Um decreto federal deu um passo importante
para concretizar a nova Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), que
busca revigorar a indústria de bioenergia do país, além de reduzir as emissões
de gases estufa conforme compromisso assumido pelo Brasil na Conferência de
Paris, em 2015. Gestada nos últimos dois anos por técnicos do Ministério de
Minas e Energia (MME), a RenovaBio foi aprovada pelo Congresso no final do ano
passado. Seu decreto de regulamentação, assinado pelo presidente Michel Temer
em uma cerimônia em Ribeirão Preto (SP) que marcou a abertura da safra de
cana-de-açúcar, definiu um cronograma para que a política passe a vigorar em um
prazo de dois anos. O Conselho Nacional de Política Energética, que assessora o
governo, irá determinar até junho as metas compulsórias para a redução de
emissões de carbono no uso de combustíveis no país, que serão válidas para o
período de 2018 a 2028. Em seguida, a Agência Nacional do Petróleo, Gás e
Biocombustíveis irá desdobrar essas grandes metas em objetivos individuais a
serem cumpridos por cada uma das distribuidoras de combustível brasileiras a
partir do dia 24 de dezembro de 2019.
A principal inovação
da política é a criação de um mecanismo que gera um ativo financeiro para os
produtores de biocombustíveis, como etanol, biodiesel, biogás ou bioquerosene,
proporcional ao volume produzido e que se baseia em critérios de eficiência.
Quem fabrica biocombustíveis terá direito a Créditos de Descarbonização
(CBIOs), títulos negociados em bolsas que constituirão uma nova fonte de renda
para o setor. Já as distribuidoras serão obrigadas a comprar esses papéis em
quantidade correspondente a sua participação no mercado de combustíveis
fósseis. “O objetivo desse mecanismo é descarbonizar gradualmente a matriz
energética brasileira”, diz o economista Miguel Ivan Lacerda de Oliveira,
diretor de biocombustíveis da Secretaria de Petróleo e Gás do MME, um dos
artífices da nova política.
Como resultado dessa
política, o governo prevê ampliar a produção de etanol dos atuais 30 bilhões de
litros para cerca de 50 bilhões de litros em 2030 e elevar a de biodiesel de 4
bilhões para 13 bilhões de litros no mesmo período. Ao mesmo tempo, calcula uma
economia de 300 bilhões de litros de gasolina e diesel importados nos próximos
anos. Projeta-se também um aumento de 10 milhões de hectares na área plantada
dedicada à bioenergia. Os idealizadores do programa ressaltam que o Brasil tem
hoje 198 milhões de hectares em pastagens, boa parte delas de baixa
produtividade, que poderiam ser empregadas na produção dessas culturas.
O aproveitamento do
bagaço de cana para geração de eletricidade vai gerar créditos extras para as
usinas de etanol
O mecanismo proposto
também busca estimular um aumento de produtividade das áreas já plantadas. O
fabricante de biocombustíveis, sempre que fizer uma venda, terá direito a
emitir CBIOs, mas a quantidade de créditos a que cada um terá direito dependerá
de uma análise de seus processos de produção – quanto menor o balanço de
emissões de gases estufa da empresa, mais créditos ela poderá receber. Essa
avaliação vai reverter em uma nota de eficiência energético-ambiental atribuída
a cada produtor. Um software, o Renovalc, está sendo desenvolvido para fazer
cálculos precisos.
Espera-se que essa
lógica estimule as usinas a utilizar as melhores práticas de plantio e de
geração de bioenergia, além de adotar novas tecnologias. Usinas que, além de
produzir etanol, também queimam resíduos da cana para gerar eletricidade ou
produzem biogás para substituir o diesel usado nas máquinas poderão obter mais
créditos do que as que não aproveitam a palha, o bagaço ou a matéria orgânica
da vinhaça. “Sabemos que o etanol é sustentável, que emite em média 80% menos
carbono do que combustíveis fósseis, mas alguns produtores têm indicadores
econômicos e ambientais melhores do que outros e é justo que sejam
reconhecidos”, explica o agrônomo Heitor Cantarella, pesquisador do Instituto
Agronômico de Campinas (IAC) e membro da coordenação do Programa FAPESP de
Pesquisa em Bioenergia (Bioen). “Com a RenovaBio, será possível mudar a forma
como produzimos bio-energia e mostrar que o segundo maior produtor de etanol e
de biodiesel do mundo está engajado em fabricar combustíveis ainda mais
limpos.”
