segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Sociedade convivial= sair do consumo massivo de energia

‘Para construir uma sociedade convivial, é preciso sair do consumo massivo de energia’
“A energia é uma das causas da destruição da convivialidade na sociedade moderna. Para construir uma sociedade convivial, é preciso sair desse consumo massivo de energia”. Foi a partir dessa constatação que o economista e sociólogo francês Serge Latouche abordou na Unisinos,  a questão: Sociedade convivial e economia de baixo carbono: Uma relação convivial?, título da conferência que compõe o Ciclo de Palestras: Economia de Baixo Carbono. Limites e Possibilidades, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Para Latouche, a questão se resume nisto: o petróleo é fonte de monstruosidades e de guerra. E se a convivialidade é uma “forma de amizade”, a única saída possível, defendeu, é o “decrescimento convivial”. “A sociedade convivial diz respeito a uma sociedade de abundância frugal, de prosperidade sem crescimento (prosperity without growth)”, afirmou Latouche, citando Tim Jackson.
Por isso há uma clara contraposição entre a economia de crescimento, que tem como objetivo o “crescimento pelo crescimento”, e as sociedades tradicionais, que buscavam aumentar certas produções para satisfazer certas necessidades. Ao contrário, para o professor de Economia na Universidade de Paris XI – Sceaux/Orsay, “a nossa sociedade faz aumentar e cria necessidades”, por meio de uma “insatisfação crônica”.
Segundo Latouche, a publicidade “nos deixa insatisfeitos com o que temos para desejar o que não temos”. E deu como exemplo o celular: “Há 20 anos ninguém precisava dele. Hoje, tornou-se uma droga, somos toxicodependentes de produtos que são criados”. E o marketing alimenta a ilusão:
1) do desejo de consumir, criado pela publicidade, deixando-nos insatisfeitos com o que temos;
2) do crédito, que vai nos permitir satisfazer o que desejamos hipotecando o futuro, mesmo sem renda, sem trabalho e sem patrimônio;
3) da obsolescência programada, ou seja, da necessidade cíclica de substituir os equipamentos a cada determinado período de tempo.
Para o economista, autor de Pequeno tratado do decrescimento sereno (Ed. Martins Fontes, 2009), por muito tempo a sociedade do consumo foi chamada de sociedade de abundância, mas, na realidade, é uma sociedade da escassez. Citando a obra de Marshall Sahlins, Stone Age Economics, as sociedades do paleolítico eram sociedades de caçadores e coletores que viviam com abundância, com necessidades mínimas. Havia muita caça e, portanto, bastava caçar, o que não era nem trabalho, era uma “festa coletiva”. Em poucas horas, os membros dessas sociedades satisfaziam as suas necessidades e, no resto do tempo, faziam festa – ou guerra, que, na sua concepção, também era uma espécie de festa, afirmou Latouche.
“Só há sociedade de abundância se as necessidades forem limitadas. Se forem ilimitadas, o planeta será destruído antes”, comentou. Assim, a sociedade do decrescimento será necessariamente uma sociedade pós-carbono. Para isso, é preciso renunciar às energias fósseis. Que, por outro lado, estão em extinção, previu Latouche, e não existirão por muito tempo. E disse: “É melhor deixar o que resta delas no subsolo, se não quisermos que esta universidade fique inundada, pois, quando o mar se elevar alguns metros, a Unisinos ficará debaixo d’água. E isso acontecerá se não mudarmos de estratégia”.
Latouche, então, direcionou sua fala a dois pontos principais:
1) como passamos dos sonhos das Luzes de Adam Smith ao pesadelo de Darwin;
2) como passar das energias do desespero às energias renováveis do decrescimento convivial.
No primeiro ponto, o economista retomou algumas das ideias abordadas em sua primeira conferência, no dia 21 de novembro, no campus de Porto Alegre da Unisinos. Em síntese: nosso imaginário foi colonizado pela economia, por meio de mitos transmitidos pela educação, pelo tempo, pela publicidade. O principal mentor dessa colonização, afirmou Latouche, foi o “príncipe da economia”, Adam Smith, cuja utopia liberal (“amanhã teremos tudo grátis, a abundância está ao alcance de todos”) foi compartilhada por todos os pensadores do Iluminismo. Daí nasceu o que os economistas chamam de trickle-down effect, ou seja, um efeito semelhante a  quando a maré sobe, e barcos grandes e pequenos tiram e proveito disso: ou seja, os ricos ficarão cada vez mais ricos, e os pobres ficarão cada vez mais ricos, por sua vez. Segundo Latouche, foi algo do que Lula fez: enriqueceu as multinacionais e melhorou a vida dos pobres, em detrimento, porém, da floresta amazônica.
