo (o que
dependência de muitos países da importação deste recurso).
Preço do petróleo, mais
precisamente a perspectiva do preço, do petróleo é muitas vezes apontada como
variável chave para o desenvolvimento de alternativas a este combustível. O
preço do combustível tradicional, certamente é a variável que está observando
os investidores e muitos policy makers, contudo, pode-se compreender está
análise como consequência das reservas de petróleo (e expectativa de produção)
por um lado, o que está intimamente ligado com o caráter esgotável do produto.
Por outro lado, as análises de preços, também consideram a estrutura de
mercado, o que está relacionado com a concentração geográfica do mesmo.
De acordo com a Agência
Internacional da Energia, o setor de transporte é o segundo maior emissor de CO2
(21%), seguido pelo setor elétrico (41%). Dentro do setor de transporte, o
rodoviário é o maior emissor de CO2. Neste sentido, qualquer política
seriamente comprometida a reduzir a emissão de gases de efeito estufa passará
pela adoção de combustíveis alternativos. Ademais, as questões ambientais vão
além das políticas relacionadas ao efeito estufa, grande parte dos problemas
relacionados à qualidade do ar em metrópoles se deve também às emissões dos
automóveis.
Enquanto, o efeito estufa é um
problema mundial, cujas externalidades não se restringem geograficamente, a
qualidade do ar possuem efeitos na saúde da população local. As políticas de
melhora da qualidade do ar, por serem mais localizadas que as políticas em
relação à emissão de CO2 tendem a serem mais efetivas, pelos menos
países mais desenvolvidos.
Somando a estas motivações, vale
notar que, visto que a corrida por inovações em marcha a própria disputa pela
fronteira tecnológica também se tornou um motor importante para as inovações no
setor.
Inexistência de uma trajetória
tecnológica definida - A inexistência de uma trajetória tecnológica definida
pode ser observada pela heterogeneidade de tecnologias adotadas nos países e
das políticas de incentivos. As varáveis que levam e que deveriam levar a
adoção ou preferência de uma tecnologia em detrimento de outras é objeto de
estudo dos autores. Assim como quais as consequências destas escolhas.
Em uma primeira breve observação
pode-se perceber que as tecnologias têm diferentes penetrações nos países, e
que com isto a composição da matriz de combustíveis dos países começa a se
diversificar. Esta diversificação tecnológica permite a competição entre as
diferentes opções, o que por um lado incentiva as inovações e disputa pela
posição de tecnologia predominante, contudo, por outro lado, este efeito leva
uma ausência de standard tecnológico e diminui a escala de produção, como
consequência prejudica o desenvolvimento de algumas tecnologias que necessitam
de escala.
Breve comparação entre os
principais usuário de cada tecnologia - O uso do gás natural veicular (GNV) é
especialmente concentrado na Ásia e na América Latina, o gráfico 1 mostra porcentagem
de carros de GNV que cada país possui em relação ao total de carros de GNV no
mundo. Foram selecionados todos os países que possuíam pelo menos 1% do total
de carros GNV no mercado mundial. Na Europa, a Itália é país que vem apostando
mais no GNV, chegou a ultrapassar de 20% das vendas de carros novos em 2009
(Campetrini e Mock, 2011).
Os Estados Unidos, com a diminuição
do preço do gás natural pode aumentar em breve sua participação no mercado de
GNV.
Ao contrário dos Estados Unidos, o
mercado de GNV no Brasil (que ainda é um dos mais importantes no mundo) vem
sendo impactado negativamente pelos preços desde 2008. O Brasil, que apresentou
um expressivo crescimento do uso o GNV entre 1997 e 2007, observou uma retração
na demanda do combustível desde então. Diversos fatores devem ser considerados,
mas certamente o aumento do preço do combustível é um dos fatores centrais.
Note que a análise do impacto dos preços do gás natural na demanda deve levar
em consideração o preço dos combustíveis substitutos, que no Brasil deve
incluir principalmente a gasolina e o etanol.
Gráfico 1: % quantidade de carros
GNV por país em relação ao total mundial (2011)
No que se refere a rede de
abastecimento de GNV, critério importante para pensarmos a inserção do combustível,
observa-se no gráfico 2 uma alteração da importância dos países. Contudo,
sabemos que o número de postos é afetado pelo tamanho país. Países como Estados
Unidos, por exemplo, ganham uma grande importância se não consideramos o seu
tamanho.
