‘O interesse em construir hidrelétricas em vez de
investir em alternativas é a grande quantidade de dinheiro que pode ser ganho
nas obras’.
Hidrelétrica
de Sinop.
O
interesse do Estado brasileiro em
investir na construção de hidrelétricas ao invés de incentivar fontes
energéticas alternativas “se deve, principalmente, à grande quantidade de
dinheiro que pode ser ganho nas obras”, diz Philip Fearnside à IHU On-Line. Os recursos
envolvidos nesses empreendimentos mencionam, “cria um lobby que não existe para
outras energias alternativas, especialmente aquelas que visam usar menos
energia”.
A Usina
Hidrelétrica de Sinop, que está sendo construída em Mato Grosso pela empresa
francesa EDF, faz parte
de uma cadeia de barragens que está sendo implementada no rio Teles Pires, com “o
objetivo de vender energia elétrica” e “o transporte de soja de Mato Grosso até portos
com acesso ao rio Amazonas”,
informa o biólogo norte-americano que há anos estuda os impactos das
hidrelétricas aos ecossistemas em que são instaladas. Na avaliação dele,
a Sinop tem
similaridades com a hidrelétrica de Belo Monte, construída no Pará. Entre elas, ele destaca
“a ligação com outras obras de grandes impactos”.
Na
entrevista a seguir, concedida por e-mail, Fearnside também comenta as ações do governo Bolsonaro em
relação ao meio ambiente. “O discurso do presidente e do seu ministro do Meio Ambiente tem sido
notoriamente hostil a todas as políticas, órgãos e pessoas que defendem o meio
ambiente. Este discurso, junto com ações concretas para desmantelar os órgãos
ambientais, explica o grande surto de desmatamento e fogo
constatado em 2019”. E assegura: “O maior desafio no momento é manter o que
resta das políticas e agências ambientais”.
Philip
M. Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia
Evolucionária da Universidade de Michigan, EUA, e pesquisador titular do
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpa, em Manaus, AM, onde vive
desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia dos Serviços Ambientais da Amazônia.
Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças
Climáticas – IPCC, em 2007.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor poderia recuperar um pouco do histórico do
projeto e da construção da Usina Hidrelétrica Sinop, no Rio Teles Pires, no
estado de Mato Grosso?
Philip Fearnside – A UHE Sinop foi planejada como um
elemento de uma cadeia
de barragens ao longo do rio Teles Pires com o objetivo de
vender energia elétrica,
e também para obter uma das “eclusas prioritárias” no plano de 2010
para hidrovias, visando o transporte de soja de Mato Grosso até
portos com acesso ao rio
Amazonas. O projeto da barragem foi facilitado pela lei de
2011, permitindo licenciamento estadual, ao invés de federal. O licenciamento
estadual quase sempre é menos exigente que o federal. A construção da barragem
foi feita pela empresa francesa EDF, principal dono da Sinop Energia.
IHU On-Line – Quais os maiores impactos ambientais que a região
vem enfrentando desde o início das obras da Usina Hidrelétrica Sinop? Que
transformações a região, desde a população local a ecossistemas nativos, vem
sofrendo?
Philip Fearnside – O barramento do rio tem impactos ambientais
como o de outras barragens. Há perda da floresta na área do reservatório. O ecossistema
fluvial também é perdido, sendo transformado em um lago artificial com outras
condições químicas da água e outras espécies de peixes. Entre outros impactos,
há a emissão de gases de efeito
estufa. Um trabalho publicado em 2016 na revista Environmental Research Letters,
por Farias e
colaboradores, calculou que a Sinop seria a pior em termos de impacto no aquecimento global entre
todas as 18 barragens planejadas que analisaram. Na verdade, o impacto é maior
ainda, pois esse cálculo não considerou as emissões da água que passa pelas
turbinas e vertedouros.
Em
termos de transformações sociais, se destaca o deslocamento da população na
área inundada pelo reservatório, com famílias sendo colocadas em projetos de assentamento. O
meio de sustento a partir da pesca e outros recursos do rio foi perdido. Estes
custos sociais caem sobre uma população cuja voz nas decisões sobre a obra,
evidentemente, tem muito menos peso do que as vozes dos grupos que teriam
benefícios financeiros com a obra.
O
meio de sustento a partir da pesca e outros recursos do rio foi perdido –
Philip Fearnside
IHU On-Line – A Usina Hidrelétrica de Belo Monte, na Bacia do Rio
Xingu, é conhecida pelos inúmeros conflitos e degradações sociais e ambientais
que ela acabou gerando na região de Altamira, no Pará. Que analogias podemos
fazer entre o processo de Belo Monte e de Sinop?
