sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Política energética norte-americana: limites internos à reversão

A política energética norte-americana está passando por um momento de inflexão delicado. Os anúncios do Governo Trump vão em direção contrária às políticas estabelecidas no Governo Obama, como discutido por Queiroz & Febraro (2017). Além do anúncio de retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris, que só pode ser efetivada em 2020, e da revogação do Clean Power Plan, o Governo americano agora busca criar mecanismos para subsidiar o carvão.
O compromisso firmado na COP21 pelos Estados Unidos previa redução, até 2025, de 26% a 28% do nível de emissão registrado em 2005. O Clean Power Plan sinalizava os esforços norte-americanos nesta direção, ao estabelecer limites de emissões para as centrais elétricas e definir metas específicas para os estados, com liberdade para elaborar seus planos de ação, prevendo aumento de 30% da geração de fontes renováveis até 2030. As políticas estabelecidas impactavam principalmente a utilização de carvão para geração elétrica, penalizando a sua contribuição para emissão de gases de efeito estufa. O deslocamento do carvão na matriz norte-americana, no entanto, já está em curso com a revolução do shale gas e com a redução significativa dos custos da eólica e solar.
Neste contexto, o Departamento de Energia enviou à Agência Federal de Energia (Federal Energy Regulatory Comission – FERC) proposta para compensar as centrais elétricas que sejam capazes de estocar o combustível necessário para seu despacho em suas dependências por ao menos noventa dias, alegando serem “indispensáveis para a economia e segurança nacional”. O plano pretende aumentar a resiliência dos sistemas elétricos, premiando a disponibilidade de combustível “firme”. Na prática, trata-se de subsidiar as centrais a carvão e nuclear que estejam submetidas a mercados liberalizados, assegurando a lucratividade dessas fontes “por fora” do mercado (de energia ou de capacidade) através de remuneração especial.
Nos últimos anos, a oferta de gás natural competitivo deslocou o carvão na disputa direta entre as fontes nos mercados de energia, reduzindo significativamente o nível de emissões do país, ultrapassando a geração a carvão e tornando-se, assim, a principal fonte na composição da matriz (gráfico 1).
A proposta de subsidiar o carvão com o propósito de ampliar a resiliência dos sistemas não encontra respaldo no novo contexto de penetração crescente das energias renováveis variáveis (ERV), como eólica e solar. A maior variabilidade da oferta aportada por essas fontes demanda maior flexibilidade dos sistemas, ou seja, a resiliência está na capacidade de resposta dos recursos à brusca e recorrente variação da oferta das ERV. Não basta disponibilidade de combustível in loco para assegurar confiabilidade ao sistema, mas rápido aporte ou retirada de energia na rede, o que as fontes inflexíveis voltadas para a base da geração, como carvão e nuclear, não proporcionam.
As tentativas de reversão das políticas norte-americanas direcionadas à mudança climática esbarram na distinção entre políticas de Estado e políticas de Governo. A reversão das políticas de Estado está sujeita ao mesmo processo institucional de formulação e consolidação graduais das políticas de Governo, em um sistema de freios e contrapesos que mitiga mudanças bruscas e circunstanciais.
O federalismo norte-americano, por sua vez, reduz a capilaridade e efetividade das políticas nacionais, tendo em vista a autonomia dos estados e das cidades em formular as suas próprias políticas energéticas, resultando em uma diversidade de estratégias e visões. A coalizão de estados norte-americanos, que juntos representam 35% da população do país, em torno dos comprometimentos do Acordo de Paris, em oposição às medidas anunciadas pelo governo federal, corrobora a importância da política “dos estados”.
Os exemplos da Califórnia e de Oklahoma, como serão apresentados a seguir, ilustram o grau de independência das políticas estaduais e suas heterogeneidades. Enquanto que a Califórnia direciona seus esforços para acelerar a transição energética e liderar novos paradigmas tecnológicos, se posicionando de forma absolutamente independente ao governo federal, Oklahoma é o retrato da revolução energética desencadeada pelo shale gas (com todos os seus prós e contras) e pela penetração das novas renováveis na matriz por pressões competitivas.
Califórnia
A Califórnia é o estado mais populoso dos Estados Unidos (cerca de 40 milhões de residentes), o terceiro em área e a maior economia do país, com PIB de 2,6 trilhões de dólares correspondente a sexta maior economia do mundo (2016). Localizado na costa oeste, na Região do Pacífico, o estado concentra esforços para liderar a transição energética rumo à economia de baixo carbono.
