Abastecer 15% da Europa com energia renovável, solar e eólica, vinda do deserto do Saara e do Oriente Médio em 2050.
Em 2050, esta poderia ser a
rede de usinas integradas da Europa, Oriente Médio e norte da África.
Fontes: Desertec Foundation,
NASA e Agência Aeroespacial da Alemanha (DLR).
Visto de perto, um dos
coletores solares que serão usados nas usinas da Desertec.
Em 1986, logo após o acidente
nuclear de Chernobyl, o físico alemão Gerhard Knies decidiu calcular quanta
energia solar seria necessária para atender à demanda mundial por eletricidade.
O resultado o surpreendeu: em seis horas, os desertos da Terra recebem mais
energia do Sol do que toda a humanidade consome em um ano. Somente no Saara, o
maior deserto do planeta, com nove milhões de quilômetros quadrados, o Sol
brilha cinco mil horas por ano. Bastaria usar uma área menor que Sergipe para
abastecer a Europa.
O desafio de gerar energia
solar no Saara pode significar, segundo o físico, o fim da dependência de
fontes energéticas sujas e perigosas, como os combustíveis fósseis e a energia
nuclear. “Na verdade, somos muito estúpidos, como espécie, por não fazer um uso
melhor desses recursos”, afirma Knies. Entretanto, essa não é uma tarefa de
simples execução.
A visão do cientista foi
assumida pelo arrojado consórcio Desertec Industrial Initiative (DII), criado
em 2009 por empresas europeias. A meta da DII é construir centrais solares e
eólicas no norte da África e no Oriente Médio para estruturar uma rede de
usinas solares, eólicas, geotérmicas, de biomassa e hidrelétricas visando a
abastecer de energia toda a Eumena (sigla em inglês para Europa, Oriente Médio
e Norte da África) em 2050.
Pelos cálculos do consórcio,
a DII seria responsável pela geração de 15% da energia consumida na Europa,
usando para tanto uma super-rede de cabos especiais de transmissão de alta
voltagem que perdem só 3% da eletricidade transportada a cada mil quilômetros,
estendidos sob o Mar Mediterrâneo e, por terra, pela Turquia “Todas as
tecnologias essenciais para a Desertec” já existem”, assinala Bernd Utz,
porta-voz do consórcio para a Siemens, uma das empresas que integram o
programa. “Temos projetos na China e na Índia que demonstraram a viabilidade da
transmissão de eletricidade em longas distâncias, com baixas perdas.”
A primeira fase começa no
Marrocos (cuja proximidade com a Espanha facilita a entrada da energia na rede
europeia), seguida pela Tunísia e Argélia. A etapa seguinte, a partir de 2020,
incluiria a construção de usinas em países politicamente instáveis, como Líbia,
Egito, países da Península Arábica, a costa asiática do Mediterrâneo e o
Iraque.
Se tudo der certo, a DII
contará com 100 giga watts de capacidade instalada, suficientes para abastecer
um país como o Brasil durante seis meses. Com esse passo, o consórcio ambiciona
disseminar o know-how obtido em outros cantos do mundo. Mapas no site da DII
(www.desertec.org/global-mission) já indicam outras áreas do planeta com alto
grau de insolação que poderiam receber usinas, como o Nordeste e o Centro-Oeste
do Brasil.
A primeira meta do projeto
está orçada em 400 bilhões (cerca de R$
920 bilhões). É uma dinheirama, mas a Desertec tem poder de fogo para tanto. A
visão do projeto foi desenvolvida pela fundação alemã Trans-Mediterranean Renewable
Energy Cooperation (TREC), criada em 2003 pela Agência Aeroespacial da Alemanha
(DLR), pelo Centro de Pesquisa de Energia da Jordânia e pelo Clube de Roma
(associação de pesquisadores europeus ecologistas, fundada em 1968). Além do
conglomerado Siemens, entre os acionistas da DII figuram gigantes como a
resseguradora Munich Re, Deutsche Bank, ABB, Abengoa, RWE e a fornecedora de
gás e energia E.On.
O interesse da Alemanha no
plano é compreensível: o país lidera o desenvolvimento de energias renováveis
na Europa há décadas. Em 2011, Berlim decidiu abandonar a energia nuclear, após
o incidente na usina de Fukushima. Conseguir fontes energéticas renováveis
passou a ter relevância ainda maior para o país.
