Usinas de biocombustíveis produzirão sem desmatamento
e receberão créditos de descarbonização.
Para receberem créditos de descarbonização, usinas de
biocombustíveis deverão produzir sem desmatamento.
Quando o assunto é a redução de gases do efeito estufa (GEE) por
biocombustíveis, o risco de aumento do desmatamento está entre as principais
preocupações em nível nacional e internacional.
Em meados dos anos 2000, quando as primeiras políticas
internacionais para produção de biocombustíveis começaram a ser elaboradas,
houve uma grande mobilização na comunidade científica para investigar que
impactos elas teriam na mudança de uso da terra (MUT) – termo técnico para
designar todas as alterações no emprego da terra, incluindo desmatamento para
uso agrícola – ao redor do globo. Diversas publicações científicas alertaram
para o risco de aumento de emissões e, a partir de então, a consideração da MUT
se tornou indispensável em políticas energéticas. Com isso, a pressão mundial
para evitar que o desmatamento aconteça em decorrência da produção de biocombustíveis
se tornou imensa.
Com a assinatura, em 14 de março de 2018, do decreto que
regulamentou a Lei nº 13.576/17, da Política Nacional de Biocombustíveis
(RenovaBio), os próximos passos para a implementação do RenovaBio passam pela
regulação do processo de certificação. Ela ocorrerá por meio de resoluções da
Agência Nacional de Petróleo (ANP), que definirão, por exemplo, o método de
cálculo da nota de eficiência energético-ambiental – que, por sua vez,
influenciará na quantidade de créditos de descarbonização (CBios) que cada
produtor de biocombustíveis poderá emitir.
A nota de eficiência energético-ambiental será calculada por meio
da RenovaCalc, ferramenta desenvolvida por pesquisadores especialistas em
Avaliação de Ciclo de Vida. Entre as instituições envolvidas estão: Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Laboratório Nacional de Ciência
e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e
Agroicone.
Mas como o risco de aumento do desmatamento será tratado pelo
RenovaBio? Os pesquisadores levantaram uma série de alternativas para
consideração da mudança de uso da terra, tendo como base a literatura
científica, as políticas vigentes e diálogos com os atores do setor produtivo e
de certificação. Após alguns meses de trabalho, a proposta foi submetida à ANP
no último mês de março.
Basicamente, os produtores de biocombustíveis terão de cumprir
três critérios de elegibilidade para ingressar no programa e ter direito aos
CBios:
1. Toda a produção certificada
deve ser oriunda de área sem desmatamento após a data de promulgação da lei do
RenovaBio (26 de dezembro de 2017)
2. Toda a área deve estar em
conformidade com o Código Florestal, por meio da regularização do Cadastro
Ambiental Rural (CAR)
3. As áreas de produção de cana
e palma devem estar em conformidade com os zoneamentos agroecológicos da
cana-de-açúcar e da palma-de-óleo, definidos pelos Decretos Federais 6.961 e
7.172, respectivamente. Essa é a configuração que atualmente está em análise
pela ANP e que, em breve, será colocada em consulta pública.
Essa proposta apresenta uma série de vantagens quando comparadas
com alternativas disponíveis. Nas políticas de biocombustíveis
norte-americanas, a principal forma de abordar essa questão é por meio da
adoção de fatores de mudança indireta de uso da terra (iLUC factors). Já na
Europa são utilizados mecanismos de gestão de risco, como a definição de áreas
vetadas para produção de biocombustíveis e a contabilização direta do uso da
terra (dLUC).
As mudanças são consideradas diretas (dLUC) quando ocorrem dentro
do sistema do produto avaliado e indiretas (iLUC), quando ocorrem como
consequências da dLUC, mas fora do sistema de produto avaliado. Por exemplo, há
dLUC quando a produção de cana ou soja se expande diretamente sobre pastagens e
há iLUC quando essa pastagem se desloca para outras áreas.
Produção de cana-de-açúcar na região de Ribeirão Preto.
Já o Brasil aparece como um destaque no contexto mundial quando se
trata de políticas para ordenamento do uso da terra. Dono de uma vasta área de
vegetação nativa – mais de 60% do território – e de uma agricultura pujante em
expansão, o país definiu marcos legais únicos no mundo para conciliar produção
agrícola e preservação ambiental, como por exemplo, zoneamentos agroecológicos,
políticas de monitoramento e prevenção de desmatamento e o código florestal.
No caso do RenovaBio, o desafio consiste em definir uma estratégia
que tenha reconhecido potencial de mitigação de emissões de GEE associadas a
MUT, baixo nível de complexidade para implementação na primeira fase do
programa, baixos custos de certificação para as unidades produtoras, forte
embasamento técnico-científico, sinergia com políticas e programas de uso da
terra em vigor no Brasil e internacionais, e capacidade de cumprimento e
assimilação pelo setor produtivo.
