quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A crise do setor elétrico brasileiro

Introdução: “as pessoas dependem de um número limitado de princípios heurísticos que reduzem a complexidade das tarefas de avaliar probabilidades e predizer valores para as operações de julgamento mais simples. Em geral, estas heurísticas são bastante úteis, mas às vezes conduzem a erros graves e sistemáticos.”
1 – Reducionismo, imprecisão e algum grau de miopia marcam explicações para o atual momento tanto do setor energético norte-americano quanto do setor elétrico brasileiro. O “descobrimento” de “energia barata” tem sido apontado, em referência ao gás de xisto, como explicação para o bom momento do setor energético norte-americano. A condição hidrológica desfavorável, por vezes combinada com forte calor, é apontada como razão determinante da crítica situação do setor elétrico brasileiro. A investigação das causas do momento norte-americano sob as perspectivas histórica, econômica, regulatória e jurídica, além de revelar o equívoco da tese da “energia barata”, serve como estudo de caso a partir do qual é possível compreender as razões para o momento do setor elétrico brasileiro e identificar alternativas para reversão do quadro.
II. O caso norte-americano: “... abra mercados, adote esquemas para inovação, invista em pesquisa e desenvolvimento e no sistema educacional”.
2 – No início da década de 60, vigorou nos Estados Unidos o tabelamento do preço do gás nas operações interestaduais. Preços artificialmente baixos aqueceram a demanda para nível superior à capacidade de oferta, provocando longas esperas dos pedidos de novos atendimentos, situação inaceitável em país marcado por rigorosos invernos. No início da década de 70, em razão da guerra do Yom Kippur, experimentou- se a primeira crise do petróleo, resultante em expressivo aumento no preço do barril do petróleo e no consequente agravamento do déficit da balança comercial norte-americana.
3 – Reformas foram implementadas com o propósito de reverter o cenário. Em resposta ao desequilíbrio no setor de gás, promoveu-se sua desregulação, cuja essência consistiu na aceitação da irrevogável lei da oferta e da procura como vetor dos preços desse bem essencial. Em resposta à crise do petróleo e seus nefastos efeitos, iniciou-se movimento de “eletrificação” do consumo de energia, o qual consistiu em reduzir o consumo interno, mas não a produção, de combustíveis fósseis, aumentar o consumo baseado em fontes renováveis e conferir incentivos à racionalização no consumo, à pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, à inovação e ao empreendedorismo.
4 – O incentivo à racionalização no consumo foi promovido mediante tarifas indutoras de eficiência (“Efficiency Inducing Rates – EIRs”), caracterizadas por veicularem sinais de preço de acordo com o período do dia, estação do ano e comportamento do consumidor. No início do século corrente, as novas tecnologias, com destaque para os medidores inteligentes, permitiram a aplicação de preços em tempo real (“real time pricing”).
5 – O incentivo à pesquisa e desenvolvimento, à inovação e ao empreendedorismo foi viabilizado tanto pelo regime jurídico de patentes, estruturado, aplicado e revisitado sempre com o objetivo de proporcionar os incentivos adequados para desencorajar atividades improdutivas e estimular o desenvolvimento de produtos efetivamente úteis à sociedade, quanto pela chamada lei da captura, a qual, ao conferir aos cidadãos, e não ao Estado, direitos sobre os recursos naturais encontrados em suas terras, faz com que a exploração desses recursos e a percepção dos benefícios não dependam de improvável gestão eficiente de alguma PetroSam.
6 – A indução à eficiência energética desatou em produtividade, na medida em que, hoje, produz-se muito mais a partir de uma unidade de energia. Pesquisa e desenvolvimento e inovação conduziram às técnicas de fraturamento para extração de gás. Não há “energia barata”. A energia é a mesma que sempre esteve nos subsolos rochosos. Seu preço não é intrinsicamente barato ou caro, mas observa a lei da oferta e procura em escala global. A nova tecnologia de extração, sim, ostenta boa relação custo/benefício.