Ousadia
O projeto da DII é ousado,
mas exequível, diz o físico da USP José Goldemberg. “O problema de transportar
a energia do Saara para a Europa com longas linhas de transmissão tem
precedentes como o da Usina de Itaipu, cuja energia é transmitida para São
Paulo em linhas de alta tensão com corrente contínua”, afirma.
Para vários analistas, porém,
o projeto inicial é um devaneio, tantas são as complicações. “Cada país tem
suas próprias leis e regulamentações, com diferentes formas de subsídios e
regulações para a exportação e a importação de energia elétrica”, nota Gerhard
Hofmann, consultor-sênior da DII. Estabelecer um marco regulatório comum é
praticamente uma utopia. O plano prevê que as usinas dos países africanos
supram 66% de sua demanda energética e exportem o restante para a Europa. Isso
já valeu acusações de neocolonialismo: por que tais países exportariam energia
sem cuidar antes de suas populações?
“Quando a ideia da Desertec
foi anunciada pela primeira vez, houve raiva e irritação na Liga Árabe”,
reconheceu Paul van Son, presidente da DII, no Cairo, em dezembro. “Explicamos
que a ideia beneficiaria também os países-membros, e eles ficaram mais
relaxados. Hoje, a relação é totalmente positiva.”
A instabilidade política do
norte da África e do Oriente Médio e a crise econômica europeia são grandes
preocupações. Problemas não previstos, como a necessidade de limpar com água,
diariamente, no deserto, os espelhos coletores da tecnologia CSP (sigla em
inglês para Energia Solar Concentrada), aumentam o imbróglio.
Mas o sonho da DII vai em
frente: este ano será inaugurada uma primeira usina solar de 500 megawatts, na
pioneira cidade marroquina de Ouarzazate. A unidade servirá como referência
para as usinas a ser erguidas nos outros países nas próximas décadas.
Andasol, na Espanha, é a
maior usina solar do mundo: 600 mil espelhos espalhados por 200 hectares.
FREADA ECONÔMICA
Em dezembro de 2011, os 600
mil espelhos parabólicos instalados no planalto de Guadix, a 50 km de Granada,
foram conectados, tornando operacional a usina solar espanhola de Andasol, a
maior do mundo. Resultado de um investimento de ? 350 milhões (R$ 800 milhões),
bancado por quatro empresas alemãs, a Andasol ocupa uma área equivalente à de
210 campos de futebol somados. A 1.100 metros de altitude, Guadix possui
atmosfera limpa e menos turbulenta do que a de localidades mais baixas,
constituindo-se numa área privilegiada para energia solar.
Com geração de 150 megawatts
(capaz de abastecer uma cidade de 500 mil habitantes), a usina evitará a
emissão de 500 mil toneladas de gás carbônico na atmosfera. Seu alto rendimento
advém do uso dos espelhos coletores da tecnologia CSP, que acompanham a
trajetória solar pelo céu, absorvem o calor e o transferem para a armazenagem
térmica num dispositivo que agrega 30 mil toneladas de sal, mineral condutor de
calor. O resultado são turbinas a vapor que produzem eletricidade até oito
horas depois de o sol se pôr.
Andasol
é uma vitrine da energia solar europeia, mas seus proprietários estão
preocupados. Os investimentos em energias renováveis se baseiam em subsídios
governamentais, e a atual situação econômica da região espalhou nuvens sobre os
negócios. Em janeiro, o Reino Unido cortou ao meio os recursos que destinava ao
setor. Em fevereiro, a Espanha decretou a “suspensão temporária” dos subsídios
para novas usinas eólicas, solares, de cogeração e de incineração de lixo, para
economizar 160 milhões por ano (cerca de R$ 365 milhões). Em março, a Alemanha
anunciou que a expansão de novas usinas solares será “limitada”, sem entrar em
mais detalhes.
“A experiência mostra que,
quando há competitividade no mercado de energias renováveis, o custo cai”, diz
o físico José Goldemberg. “O que está acontecendo no setor da energia solar na
Europa, em países como Alemanha e Espanha, é que eles foram generosos demais nos
subsídios.”
No caso espanhol, as usinas
já prontas não são afetadas, mas a incerteza derruba investimentos futuros.
Especialistas preveem que o freio governamental causará a perda de 20 mil
empregos no setor e agravará a dependência da Espanha em relação aos
combustíveis fósseis. Há sombras sobre o futuro solar. (revistaplaneta)
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