O que são
usinas hidrelétricas “a fio d’água” e quais os custos inerentes à sua
construção?
Usinas
hidrelétricas “a fio d’água” são aquelas que não dispõem de reservatório de
água, ou o têm em dimensões menores do que poderiam ter. Optar pela construção
de uma usina “a fio d’água” significa optar por não manter um estoque de água
que poderia ser acumulado em uma barragem. Esta foi uma opção adotada para a
construção da Usina de Belo Monte e parece ser uma tendência a ser adotada em
projetos futuros, em especial aqueles localizados na Amazônia, onde se
concentra grande potencial hidrelétrico nacional. Aliás, as usinas Santo
Antonio e Jirau, já em construção no rio Madeira, são exemplos dessa tendência.
Quais
as consequências e custos inerentes a essa opção? Quais serão os problemas
futuros que a decisão de abrir mão de reservatórios com efetiva capacidade de
regularização de vazões poderá criar?
Primeiramente,
deve-se considerar que a energia “gerada” por uma hidrelétrica resulta da
transformação da “força” do movimento da água. Transforma-se, assim, em energia
elétrica, a energia cinética decorrente da ação combinada da vazão de um rio e
dos desníveis de relevo que ele atravessa. Desse modo, não restam dúvidas de
que, para o processo, guardar água significa guardar energia.
Os
sistemas de captação e adução levam a água até a casa de força, estrutura na
qual são instaladas as turbinas. As turbinas são equipamentos cujo movimento
giratório provocado pelo fluxo d’água faz girar o rotor do gerador, fazendo com
que o deslocamento do campo magnético produza energia elétrica. O vertedouro,
por sua vez, permite a saída do excesso de água do reservatório, quando o nível
ultrapassa determinados limites. Outros aspectos e outros equipamentos são,
também, importantes, mas, em qualquer caso, estaremos diante de uma busca por
queda e vazão – a primeira, fixa, e a segunda, variável.
Nesse
processo de transformação, a geração de energia elétrica é limitada pelo
produto entre vazão e altura de queda, pois a energia obtida é diretamente
proporcional ao resultado dessa conta. A barragem interrompe o curso d’água e
forma o reservatório, regulando a vazão. Em uma usina com reservatório, essa
variável pode ser controlada pelos administradores da planta. Em uma usina a
fio d’água, fica-se refém dos humores da natureza, ainda que com menor
dependência que as eólicas. Hidrelétricas com reservatórios próprios são
capazes de viabilizar a regularização das vazões. Devido à sua capacidade de
armazenamento (em períodos úmidos) e deplecionamento (em períodos secos), elas
atenuam a variabilidade das afluências naturais.
Deve-se
considerar, também, que esse mesmo efeito pode ser obtido com a construção de
usinas “rio acima” – ou “a montante”, conforme o jargão técnico. Hidrelétricas
instaladas em um mesmo curso hídrico podem atuar de forma integrada. Usinas
localizadas “rio acima” – a montante, no jargão técnico – podem usar seus
reservatórios para regular o fluxo de água utilizado pelas usinas localizadas
“rio abaixo” – a jusante.
A
usina binacional Itaipu, por exemplo, por ser a última rio abaixo – a jusante,
no jargão técnico – da Bacia do Rio Paraná, é considerada como a fio d’água.
Ocorre que se a gigantesca hidrelétrica pode utilizar toda a água que chega ao
reservatório, mantendo apenas uma reserva mínima para garantir a
operacionalidade, tal diferencial se deve, direta ou indiretamente, à
existência de dezenas de barragens a montante.
O
conjunto formado pelos potenciais hidráulicos da margem direita do rio Amazonas
é considerado como uma rara e poderosa combinação de queda e vazão nos estudos
de inventário hidrológicos de bacias brasileiras. A Volta Grande do Xingu, por
exemplo, onde está sendo construída a hidrelétrica Belo Monte, apresenta uma
queda de cerca de 90 metros entre dois pontos muito próximos de um rio cuja
enorme vazão resulta de um percurso de milhares de quilômetros, iniciado no
Planalto Central.