7 – A conjunção desses fatores fez com que os Estados Unidos tomassem a posição da Rússia como maior exportador de gás natural do planeta. Além de ter sido determinante para a redução do déficit da balança comercial e para a recuperação da economia norte-americana após a crise de 2008, o aumento na exportação de gás natural autoriza projeções de que os Estados Unidos, ainda na década corrente, assumirão a posição de maior exportador de energia do mundo e reverterão, enfim, o persistente déficit de sua balança comercial.
III. O caso brasileiro: “Pesquisas sugerem que os esforços para fazer os custos do uso da energia mais salientes podem alterar decisões e reduzir significativamente esses custos.”
8 – Em 2012/2013, implementou-se, no setor elétrico brasileiro, medida semelhante à adotada no setor de gás norte-americano no início da década de 60. Em momento em que o custo de geração refletido nas tarifas era inferior ao custo efetivo de geração de energia elétrica, fez-se a opção de reduzir essas tarifas em 20%. Assim, a diferença entre o custo efetivo de geração e o custo refletido nas tarifas aumentou ainda mais. O resultado? Sucessivos recordes históricos no consumo residencial e comercial de energia elétrica, recordes esses que, em aparente paradoxo, estão dissociados de crescimento econômico, o que sugere haver consumo ocioso, desnecessário, ou, em bom e claro português, desperdício, o extremo oposto da eficiência energética.
9 – Já houve quem acreditasse que a demanda por energia elétrica seria inelástica, ou seja, não responderia a alteração nos preços. No entanto, a experiência do racionamento já havia revelado o contrário. A essência do “racionamento” vivenciado em 2001/2002 consistiu em aumentar o preço da energia elétrica para quem não observasse as metas de redução de consumo e em bonificar quem reduzisse o consumo para patamar inferior à meta. Mediante aplicação da noção básica de microeconomia de que a demanda reage à alteração de preços de uma dada mercadoria, conseguiu-se, com o programa de racionamento, a mobilização da sociedade, cuja reação acabou por evitar a necessidade de blecaute e por superar a situação adversa de abastecimento.
10 – O contrário foi verificado com a recente redução das tarifas em 20%. Sem sinal adequado de preço e, por consequência, inadvertido, o consumidor consumiu como se o custo de geração estivesse módico e, por consequência, provocou o despacho de usinas termelétricas cada vez mais caras, as quais, usualmente movidas a óleo combustível, impuseram e ainda impõem significativos custos econômicos e ambientais, em movimento oposto ao bom exemplo da “eletrificação” colimada no caso norte- americano.
11 – Com sinal de preço menos distorcido, o cidadão-consumidor poderia ter evitado consumo ocioso, poderia ter reduzido o consumo ao longo de 2013 e início de 2014 e, assim, contribuído para o armazenamento de água nos reservatórios das usinas hidrelétricas, o que mitigaria o despacho de tantas usinas termelétricas e aliviaria os correspondentes custos, os quais, embora financiados em grande medida pelo cidadão- contribuinte, serão depois repassados ao cidadão-consumidor.
12 – As experiências do racionamento em 2001/2002 e da redução das tarifas promovida pela Medida Provisória n. 579/2012 constituem comprovações empíricas da necessidade de o Brasil despertar para a importância de a operação ser feita também pelo lado da demanda, e não apenas por intermédio da ampliação incessante e muitas vezes desnecessária da capacidade de geração do sistema.
13 – Sinais adequados de preço, de preferência em tempo real, serviriam para: (i) conter o preço da energia elétrica no curto prazo, pois o consumidor, informado sobre o custo efetivo da geração de energia elétrica, reduziria seu consumo ou alteraria os horários de consumo, dispensando o despacho das usinas mais caras; (ii) conter o preço da energia elétrica no longo prazo, pois, ao reduzir o consumo ou alterar os horários de consumo, o consumidor dispensa a necessidade de haver excedente de capacidade destinado ao atendimento do consumo na ponta; e (iii) proteger o meio-ambiente, porquanto haveria redução ou eliminação do despacho de usinas termelétricas, mais poluentes do que as usinas hidrelétricas, as quais, no Brasil, operam na base do sistema.