Gráfico 2: quantidade de estação de
abastecimento de GNV por país em relação ao total mundial (2011)
A fim de tentar amenizar os efeitos
do tamanho do país, o gráfico 3 mostra, quantos Km2 por posto de GNV para os 10
países com maior número de postos de GNV no mundo. Percebemos que aparece então
o efeito tamanho, países como Brasil, Estados Unidos, Índia e China apresentam
muito menor densidade de postos de GNV. Isto provavelmente se deve pela
penetração heterogênea do combustível em diferentes áreas do país, como observamos
no Brasil. Considerando o efeito área do país, a Itália, o Paquistão e Alemanha
ganham importância.
Gráfica: Área (Km2) do
país por quantidade de posto de GNV (2011)
No que se refere aos carros
elétricos à distribuição mundial ganha contornos muito distintos. A maior
porcentagem de carro elétrico esta localizado nos Estados Unidos, assim como o
maior número de carregadores não residenciais. O segundo maior estoque de
carros elétricos está localizada no Japão, contudo, observa-se que a importância
dos carregadores é inferior ao da China. Na Europa, a França é o país com maior
estoque de carros, mas o número de carregadores não residenciais é inferior ao
da Alemanha.
Se por um lado, o estoque de carros
elétricos indica a importância do país no desenvolvimento desta tecnologia, por
outro o número de postos de recarga não residencial é um indicador do
desenvolvimento da infra-estrutura que permite a inserção da mesma. Note que,
para termos um indicador mais preciso da infra-estrutura, assim como no caso
dos postos de abastecimento de gás natural, o número de postos de recarga
deveria ser ponderado pela área e densidade populacional. Estudos mais
detalhados neste sentido devem ser realizados.
Gráfico 4: Participação dos países
no estoque de carro elétrico mundial e
número de postos de recarga: dados para os 10 países com maior
participação na Iniciativa de veículos elétricos (2012)
A participação Brasileira no
mercado e carro elétrico, apesar de crescente, ainda é muito incipiente,
segundo dados da ANFAVEA (2013)[10] o licenciamento de automóveis e comercias
leves elétricos em 2012 foi de 117, e em 2013 (até setembro, incluso), 344.
No que se refere ao biodiesel, o
Estados Unidos é o principal produtor, o principal produtor Europeu é a
Alemanha seguida pela França. O biodiesel também está fortemente presente em
outros países europeus e considerando-os juntos a produção ultrapassaria a
produção norte-americana. Na América do Sul tanto o Brasil quanto a Argentina
possuem participações importantes na produção, a Colômbia apesar de ter uma
produção menor ocupa a décima posição no cenário mundial. O que também confere
a América do Sul uma maior participação na produção de biodiesel que a América
do Norte.
Gráfico 5: Participação na produção
do biodiesel mundial dos 10 maiores produtores (2011)
No que se refere ao etanol,
diferentemente do biodiesel, os Estados Unidos é de longe o maior produtor
mundial. O Brasil está posicionado logo atrás dos Estados Unidos com uma
produção inferior a 50% da produção do primeiro. A China em terceira posição
possui uma produção muito menos significante.
Gráfico 6: Participação na produção
do Etanol mundial dos 10 maiores produtores (2011)
Vale notar que discrepância da
produção norte-americana com o resto do mundo e em especial em relação à
produção brasileira é um fenômeno recente. O Brasil é um produtor histórico de
etanol e no gráfico 7, pode-se observar o crescimento da diferença da
importância da produção norte- americana entre 2007 e 2013. Isto se deve por um
lado ao forte crescimento da produção absoluta dos Estados Unidos e as pequenas
alterações na produção brasileira. Sendo assim pode-se afirmar que o
crescimento da produção do Etanol mundial foi consequência da indústria
americana com uma pequena ajuda do Canadá, que obteve um crescimento relativo
importante em 2011.
Gráfico 7: Participação na produção
do Etanol mundial Brasil e Estados Unidos (2007-2011)
A tecnologia do hidrogênio ainda
está em um estágio de projetos pilotos. As estações de abastecimento de hidrogênio
possuem ainda um caráter de teste, contudo observar o número de estações por
países e a sua evolução com o tempo nos permite ter algumas intuições de quais
são os países liderando este processo e de como isto vem crescendo na última
década, mesmo que com variações ao longo dos anos.