Em
geral, usinas a fio d’água têm baixos “fatores de capacidade”. O fator de capacidade
é uma grandeza adimensional obtida pela divisão da energia efetivamente gerada
ao longo do ano – em geral, medida em MWh/ano – pela energia máxima que poderia
ser gerada no sistema.[1] Trata-se, portanto, de uma medida da
limitação da usina no que diz respeito à sua capacidade de gerar energia.
Na
Europa, esse fator situa-se entre 20% e 35%, em média, sendo um pouco maior na
China e chegando a valores próximos a 45% nos EUA[2]. Em média, as hidrelétricas brasileiras têm
fator de capacidade estimado em valores situados entre 50% e 55%. A
regularização de vazões por meio do uso de reservatórios faz com que essa média
suba significativamente, embora essa não seja, em muitos casos, a única
responsável por isso. No rio São Francisco, por exemplo, esse número para
Sobradinho é 51%, e para Xingó, mais a jusante, é 68%. No rio Madeira, a usina
Jirau tem fator de capacidade próximo de 58%, e o número para a usina Santo
Antônio é de 68%. Não por acaso, a vantagem relativa de Santo Antonio guarda
forte correspondência com o fato de ser um projeto situado a jusante de Jirau.
Pelas razões já apontadas, é possível compreender o magnífico número de 83%
para Itaipu.
No
caso de Belo Monte a potência total instalada é de 11.233,1 MW e a geração
anual média é de 4.571 MW, o que resulta em um fator de capacidade pouco maior
do que 40%. Esse tem sido um dos pontos mais criticados pelos opositores ao
empreendimento, que afirmam que a usina irá “gerar pouca energia”. Mas os
argumentos utilizados, em geral, não levam em consideração dois pontos
essenciais: os valores médios do fator de capacidade das hidrelétricas
brasileiras e a principal razão pela qual o projeto de Belo Monte teve esse
valor diminuído.
Ainda
que se considerasse Belo Monte como um projeto com fator de capacidade muito
distante das médias das usinas brasileiras, deve-se levar em conta que o mesmo
não ocorreria ao se compará-lo com aqueles situados na Amazônia e com as de
outros países. Em Tucuruí, por exemplo, no rio Tocantins – diga-se de passagem,
dispondo da regularização de usinas a montante –, esse valor é de
aproximadamente 49%.
O reservatório projetado
para Belo Monte foi diminuído, bem como inviabilizada a capacidade de
regularização das vazões afluentes às suas barragens, em razão de argumentos de
natureza ambiental. Além disso, houve a decisão de se elaborar um
hidrograma (representação
gráfica da vazão que passa por uma seção, ou ponto de controle, em função do
tempo)
denominado “de consenso”, com o objetivo de garantir que, a jusante do
barramento, fossem asseguradas boas condições de pesca e de navegação às
comunidades indígenas, entre outros aspectos.
Evidentemente,
regularizar ou não a vazão de um curso d’água é uma decisão que,
necessariamente, deve incorporar a dimensão ambiental – numa escolha entre
alternativas que devem ficar absolutamente claras para a sociedade. Entretanto,
essa decisão vem sendo tomada sem o necessário amadurecimento, sem uma discussão
ampliada, baseada em estudos objetivos dos benefícios e custos associados a tal
escolha, com um exagerado receio de desagradar a grupos de pressão específicos
e visando a uma boa imagem do governo na mídia.
Aliás,
justamente nos diversos meios de comunicação é possível encontrar os maiores
disparates sobre o assunto. Nas informações divulgadas nesses meios há boas
doses de lirismo, relacionado com a eventual substituição dos projetos de
hidrelétricas, nomeadamente aqueles que preveem grandes reservatórios, em
benefício de outras formas de transformação de energia – como as eólicas, por
exemplo.