14 – Sinais adequados de preço também permitiriam a identificação do exato valor agregado pelas fontes renováveis. Conforme enfatiza o Professor Severin Borenstein, da Universidade da Califórnia, Berkeley, “energia de fontes intermitentes deve ser avaliada considerando o momento em que a energia é produzida.” Para ilustrar seu raciocínio, o Professor Severin Borenstein exemplifica: “Energia solar é produzida apenas durante o dia e tende a alcançar o pico de produção no meio do dia. Em muitas áreas, isso é praticamente coincidente com o período de ponta do consumo, o qual normalmente se verifica nas tardes de verão. Nesse sentido, o valor econômico médio da energia solar é maior do que seria caso a mesma quantidade de energia fosse produzida na média em todas as horas do dia. Energia eólica frequentemente apresenta padrão oposto nos Estados Unidos, produzindo, na maioria das regiões, mais energia elétrica à noite e em momentos de baixa demanda e baixos preços”.
15 – A falta de granularidade faz com que o preço da energia elétrica não reflita a efetiva contribuição e importância de cada fonte para o sistema. No exemplo mencionado pelo Professor Severin Borenstein, caso houvesse granularidade horária de preço, a fonte solar teria vantagem competitiva natural, decorrente não de subsídio, mas da sua aptidão para produzir energia elétrica no horário de ponta do consumo. No caso das usinas eólicas, a vocação para produção de energia elétrica no período noturno, se conjugada com preços horários, conformaria cenário propício à introdução do carro elétrico no País, reduzindo a emissão de poluentes e liberando à exportação a energia de combustíveis fósseis, os quais, à diferença das fontes renováveis, podem ser acondicionados em barris e embarcados em trens e navios.
16 – Maior granularidade nos preços permitiria a identificação do efetivo valor proporcionado por cada fonte, permitiria a identificação da exata relação custo/benefício associada a cada fonte, informação essencial para orientar a expansão eficiente do sistema e para fixar critérios adequados de seleção das propostas de empreendimentos mais vantajosas para o sistema e os consumidores.
IV. Conclusão: “Fatos, na vida, na política e na economia, têm consequência. Às vezes, elas demoram a chegar, mas chegam”.
17 – A comparação com o caso norte-americano faz saltar aos olhos a necessidade de o setor energético ser encarado como estratégico para a competividade nacional, em vez de utilizado com vistas à persecução de objetivos de curto prazo, como controle da inflação, aumento episódico do poder de consumo da população e/ou eleição.
18 – É tempo de o Brasil despertar para as novas tecnologias de equipamentos e também de regulação, sob pena de não perceber a maior mudança verificada na indústria elétrica desde o seu nascimento com a invenção, patenteada, da lâmpada incandescente. Ainda que se queira evitar o termo “racionalização”, o estímulo ao consumo desmedido de energia elétrica deve ceder lugar à consciência de que a noção de produtividade se aplica também ao consumo de energia. O consumidor bem informado via preço contribui com a operação do sistema e protege a si próprio, pois pode reduzir seu consumo ao essencial e, assim, mitigar ou evitar o aumento do custo de geração, que, cedo ou tarde, a ele será repassado, na condição de consumidor ou de contribuinte.
19 – O fracasso do modelo paternalista em que o Estado, em pretensão de onipotência, distorce a informação de preço e induz o consumo independentemente do custo associado está revelado na forma de litígios em profusão e tarifas em violenta ascensão após a forçada contração.
20 – “Na era do ‘tempo real’”, a reversão do quadro atual pressupõe, portanto, a utilização das novas tecnologias para, via preço, conferir informação precisa e adequada aos consumidores sobre o custo de produção de energia elétrica. Assim, assegura-se ao consumidor plena liberdade de escolha sobre quando e quanto consumir e, por consequência, obtém-se a contribuição da demanda em favor da operação do sistema.
21 – O intervencionismo paternalista, sobretudo quando caracterizado também pelo desprezo por lições básicas de economia, produz retrocesso e crise. A realidade sempre se impõe. Quanto mais se tenta postergá-la ou maquiá-la, mais caro é o preço que ela cobra. (jota)

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