Gráfico 8: Número de estações de
abastecimento de hidrogênio (2012)
Note que os dados no gráfico são de
número de estações abertas, os Estados Unidos, por exemplo, chegou a ter 63
estações abertas em 2009, dado representado no gráfico, contudo fechou alguma
de suas estações e em 2012 este número estava em 58. O que de toda forma lhe
confere o posto de país com maior número de estações de abastecimento de
hidrogênio. O incentivo a esta indústria tem variado muito ao longo no tempo
nos Estados Unidos e no mundo. Por exemplo, se observarmos o número máximo de
veículos a hidrogênio nos Estados Unidos varia, chegou a 86 em 2007, caindo
para 62 em 2010.
A variação das motivações a
indústria de hidrogênio também pode ser observada se considerarmos por ano a
quantidade de estações de abastecimentos instaladas.
Gráfico 9: Número de estações de
abastecimento de hidrogênio instaladas no mundo
Percebemos que no período entre
2007-2009 houve um pico de interesse nesta fonte de energia que se retraiu.
Devido à importância dos Estados Unidos no total de estações instaladas no
mundo estas variações se devem em parte significativa as mudanças do mercado
americano em relação a esta tecnologia.
Além dos Estados Unidos, o Japão e
a Alemanha têm apresentado grande interesse na tecnologia do hidrogênio. Estes
são países também com grande interesse no carro elétrico. A França, por outro
lado, apesar de possuir importante participação no mercado elétrico, não
apresenta importância equivalente em hidrogênio. Entres as motivações para este
“desinteresse” podemos apontar para base de produção elétrica francesa baseada
no nuclear.
Tentando imaginar o elefante
Os gráficos apresentados acima são
números muito simples, mas nos permite uma primeira aproximação ao tema,
apontando para a grande diversidade das experiências de inserção de
combustíveis alternativos. Percebemos a liderança dos Estados Unidos em todas
as tecnologias com exceção do GNV. No que se refere ao biodiesel, apesar dos
Estados Unidos serem o maior produtor, este crescimento foi muito inferior ao
do etanol. Haveria aí uma competição causada por diversos incentivos (ou
ausência deles)?
Na Europa percebemos que os países
que apontam como principal agente em cada tecnologia é distinto, contudo o
papel da Alemanha em todos eles é relevante. A Itália mostra uma maior inserção
dos carros a gás, seguida por países como Alemanha e Espanha. A Alemanha
certamente é um líder no que se refere ao biodiesel, seguida pela França. No
cenário elétrico pode-se observar a ordem inversa: a França lidera o número de
carros seguido pela Alemanha.
O Brasil possui um posicionamento
no que ser refere à inserção de combustíveis alternativos, tendo destaque no
mercado de etanol, biodiesel e GNV. Iniciativas relacionadas ao carro elétrico,
porém, ainda são incipientes, assim como as iniciativas relativas a uso de
células de combustíveis.
Olhando estas comparações entre os
países muitas perguntas surgem. Gostaríamos de compartilhar com vocês algumas
delas. Qual a consequência dos diferentes ritmos de desenvolvimento das redes
de GNV? Note que se comparado com outros países, China, Brasil e USA possuem
muitos carros, contudo, uma rede limitada. O Japão é segundo país em número de
carros elétricos, contudo, sabemos que a sua geração elétrica esta baseada em
grande parte em gás (principalmente depois de Fukushima): por que não usar
diretamente o carro a gás? E onde deveriam se posicionar os países como a
Dinamarca que possuem grande capacidade de geração elétrica intermitente, que
poderia obter grandes benefícios com a capacidade de gestão que a bateria do
carro elétrico poderia ofertar? Ou como pensar a interação do parque de geração
elétrica e as escolhas dos combustíveis alternativos? Certamente para responder
estas questões, e muitas outras que surgem ao observar estas comparações, é
necessário pensar não só na interação das tecnologias e recursos associados às
mesmas, mas também, e principalmente, nas instituições envolvidas, sejam elas
privadas, públicas ou hibridas. (ambienteenergia)