As principais vantagens da proposta de tratamento de MUT no
RenovaBio são apresentadas abaixo:
1. Garante um controle rigoroso
da conversão direta de áreas de vegetação nativa, que consiste no tipo de
mudança de uso da terra com maior potencial de emissões de GEE e de maior
preocupação para a comunidade científica e sociedade em geral. Outros tipos
comuns de MUT têm emissões de uma ordem de grandeza menores que a MUT de
vegetação nativa para uso agrícola e são muito mais dinâmicos no tempo – por
exemplo, a MUT entre pastagem, lavouras anuais e cana podem se alternar
rapidamente ao longo dos anos. Dois outros tipos de MUT poderiam ter emissões
mais altas: a conversão de uso com lavouras permanentes ou com silvicultura
para culturas agrícolas anuais. No entanto, eles são relativamente raros no
Brasil, considerando os outros casos.
2. Assegura o controle da
expansão de biocombustíveis para áreas sensíveis ao seu cultivo, conforme
definido nos zoneamentos agroecológicos e na lei de proteção da vegetação
nativa. Esses instrumentos não permitem, por exemplo, a expansão de cana e soja
sobre floresta Amazônica ou a sobreposição das áreas de produção com áreas de
preservação, como Áreas de Preservação Permanente (APP). Tais casos estariam
associados a um grande potencial de emissão de GEE e poderiam ser objeto de
grande preocupação pela sociedade brasileira e internacional.
3. Está alinhada com
instrumentos de ordenamento territorial já estabelecidos e assimilados pelos
setores produtivos. Com isso, seu uso como critérios de elegibilidade beneficia
produtores atentos a questões ambientais, os quais provavelmente não terão
dificuldades de ingresso no RenovaBio, indicando uma alta capacidade de
assimilação pelo setor produtivo.
4. Tem baixo custo de
comprovação e certificação quando comparada a alternativas. Todos os critérios
de elegibilidade podem ser verificados de forma remota por imagens de satélite
ou outras fontes de informações disponíveis, como, por exemplo, o Sistema
Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar), evitando, assim, alternativas que
necessitam de verificações em campo, que podem ter custos muito altos.
5. Evita a adoção de modelos e
métodos de maior complexidade e grandes incertezas metodológicas, como a
estimativa de iLUC; a discriminação entre níveis de degradação de pastagens,
tipos de vegetação nativa ou tipos de manejo de solo; e a verificação de
estoques de carbono no solo. Tais incertezas poderiam desencadear grande
insegurança jurídica, além de maiores custos e tempo para certificação e para a
regulamentação do programa em si.
6. Resguarda o programa de
críticas sobre a promoção da competição entre alimentos e combustíveis. Os usos
da terra com cana-de-açúcar ou pastagens tipicamente apresentam estoques de
carbono bem maiores que lavouras anuais alimentícias, como arroz e feijão. A
adoção de modelos de dLUC propiciaria uma menor intensidade de carbono para a
expansão de biocombustíveis sobre lavouras anuais, em detrimento da expansão
sobre pastagens e, portanto, estaria premiando a competição com lavouras
alimentícias, resultado indesejado em uma política pública dessa natureza.
7. Tem sinergia com vários
padrões internacionais e literatura científica. A diretiva europeia e vários
protocolos internacionais (como por exemplo, Bonsucro, ISCC e RSB) se valem de
mecanismos de gestão de risco pelo estabelecimento de áreas sensíveis vedadas à
expansão de produção de biomassa para biocombustíveis. Por outro lado, a adoção
de iLUC factors tem sido alvo de grandes críticas e controvérsias na comunidade
científica. Esse histórico dá à proposta apresentada robustez científica e
política aos olhos internacionais.
8. É transparente e de simples
comunicação para o setor produtivo e sociedade. A contabilização de MUT direta
ou indireta envolve modelos complexos, de difícil compreensão por boa parte da
sociedade, enquanto a adoção de critérios simples e de amplo conhecimento pode
trazer transparência e facilitar a comunicação.
Cogeração de energia a partir do bagaço da cana completou 30 anos
em 2017.
Em resumo, a proposta é suficientemente robusta para garantir
segurança e baixo risco de emissões de GEE devido à MUT e, ao mesmo tempo,
simples o suficiente para ser implementada. Se aprovada, ela tornará o
Renovabio um importante vetor para promoção do uso sustentável da terra para
produção de biocombustíveis e assegurará a manutenção da posição de destaque do
Brasil na promoção da agricultura e matriz energética sustentáveis. (ecodebate)
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