Informações
de baixa qualidade técnica, inclusive relacionadas à possibilidade de
substituição de energia hidrelétrica por eólica, encontram eco entre os mais
diversos operadores do direito e resulta em uma posição defensiva dos técnicos
governamentais, tanto da área de energia quanto da área ambiental. Alguns dos
argumentos mais utilizados nessa judicialização calcada na subjetividade são
fundamentados no chamado “Princípio da Precaução”, que pode ser definido como
de natureza filosófica, política, doutrinária, religiosa ou ideológica – mas,
jamais como de natureza científica.
O
Princípio da Precaução é, essencialmente, um preceito que, se aplicado ao pé da
letra, inviabilizaria o desenvolvimento, justificando a inação diante da ameaça
de danos sérios ao ambiente, mesmo sem que existam provas científicas que
estabeleçam um nexo causal entre uma atividade e os seus efeitos. Impõem-se,
nesses casos, todas as medidas necessárias para impedir tal ocorrência.
Pode-se
dizer que há em tal raciocínio uma quase paródia do pensamento de Leibniz, pois
em vez de se supor que nada acontece sem que haja uma causa ou razão
determinante, a mera suposição causal (de um dano ambiental, nesse caso)
determina que nada deva acontecer.
Como
acreditar que seja possível definir ameaça
de danos sérios ao ambiente sem uma abordagem científica? Como
definir ameaça, danos e sérios sem recorrer à ciência?
Lamentavelmente, muitos atores políticos e operadores do direito creem ser
capazes de fazê-lo. No mundo real, a adoção rigorosa do princípio da precaução
implicaria fechar todos os laboratórios científicos mundo afora. No Brasil,
atualmente, sua aplicação faz com que um empreendedor tenha que provar que as
intervenções previstas não trarão impactos, mitigáveis ou não, ao meio
considerado, o que é virtualmente impossível.
A
militância radical, sustentada no Princípio da Precaução, está se utilizando de
um raciocínio de mão única. A usina a fio d’água desperdiça a chance de se
guardar energia da forma mais barata e da única forma que permite múltiplas
utilizações da água armazenada como a criação de peixes, o turismo e a
contenção de cheias, por exemplo.
Em
um pensamento predominantemente ideológico não há espaço para que sejam
debatidas questões fundamentais acerca da opção única por usinas “a fio d’água”
ou com reservatórios subdimensionados. Em primeiro lugar, deve-se considerar
que o desperdício de capacidade produtiva de energia a montante da usina a fio
d´água é praticamente irreversível. Em segundo lugar, a decisão por um caminho
praticamente sem volta foi tomada sem o devido e necessário debate técnico e
político acerca de um tema que afetará as próximas gerações. Não seria este o
caso de se utilizar o princípio da precaução, evitando-se tomar uma decisão
irreversível e de provável impacto ambiental negativo, visto que será
necessário, no futuro, recorrer a fontes mais poluentes de energia para
substituir a capacidade hidrelétrica desperdiçada?
No
Brasil, a capacidade de armazenamento de energia em reservatórios é
intensamente beneficiada pela diversidade de ciclos pluviométricos das bacias
brasileiras, um diferencial notável em relação a outros países. A otimização
desses reservatórios passa pelas linhas de transmissão, que, na prática,
funcionam como vasos comunicantes, transportando, em vez de água, energia de
uma bacia hidrográfica que esteja em um momento de abundância de água, para
outra, onde haja necessidade de se economizar água escassa. Desse modo, Belo
Monte não pode ser entendida como uma usina isolada e, sim, como virtuosa e
hidricamente intercomunicada – por ser interligada eletricamente – com o resto
do País. Uma vez que o rio Xingu tem suas cheias quase dois meses depois das cheias
dos rios das regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, a possibilidade de
armazenamento em Belo Monte diminuirá fortemente os riscos de carência de
energia – no jargão técnico, o risco de déficit.
