No
setor elétrico brasileiro a distinção entre crises no passado e no presente é apenas
uma ilusão teimosamente persistente.
A
geração de energia elétrica no Brasil foi estruturada com base em usinas
hidroelétricas, aproveitando a situação privilegiada do país com grandes rios
de planalto, abastecidos por abundantes chuvas tropicais. Hoje, a matriz de
capacidade instalada de energia elétrica é bem mais diversificada, mas tem,
ainda, a fonte hidráulica participando com mais de 65% (Figura 1).
Para
escoar toda essa produção de energia elétrica das centrais geradoras aos
centros de consumo, uma grande malha de transmissão foi sendo construída bem
como inúmeras subestações. O sistema elétrico brasileiro hoje tem 126.652 km de
linhas de transmissão instaladas (Figura 2).
Praticamente
o Brasil todo é interligado, permitindo que as regiões troquem eletricidade
entre si. Os resultados na estruturação da matriz elétrica atual foram bem
positivos e mostram que o setor foi uma escola para a formação de um conjunto
de profissionais especializados como: engenheiros, físicos, matemáticos,
economistas, biólogos, técnicos e projetistas que atuaram tanto no setor
estatal como no setor privado com competência reconhecida no Brasil e no
exterior. A gestão institucional e o planejamento de médio e longo prazo
trouxeram uma racionalização da operação e expansão da oferta de energia
elétrica. Afinal, o Brasil com dimensões continentais é singular na geração
hidroelétrica com sua malha de interligação do sistema elétrico em seu vasto
território.
Mas
para chegar até aqui o setor elétrico passou por várias crises. E parece que
essa angústia de viver em crises não terminou.
Ao
revisar os momentos de crise que o setor elétrico vivenciou no passado e o
ambiente político-econômico do País, verifica-se que há semelhanças com a
atualidade. E muitas ações foram equivocadas ou não trouxeram resultados
positivos a longo prazo. Vale, ainda, refletir que muitas dessas ações ou
ideias podem ainda estar sendo repetidas ou até sugeridas hoje em dia. Ou seja,
o ensinamento de que olhar o passado pode evitar a repetição dos mesmos erros
nem sempre é verdade.
Há
um fato comum nas crises: a grande teimosia de profissionais, gestores do
setor, em não assumirem que o modelo setorial está em crise. Teimosamente ou
cautelosamente custam a admitir que o timing para mudanças estruturais esteja
passando e quanto mais são postergadas as decisões, mais a sociedade é afetada.
Certamente a decisão para mudar ou voltar atrás em medidas equivocadas cabe à
hierarquia superior que está na esfera da política de governo. Há um
reconhecimento entre atores privados e estatais do papel do Estado, atuando na
coordenação e nas estratégias para atrair capital privado sempre na busca da
segurança energética do País. Mas o mais grave é quando os técnicos se calam
protegendo-se na premissa de que a decisão por mudanças está em um patamar
superior e não querem receber recusas ou até advertências em suas propostas.
A
estruturação do setor elétrico partiu de um arcabouço regulatório formalizado
no Código de Águas em 1934, dando à União a competência de legislar, outorgar
concessões de serviços públicos, antes regidos por contratos assinados com
estados e municípios. Uma nova política do setor elétrico estipulou que a
tarifa fosse fixada na forma de “serviço pelo custo”. O objetivo, segundo a
legislação, era garantir ao agente prestador do serviço a cobertura dos custos
de operação, cotas de depreciação e reversão à remuneração do capital
investido.
As
condições de restrições econômicas, que o Brasil sofreu em face da crise
internacional decorrente da II guerra mundial, levaram o país a ter
dificuldades em importar peças e equipamentos e outras restrições. No caso do
setor elétrico, a estratégia foi o Estado passar a ser também um produtor de
energia. Um exemplo foi a criação da companhia CHESF – Companhia Hidroelétrica
do Vale do São Francisco – em 1945. Nesse ambiente foi estabelecido um modelo
centralizado de planejamento. A história do setor lista uma série de planos,
comissões mistas até a formação de uma holding e subsidiárias para planejar e
administrar a construção de usinas geradoras e de linhas de transmissão, bem
como a sua operação. Surge a Eletrobrás.
O
modelo foi sendo aperfeiçoado com bons resultados até a década de 70, quando há
um comprometimento de sustentabilidade do setor elétrico por conta, sobretudo,
de políticas econômicas. O setor elétrico foi usado como captador de recursos
externos, bem como para controle da inflação com forte contenção de suas
tarifas. O uso do setor para atender a diretrizes econômicas do governo afetou
a remuneração garantida das empresas e um significativo passivo setorial foi se
formando. O país passou a viver um período de recessão com uma desvalorização
cambial com grandes reflexos no setor elétrico. Verifica-se que medidas
pontuais de governo foram sendo criadas na busca de soluções. O resultado foi um grande
desequilíbrio econômico-financeiro do setor elétrico brasileiro. Nesse ambiente
os investimentos foram insuficientes para atender ao consumo de uma sociedade
ávida de eletricidade.