Segundo Cantarella, a
nova política deve dar impulso a uma vertente de pesquisa em bio-energia que
busca alternativas tecnológicas para reduzir emissões. Em um artigo de opinião
que publicou em fevereiro no jornal britânico Financial Times, ele chamou a atenção para o peso do
uso de certos fertilizantes no balanço de emissões de carbono em plantações de
cana e para as alternativas capazes de reduzir esse impacto, como o uso de
substâncias que inibem a liberação de óxido nitroso, um gás de efeito estufa
liberado por adubos nitrogenados. “Qualquer tipo de redução de emissão será
bastante valorizado a partir de agora.” Alguns projetos apoiados pelo programa
Bioen há tempos investigam a natureza das emissões de carbono. “O uso rotineiro
de palha e vinhaça como fertilizantes nos canaviais tende a aumentar as
emissões, mas há grupos de pesquisadores procurando formas de atenuar isso”,
afirma. “De todo modo, as emissões no Brasil causadas por uso de fertilizantes
são inferiores aos índices médios considerados pelo Painel Intergovernamental
de Mudanças Climáticas, o IPCC.”
Também se espera que a
nova política incentive a superação de obstáculos tecnológicos e a busca de
viabilidade econômica para implantar métodos mais sustentáveis de produção de
bioenergia, notadamente o etanol de segunda geração, obtido a partir de
celulose e de resíduos orgânicos. “A expectativa é de que a RenovaBio se
transforme também em um driver de
desenvolvimento tecnológico”, diz o engenheiro-agrônomo Gonçalo Amarante
Guimarães Pereira, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp), um dos fundadores da Granbio, empresa que inaugurou a
primeira usina de etanol de segunda geração no Brasil, instalada em 2014 em São
Miguel dos Campos, em Alagoas. Amarante, que deixou a empresa em 2016, diz que
os problemas tecnológicos da linha de produção foram resolvidos e que a empresa
agora trabalha para equacionar questões financeiras para implantar novas
soluções e ampliar a operação. “A alta do preço do petróleo atrapalhou e afugentou
os investidores em bioenergia, mas é esperado que agora, com a RenovaBio, surja
uma nova onda de financiamento.” O MME projeta um crescimento do interesse
privado na indústria de biocombustíveis e prevê investimentos de R$ 90 bilhões
até 2030 apenas na produção de bioetanol.
Efeitos esperados da
nova política incluem investimento de R$ 50 bilhões até 2030 na produção de
etanol de cana-de-açúcar
Luciano Rodrigues,
responsável pela área de economia e análise setorial da União da Indústria de
Cana-de-Açúcar (Unica), vislumbra dois impactos principais da RenovaBio. “Ela
vai dar mais previsibilidade a todos os agentes do mercado, dizendo a cada um
deles qual será o papel dos biocombustíveis no futuro”, diz. O segundo impacto
está relacionado aos CBIOs. “Os biocombustíveis têm o que chamamos de
externalidades positivas: quando alguém usa um combustível renovável, isso gera
um benefício para toda a sociedade, com uma emissão menor de gases estufa. O
mecanismo criado reconhece essas externalidades, recompensa a produção de
biocombustíveis e tende a ampliar a sua oferta. A produção de biocombustíveis
vai crescer com a busca de eficiência ambiental e econômica.”