Os
estudos de um projeto hidrelétrico incluem a análise do comportamento das
estruturas, simulando a passagem de uma vazão superior a cheia decamilenar, ou
seja, uma cheia de tempo de retorno de 10.000 anos. É tranquilizador saber que
a margem de segurança de uma barragem é tão significativa. Todavia, esse cálculo
não guarda qualquer relação com a segurança de vazões suficientes para fazer
frente à influência da economia sobre a demanda por energia. Nesse caso,
utilizam-se os cenários econômicos para estimar a demanda.
Como
a matriz de geração elétrica no Brasil há forte predominância hidrotérmica, os
cenários começam a sinalizar a crescente necessidade de uso de energia de fonte
térmica, mais cara e mais poluidora que a hidrelétrica.
E
o pior: “ovos de Colombo”, como a repotenciação e a modernização de hidrelétricas,
ainda que totalmente defensáveis, não são processos capazes de garantir o
acréscimo anual de 3.300 MW médios de energia que o Ministério de Minas e
Energia considera necessário para fazer face às projeções de crescimento
econômico para o Brasil. Difundir informações de que a implantação desses
processos evitaria, por exemplo, a construção das usinas do rio Madeira não tem
qualquer cabimento. O mesmo se pode dizer quanto à possibilidade de eólicas
serem capazes de evitar a construção de novas hidrelétricas.
Concordemos,
então: a energia eólica é uma beleza, o Brasil deve investir cada vez mais
nessa opção, há quem ache lindos os cata-ventos e os zingamochos – embora haja
dúvidas quanto à reação da população de cidades que tenham que conviver
próximas aos geradores, enfrentando a poluição visual e a descaracterização
urbanística. Entretanto, essa não é uma opção para a base da matriz elétrica de
qualquer país. Eólicas não são feitas para a geração de base, pois exigem
complementação por meio de outras fontes, como hidrelétricas e termelétricas.
Com fator de capacidade menor do que a média das hidrelétricas brasileiras, as
usinas eólicas dependem fortemente dos ventos, pois essa opção tecnológica não
permite armazenar a energia produzida.
O
crescimento do mercado consumidor de energia combinado com a implantação de
usinas sem reservatórios diminui a confiabilidade do sistema, veda o
aproveitamento múltiplo dos lagos das hidrelétricas e obriga o Operador
Nacional do Sistema (ONS) a fazer um gerenciamento ano a ano dos estoques de
água nas usinas. Como se sabe, sistemas elétricos imunes a defeitos ou a
desligamentos imprevistos são modelos teóricos. Os 100% de confiabilidade no
sistema elétrico ou “risco zero” de falhas implicaria elevar os custos, que
tenderiam ao infinito. E o consumidor teria que pagar por isso, o que
implicaria tarifas proibitivas. Assim, no mundo todo, algum risco de falha no
sistema é aceito. Mas a redução no nível de confiabilidade do sistema
interligado não é desprezível quando se reduz a capacidade de armazenamento de
um sistema predominantemente hidrotérmico como o brasileiro.
Quem
deveria decidir se a opção pela construção de usinas a fio d’água é a melhor
alternativa? Trata-se de um risco para o sistema, um erro inclusive do ponto de
vista socioambiental e uma opção praticamente irreversível. Logo, constitui
matéria a ser objeto de discussão por ampla representação da sociedade, e não
apenas por ativistas ambientais, sociais, ideológicos ou do direito.
Parece
que alguém se esqueceu do art. 20, inciso VIII, da Constituição Federal,
segundo o qual os potenciais hídricos são bens da União e não de meia dúzia de
agentes públicos assustados com as ONGs, com a mídia e com os “achistas” de
plantão. Se essa é uma discussão a ser feita pela sociedade e como seria
inviável – embora defensável e desejável – a realização de um plebiscito acerca
do tema, a democracia representativa tem a única resposta legítima para esse
desafio: o Congresso Nacional. (brasil)
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