Philip Fearnside – Belo Monte tem alguns paralelos com
a usina de Sinop.
Um é a ligação com outras obras com grandes impactos. No caso de Belo Monte são os planos
para barragens rio acima, começando com a Babaquara/Altamira. Esses planos são pouco
discutidos publicamente e são desconhecidos por grande parte da população. No
caso de Sinop é
a hidrovia e
as outras hidrelétricas que teriam que ser construídas para completar a conexão
para navegação até o rio
Amazonas. Mais impactante seria a barragem de Chacorão que,
assim como Babaquara/Altamira, sumiu dos planos publicamente admitidos pelo
governo e que também inundaria terras indígenas já homologadas. Outro paralelo
com a Belo Monte é a maneira como o projeto conseguiu passar por cima do
processo de licenciamento.
IHU On-Line – A Hidrelétrica de Sinop é um projeto que tem a
parceria dos governos francês e brasileiro. Gostaria que o senhor detalhasse
essa parceria e analisasse os conflitos entre França e Brasil relacionados a
questões ambientais gerados recentemente, tendo em perspectiva o
megaempreendimento de Sinop.
Philip Fearnside – Recentemente eu tive a experiência de
publicar a resenha de um livro sobre uma barragem em Laos, na bacia do rio Mekong, que foi construída
pela mesma empresa francesa que construiu a UHE Sinop. Fiquei
impressionado com os paralelos entre os dois casos, inclusive o uso de
argumentos questionáveis para justificar a não remoção da floresta da maior parte dos
dois reservatórios, apesar de exigências legais para isto nos dois países.
Os
níveis baixíssimos de oxigênio na água saindo do reservatório, medidos pela
Politec (o órgão oficial para tais medidas), indicam uma falta de oxigênio mais
do que suficiente para matar os peixes – Philip Fearnside
IHU On-Line – No início deste ano, foi registrada a morte de
pelo menos 13 toneladas de peixes de todos os portes às margens do rio
Teles Pires, na área do reservatório da UHE Sinop. Quais os desdobramentos
desse caso? Já se sabe a causa da mortandade? Os responsáveis foram autuados?
Philip Fearnside – Um processo contra a empresa e o órgão
estadual que licenciou a obra foi movido pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso,
e está na justiça federal. Os níveis baixíssimos de oxigênio na água saindo do
reservatório, medidos pela Politec (o
órgão oficial para tais medidas), indicam uma falta de oxigênio mais do que
suficiente para matar os peixes. Os sedimentos suspensos que a empresa alega
serem a causa da mortandade seriam apenas um agravante, a causa principal
continua sendo a falta de oxigênio.
IHU On-Line – Como compreender o interesse na construção de
hidrelétricas na região amazônica? Quais as consequências disso para o bioma da
Amazônia?
Philip Fearnside – O interesse em
construir hidrelétricas em vez de investir em alternativas, como a
eficiência energética e a geração por fontes como eólica e solar, se devem
principalmente à grande quantidade de dinheiro que pode ser ganho nas obras.
Este dinheiro cria um lobby que não existe para outras energias alternativas,
especialmente aquelas que visam usar menos energia.
IHU On-Line – A sanha desenvolvimentista, desde os governos
militares, defende o avanço e a ocupação das áreas de floresta. Em que medida
essas lógicas se atualiza nos empreendimentos das hidrelétricas da região
amazônica?
Philip Fearnside – Esta lógica se aplica a algumas barragens
planejadas, como a grande barragem de 2.000 MW para o rio
Trombetas no plano
Barão do Rio Branco, que foi anunciada pela atual administração
presidencial. No entanto, esta lógica não se aplica ao caso de Sinop, que se encontra em uma
região já bastante ocupada.
A
construção de hidrelétricas tem causado grandes impactos sociais e ambientais
no local de cada barragem – Philip Fearnside
IHU On-Line – Como a construção de usinas hidrelétricas tem
transformado a Amazônia brasileira?
Philip Fearnside – A construção de hidrelétricas tem
causado grandes impactos sociais e ambientais no local de cada barragem. No
entanto, não tem trazido as melhorias do modo de vida das populações desses
locais, como é sempre alegado pela indústria. Belo Monte é um exemplo
claro.
IHU On-Line – De que forma é possível conceber alternativas a
hidrelétricas na geração de energia, pensando em empreendimentos que não causem
grandes interferências em ecossistemas, mas que também possam se reverter em
desenvolvimento econômico?