Face
à falência do modelo, já na década de 90, são estabelecidas regras buscando
resolver a situação. A Lei 8631/93, por exemplo, denominada no jargão do setor
como “Lei de Encontro de Contas” ou “Lei Eliseu Resende” veio acalmar o inferno
em que vivia o setor, trazendo alterações significativas. Um dos pilares dessa
Lei foi expurgar o passivo setorial na busca de atrair o capital privado. Essa
Lei, complementada por decretos e atos regulatórios, trouxe resultados
positivos para o setor. Um deles, que era a preocupação do governo, foi a
valorização do braço estratégico do setor, a Eletrobrás. De fato, em menos de 2
anos, o valor de mercado da Eletrobrás subiu praticamente 10 vezes e a ação da
holding chegou a ser uma das mais negociadas na Bolsa. No entanto, cabe
registrar que o montante total da dívida de cerca de US$ 28 bilhões, nesse
“encontro de contas”, foi para o Tesouro Nacional.
Veio
o programa de estabilização econômica em 1994, o Plano Real, e com ele o
Programa Nacional de Desestatização com a separação das atividades de geração,
transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica. Uma série de
Leis e portarias foi estabelecida para a criação de um modelo privado/estatal
no setor. Há avaliações de especialistas que, nesse conjunto de mudanças,
muitas ações foram açodadas sem um planejamento estratégico para o País. E um
dos fatos mais emblemáticos que levaram muitos a desconfiarem do êxito das
mudanças foram os apagões constantes nos estados do RJ e ES logo após a
privatização das distribuidoras de eletricidade desses estados. Na ânsia de
privatizar rapidamente algumas Concessionárias de eletricidade aplicou-se um
modelo de privatização, mesmo sem uma entidade reguladora.
Com
a implantação do modelo, um novo inferno de crise no setor parecia estar longe.
Ledo engano. O diabo voltou com toda a força, trazendo a crise de geração de
energia após medidas equivocadas de governo. O resultado foi o racionamento de
2001.
A
saída foi chamar uma nova turma para apagar o fogo. Surge assim, em 2004, um
novo modelo para o Setor Elétrico Brasileiro (SEB), sustentado pelas Leis nº
10.847 e 10.848 de 15 de março de 2004, e pelo Decreto nº 5.163 de 30 de julho
de 2004. O profissional afeto ao setor conhece muito bem o que foi ajustado e
introduzido quando da implantação dessa legislação. Não cabe aqui detalhar.
Para muitos parecia que o novo modelo chegaria para resolver os riscos da falta
de abastecimento de energia elétrica que causou tantos danos à sociedade. Uma
esperança de preços módicos, que permitiriam à indústria e ao comércio
trabalharem com baixos custos de eletricidade e proporcionariam à população
contas de luz acessíveis aos seus bolsos, se extinguiu.
Como
ocorreu em várias situações anteriores, quando o modelo começa a dar sinais de
esgotamento, os gestores governamentais insistem em fecharem seus ouvidos a
especialistas ou mesmo a seus técnicos que alertam para o risco de
abastecimento. Demoram a tomar suas decisões. Assim, hoje, o setor elétrico
vive driblando, com ações pontuais, uma crise de abastecimento. Uma verdadeira
colcha de retalhos vem sendo criada sem um eixo central que estruture uma
eficiente reforma do setor.
Há
situações de dificuldades em todos os segmentos da cadeia, desde os geradores e
distribuidores até os consumidores. O governo acusa S. Pedro, pois não chegam
as esperadas chuvas para encherem os reservatórios, causando os riscos
hidrológicos. Há especialistas afirmando que o grande culpado é o modelo do setor,
incompatível com a realidade.
De
concreto são os sucessivos aumentos dos preços da energia para os consumidores
industriais, comerciais e residenciais. E não há perspectivas de reversão desse
processo. As térmicas continuam em 2015 em pleno despacho trazendo custos
elevados. Cabe lembrar que, anteriormente, os recursos do tesouro e empréstimos
bancários foram acionados para cobrirem custos das Distribuidoras provenientes
de compras de energia no mercado de curto prazo que chegaram a preços
estratosféricos. Essa conta total deve ultrapassar R$ 37 bilhões e será paga em
suaves prestações por quase 5 anos pelos consumidores. Agora, em um quadro de
realismo tarifário, os consumidores arcarão com esses custos repassados pelas
Distribuidoras nas revisões tarifárias.