No entanto, essa era a utopia. Na prática, os capitalistas se tornam cada vez mais ricos, mas os pobres tornam-se miseráveis, afirmou o economista. Ou, nas palavras de Marx, tornam-se proletarizados.
Latouche abordou, portanto, duas grandes mutações do capitalismo que aprofundaram as coisas: a criação do sistema termoindustrial a partir de 1850, com o surgimento das máquinas a vapor movidas a carvão; e o descobrimento de uma nova energia, o petróleo, a partir dos anos 1950, no pós- Segunda Guerra. Sendo muito mais poderoso do que o carvão, ilustrou Latouche, um tanque com 30 litros de petróleo tem a mesma potência que um operário que trabalha em tempo integral durante cinco anos.
Nesse momento, Latouche precisou “molhar a garganta”. E, em tom de brincadeira, disse: “Um copo d’água não é tão bom quanto um vinho, mas pelo menos não é um copo de petróleo”.
“Totalitarismo soft”
A partir dessas mutações do capitalismo, chegamos à era do “totalitarismo soft”, com um Big Brother muito mais sutil. “Somos engrenagens mais ou menos condescendentes dessa megamáquina, assim como o drogado consente com o sistema da droga”, comparou Latouche. E isso nos leva a viver a sexta grande extinção da história das espécies. “Extinguem-se de 50 a 200 espécies por dia, não tão visíveis quanto os mamutes, mas sim bactérias e outras espécies também visíveis, como as abelhas na Europa, provavelmente por causa dos pesticidas e das ondas eletromagnéticas”, explicou Latouche. O diferencial dessa nova extinção é que ela é provocada pelo homem e, provavelmente, terá o próprio homem como vítima.
Por isso, para Latouche, encontramo-nos em uma encruzilhada: ou a extinção das espécies ou o desespero total do não crescimento em uma sociedade do crescimento. Mas há uma possível terceira via: “Sair da sociedade do crescimento e construir uma sociedade do decrescimento, da abundância frugal, sair do software que nos foi implantando no século XVIII com Adam Smith, voltar à autolimitação das nossas paixões para o bem-estar da humanidade”, sintetizou.
Portanto, é preciso passar das energias do desespero às energias renováveis do decrescimento convivial. Por muito tempo, afirmou Latouche, o petróleo foi a energia da esperança, que permitiu os 30 gloriosos anos da sociedade do welfare ocidental, entre 1945 a 1975, e que permitiu a extraordinária produção atual, já que “o software da sociedade capitalista é o acúmulo ilimitado”. Mas, perante o risco de ficar sem petróleo, a sociedade do crescimento passa a recorrer às que Latouche chama de “energias do desespero”: energia nuclear e gás de xisto. A energia nuclear já mostrou por duas vezes na história as suas consequências: em Chernobyl e em Fukushima. O gás de xisto, ainda em suas origens, também tem suas consequências maléficas, como mostra o filme Gasland.
Nesse sentido, afirmou Latouche, é necessária uma mudança de valores, de conceitos, de relações de produção, de estrutura da distribuição, da lógica da globalização. “É preciso desglobalizar para relocalizar”, já que, como dizia Ivan Illich, a solução para muitas doenças é se apegar ao lugar onde vivemos.
É preciso reconhecer que “só há abundância possível na frugalidade”: e todos os povos tradicionais orientais, africanos, ameríndios sabiam disso (antes que o vírus do crescimento se espalhasse). É preciso passar da “sociedade da escassez e do desperdício” para a “sociedade da prosperidade sem crescimento”, afirmou.

Autolimitação
Ao encerrar, Latouche projetou na tela a imagem ao lado. Trata-se da tampa de um poço localizado no maior templo zen do Japão, famoso pelo seu jardim de pedras. A imagem é composta por quatro caracteres e por um meio caractere: a própria boca quadrangular do povo. Esses caracteres condensam a filosofia zen: “O homem só pode alcançar a satisfação e a felicidade se souber limitar as suas necessidades”. É essa “terceira via” que sinaliza o “caminho de esperança e de verdadeira felicidade para a humanidade”, afirmou Latouche. Para isso, é preciso aprender com a natureza. “As árvores não crescem até o céu. Elas crescem até certo ponto e depois param”. Contentam-se – frugalmente, poderíamos dizer – com aquilo que conquistaram. Não se excedem. Não acumulam. Não desperdiçam.
Portanto, para mudar, sugeriu Latouche, é preciso primeiro indignar-se. Mas também reagir. “Há um outro mundo, e ele está dentro deste mundo”, afirmou, citando Paul Éluard. “O futuro sempre está em gestação no presente, em nós mesmos. Podemos viver de outro modo no mundo em que estamos inseridos”, exortou. (EcoDebate)

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