A nova estratégia
surge em um momento em que a indústria brasileira de biocombustíveis tenta
superar uma fase de crise e baixo investimento. Segundo um levantamento da
consultoria RPA, de Ribeirão Preto, especializada em negócios da cana, 76 das
444 usinas do país estavam paradas no segundo semestre do ano passado, parte
delas em situação de insolvência. “A RenovaBio criou uma demanda nova para os
produtores de biocombustíveis. Não é por acaso que está sendo comemorada pela
indústria canavieira”, diz Daniela Stump, especialista em direito ambiental da
Machado Meyer Advogados. “Ao mesmo tempo, gerou uma grande novidade na política
ambiental brasileira, que vinha perdendo efetividade há alguns anos. É a
primeira vez que se criam metas compulsórias para redução de emissões. Eu nunca
tinha visto um compromisso tão firme”, ressalta Daniela, que faz, contudo, um
alerta: “É preciso agora criar metas para outros setores da economia. Não é
justo eleger apenas um setor para o papel de vilão. Todos devem participar do
esforço de proteção ao clima, de acordo com as suas emissões de gases de efeito
estufa e capacidade de redução”.
Os idealizadores da
RenovaBio adaptaram políticas adotadas nos Estados Unidos e na União Europeia.
“Há estratégias testadas há mais de 10 anos e uma boa literatura sobre o
assunto mostrando o que deu certo e o que deu errado. Aproveitamos essa
experiência”, diz Miguel Ivan de Oliveira, do MME. A principal inspiração veio
do Low Carbon Fuel Standard (LCFS), política pública em vigor no estado da
Califórnia. O LCFS define metas de redução de emissões e rotas para alcançá-las
utilizando diferentes tecnologias e combustíveis – e também estabelece
recompensas específicas para cada rota. Já a RenovaBio não delimita trilhas
tecnológicas e os créditos de descarbonização terão um valor único, a ser
definido pelo mercado. “Na RenovaBio, não são eleitos a priori quais serão
os ‘campeões’. Cada biocombustível competirá para atingir a meta de
descarbonização. A produção de biocombustível que for mais eficiente do ponto
de vista energético e ambiental é a que vai poder emitir mais créditos e,
portanto, será mais recompensada”, escreveu o economista Plínio Nastari,
presidente da consultoria DataAgro, em um artigo publicado no jornal Folha de Pernambuco.
Embora a lei da
RenovaBio tenha sido regulamentada com rapidez, ainda há variáveis sem
definição, a exemplo das metas individuais impostas às distribuidoras e a forma
de calcular a eficiência dos produtores. Como a cotação dos CBIOs vai oscilar
de acordo com a oferta e a procura, é difícil antever como será o funcionamento
do mercado antes de conhecer as metas. “Mas é possível imaginar que o valor dos
créditos cairá se houver um aumento do preço do petróleo, porque isso já seria
um desestímulo ao consumo de combustíveis fósseis”, diz Luciano Rodrigues, da
Unica. Na avaliação de Gonçalo Amarante, os créditos devem ter boa liquidez.
“Se investidores hoje compram moedas virtuais cujo lastro é obscuro, certamente
haverá interesse em créditos de carbono emitidos com base em uma produção
sustentável.”
A permissão para que
qualquer pessoa participe da compra e venda de créditos é alvo de controvérsia.
A medida, que busca dar liquidez ao mercado, é vista com desconfiança pelas
distribuidoras, que temem especulação com os títulos. Caso o custo das CBIOs fique
muito pesado para as empresas, existe o risco de que elas optem por pagar a
multa pelo descumprimento da meta, que durante a tramitação do projeto da
RenovaBio no Congresso foi reduzida de R$ 500 milhões para R$ 50 milhões no
máximo por distribuidora. É certo que as empresas terão alguma flexibilidade.
Uma pequena parte da meta individual, de no máximo 15% do total, poderá ter seu
cumprimento adiado para o próximo ano, mas não será possível utilizar o recurso
logo em seguida. As distribuidoras ficarão isentas da obrigação de comprovar a
descarbonização se firmarem contratos de compra de créditos por períodos longos
– o objetivo é ajudar a estruturar o mercado de CBIOs. “Temos o alicerce de uma
nova política, mas falta organizar adequadamente a sua aplicação. Será preciso
criar mecanismos para evitar que se burle o sistema”, diz Rodrigues. (flipboard)
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