De
um lado os aumentos buscam recuperar as condições de investimentos das
Distribuidoras. Por outro lado os consumidores vão ter seus custos de
eletricidade aumentados. Mas será que essas medidas trarão fôlego suficiente
para essas Concessionárias? A crise e o aumento de tarifas diminuem a demanda,
o que reflete no faturamento dessas empresas. Há ainda os riscos hidrológicos
das usinas cotizadas. Uma preocupação para o setor de distribuição.
Mas
se não houvesse essa equação financeira, o setor quebraria? Certamente. Mas não
foi um forte sinal de crise? E por que isso não é admitido? Teimosia para
mudanças, incapacidade de governança no setor?
Do
lado da geração há um inferno também. As geradoras nesse contexto foram
obrigadas a cumprirem seus contratos comprando energia no mercado spot. A
consequência foi a formação de um passivo financeiro que vai desaguar nas
contas dos consumidores: o chamado GSF – Generating Scaling Factor que é a
diferença entre a energia contratada pelas hidrelétricas e a que foi gerada (a
menor). Os órgãos de governo voltados ao setor elétrico demoraram a admitir que
fosse necessário encarar esse imbróglio. E só recentemente editou uma nova
Medida Provisória, MP 688, criando procedimentos para reduzir o risco dos
geradores. Cabe explicitar que a MP 688 não satisfaz a todos os atores
envolvidos nessa situação, o que leva a questionamentos jurídicos.
Para
complicar a situação, vem a revolta das geradoras estatais federais. Com
grandes prejuízos, enfraquecida financeiramente, a Eletrobras culpa a gestão do
sistema. Certamente alguém já pensou em responder à holding com a expressão da
língua portuguesa: “Agora Inês é morta”, o que significa “não adianta mais
nada”.
A
crise do setor elétrico é profunda, pois está no âmago do modelo. Em consequência
faltam: recursos financeiros, governança, maior integração do planejamento com
a operação, confiança para manter a segurança energética, sobretudo quanto aos
impasses ambientais e sociais na construção de usinas hidroelétricas na região
norte e na conclusão da usina nuclear de Angra III.
As
soluções para equacionar problemas à medida que vão surgindo podem se esgotar,
chegando-se a um impasse. Hoje a CCEE contabiliza mais de 10 liminares contra o
déficit hídrico e o mercado teme inadimplência. A situação é preocupante.
Empresas com sobras de energia optam por vendê-las com valor mais baixo, pois
não querem aguardar para liquidar os contratos na CCEE, face a um possível
ambiente de inadimplência. Esse é um sinal mais do que vermelho para quem está
sentado nas cadeiras de decisão do setor.
Uma
das consequências dessa situação, que é muito ruim, é a falta de credibilidade
dos investidores para o setor, dos agentes e até mesmo dos técnicos que para
preservarem seus empregos se calam.
Importante,
assim, é montar uma agenda para o amanhã do setor elétrico. Uma hipótese seria
constituir um grande Comitê, Grupo de trabalho, Comissão ou similar para
discutir uma nova modelagem para o setor elétrico. Um Grupo certamente
capitaneado pelo Ministério das Minas e Energia com a presença de associações
de indústrias, do comércio, de associações de geradores, distribuidores e
produtores independentes, da Eletrobrás, como um agente de mercado estatal, e
da Academia. O Grupo precisa ter respaldo e as soluções podem vir desses
agentes que atuam no Brasil. Não se pode cair na tentação de buscar uma
consultoria internacional, como outrora, com propostas trazidas de experiências
de um ambiente diferente do País. Enfim, um novo acordo tem que ser alcançado.
Mas,
ao contrário, se continuarmos aguardando as chuvas chegarem, a crise econômica
e a crise política arrefecerem etc. para estruturar uma reforma no setor
poderão surgir ideias como uma nova ilusão teimosamente persistente.
Nesse
contexto o Grupo de Economia da Energia vem promovendo debates chamados
“Caminhos para a Retomada” abertos à participação da sociedade. São convidados
especialistas para contribuírem com uma discussão de uma agenda positiva para a
crise da indústria de energia por que passa o País. Em 02/10/15 na Casa da
Ciência da UFRJ no Rio de Janeiro foi realizado um debate específico sobre a
crise do Setor Elétrico Brasileiro. O GEE estará disponibilizando em seu Canal
no YouTube, os vídeos das apresentações do evento.
Ao
final do debate pediu-se a cada um dos debatedores presentes que apontasse em
uma palavra o principal eixo de direcionamento para uma saída para a crise do
Setor. As respostas foram: governança, sustentabilidade e eficiência econômica.
(ambienteenergia)
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