Philip Fearnside – O Brasil é um dos países mais sortudos em
termos de alternativas energéticas, sem depender de barragens, usinas nucleares ou termoelétricas queimando combustível fóssil. A prioridade é usar menos energia elétrica. Por exemplo,
o Brasil usa
5% da sua eletricidade para esquentar água em chuveiros elétricos. Desde
o Plano Nacional de Mudanças
Climáticas de 2008, é um objetivo de o governo acabar com
chuveiros elétricos, mas nada foi feito, sendo apenas construídas mais
barragens. O Brasil deve
parar de exportar eletricidade na forma de commodities eletrointensivas, como o alumínio, que
representam 7% do uso da eletricidade. Depois, há grandes oportunidades para
geração com menos impactos que barragens.
O Brasil tem um enorme
litoral onde há ventos constantes, e tem uma plataforma continental onde podem
ser instaladas matrizes de torres no mar para geração eólica. Também há
grande potencial solar, com quase todos os telhados no país ainda não sendo
aproveitados para geração
fotovoltaica distribuída, e com a região nordeste com muita
insolação e grandes áreas de baixa produtividade que poderiam ser aproveitadas
para geração solar,
desde que uma parte significativa dos recursos financeiros seja usada para
melhorar a vida da população humana que vive nessas áreas.
O
Brasil é um dos países mais sortudos em termos de alternativas energéticas, sem
depender de barragens, usinas nucleares ou termoelétricas queimando combustível
fóssil – Philip Fearnside
IHU On-Line – Que leitura o senhor faz dos discursos do governo de
Jair Bolsonaro relacionados ao meio ambiente?
Philip Fearnside – O discurso do presidente e do seu ministro do Meio Ambiente tem sido
notoriamente hostil a todas as políticas, órgãos e pessoas que defendem o meio
ambiente. Este discurso, junto com ações concretas para desmantelar os órgãos ambientais,
explica o grande surto de desmatamento e fogo constatado em 2019.
IHU On-Line – Qual é o atual cenário de órgãos de fiscalização do
meio ambiente na região da Amazônia? Como a desestruturação desses órgãos pode
impactar a preservação ambiental no futuro?
Philip Fearnside – A desestruturação dos órgãos de fiscalização
estimula o desmatamento,
a exploração ilegal de madeira e
a invasão de áreas para
garimpagem. A visita do ministro do Meio Ambiente e da ministra da Agricultura a
uma plantação ilegal de soja em
uma terra indígena em Mato Grosso passou
uma mensagem clara de que leis
ambientais poderiam ser violadas com impunidade. A anulação da multa por pesca ilegal do
presidente, e a posterior demissão do agente que aplicou a
multa, passou uma mensagem clara aos funcionários do órgão fiscalizador para
não aplicar multas, o que, de fato, diminuiu muito no atual governo.
A
desestruturação dos órgãos de fiscalização estimula o desmatamento, a
exploração ilegal de madeira e a invasão de áreas para garimpagem – Philip
Fearnside
IHU On-Line – Quais os maiores desafios do Brasil hoje no que diz
respeito à preservação ambiental?
Philip Fearnside – O maior desafio no momento é manter o que
resta das políticas e agências ambientais. Considerando o tamanho do retrocesso
em apenas dez meses, o que pode ocorrer ao longo dos mais de três anos
restantes do atual governo é assustador.
IHU On-Line – O senhor tem acompanhado as discussões em torno do
Sínodo Panamazônico?
Em que medida ele pode contribuir para mobilizar o desenvolvimento
de novas concepções na relação entre economia e preservação do planeta?
Philip Fearnside – Participei do evento preparatório para
o Sínodo, que foi realizado em Manaus. O Sínodo é importante para fornecer
informações para o Papa,
que tem sido um líder importante em promover a consideração das questões
ambientais e das questões que afetam os povos indígenas e outros povos
tradicionais que defendem a floresta amazônica. O Sínodo também oferece
mais uma oportunidade para trazer a importância ambiental da Amazônia à atenção
do mundo, incluindo o Brasil.
Considerando
o tamanho do retrocesso em apenas dez meses, o que pode ocorrer ao longo dos
mais de três anos restantes do atual governo é assustador – Philip Fearnside.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Philip Fearnside – Seria importante fazer um esforço para
apoiar cristãos evangélicos que
reconhecem a importância de preocupações ambientais na Amazônia. Os mesmos argumentos
destacados pelo Papa com
relação à destruição da criação de Deus se aplicam aos cristãos protestantes, embora
no Brasil os evangélicos têm sido mais
associados ao lado oposto dessas discussões. A chamada bancada “BBB” (Boi, Bala e Bíblia) não
representa todos os evangélicos, e é importante que os que se preocupam com o
meio ambiente se organizem. (ecodebate)
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