A Califórnia foi pioneira na adoção de políticas voltadas para eficiência energética, estabelecendo padrões e metas para redução do consumo de energia em equipamentos e edificações desde a década de 1970. Enquanto que o consumo per capita anual nos Estados Unidos girava em torno de 8.000 kWh em meados da década de 1970, a Califórnia registrava pouco menos de 7.000 kWh. Os programas de eficiência energética contribuíram para que o estado mantivesse este nível ao longo do tempo, enquanto que o país registrou aumento superior a 30% no nível de consumo per capita (CPUC, 2016).
Na fase inicial de desenvolvimento de determinada tecnologia, os programas envolvem incentivos para adoção, como isenção de impostos. Com o amadurecimento tecnológico, os incentivos são retirados e a adoção passa a ser obrigatória. Paralelamente a elaboração de códigos e padrões e de metas periódicas, esquemas de financiamento facilitam a adoção das medidas pelos agentes. Programas como o PACE (Property Assessed Clean Energy) vinculam os empréstimos às propriedades, atrelando benefícios a custos, facilitando transferências futuras e incentivam a incorporação de melhorias através de prazos de pagamento dilatados.
Além de perseguir constantemente eficiência energética no consumo, a Califórnia estabelece metas ambiciosas de redução de emissões e de penetração de renováveis em sua matriz. A meta atual é reduzir as emissões até 2030 em ao menos 40% do nível registrado em 1990. Para alcançar este nível significativo de redução, o estado define parcela mínima de energia renovável a ser adquirida pelas utilities através do programa de portfólio de energia renovável (Renewables Portfolio Standard Program – RPS). Estabelecido em 2002, o RPS definiu como meta inicial alcançar 20% de energia renovável em 2013. Após sucessivas revisões, a meta atual ambiciona atingir 33% de energia renovável em 2020 e 50% em 2030, constituindo-se no programa mais ambicioso do país.
A meta para 2020 já está prestes a ser batida, como revela o gráfico 2. Em 2016, 30% da geração na Califórnia foi oriunda de fontes renováveis como eólica, solar, geotérmica, biomassa e pequenas hidrelétricas. A meta não inclui a geração hidráulica de grande porte, maior que 30 MW de capacidade, responsável sozinha por 14% da geração em 2016, pois não estão contempladas no RPS da Califórnia (CEC, 2017). O gás natural permanece como principal fonte na geração de eletricidade (45%), enquanto que as fontes fóssil e nuclear recuaram para 10%, ante a participação de 20% em 2011.
O parque gerador do estado conta com cerca de 80 GW instalados, dos quais 54% de térmicas a gás, 18% de hidráulica, 12% de solar e 7% de eólica. Incluindo geração distribuída, a fonte solar já alcança 14,7 GW instalados no estado (CEC, 2017). O crescimento nos últimos anos foi fortemente impulsionado pela queda de preço da tecnologia, cuja média já caiu pela metade desde o início desta década.
Ao mesmo tempo em que o governo Trump tenta reverter as medidas estabelecidas na era Obama, a Califórnia define metas ambiciosos para acelerar a transição energética no estado. Recentemente, o senado aprovou a meta de 100% de energia renovável para 2045, mas a tentativa acabou frustrada na câmara dos deputados. Seguindo anúncios do Reino Unido, França e China, a Califórnia também já sinalizou adotar meta para banir a venda de veículos movidos a combustíveis fósseis.
Oklahoma
O estado de Oklahoma possui um perfil bastante diferente da Califórnia, tanto pelas condições econômicas quanto pelas políticas energéticas implementadas. O estado está localizado na região Centro-Sul dos Estados Unidos, faz fronteira com o Texas e está em uma região rica em recursos petrolíferos. O estado de Oklahoma é um dos cinco maiores produtores de petróleo onshore do país e é onde se encontra o hub do West Texas Intermediate (benchmark do petróleo cru norte-americano), na interseção de diversos dutos de escoamento e armazenamento de óleo na cidade de Cushing. Ademais, a cidade possui o maior estoque de petróleo do país, com 1/6 da capacidade total de armazenamento dos Estados Unidos (EIA, 2017).
O estado também possui uma das maiores reservas de gás natural dos Estados Unidos e é o terceiro maior produtor do energético no país, responsável por 8,7% da produção líquida em 2015. Além disso, existe importante potencial para o shale gas, que vem aumentando sua produção gradativamente ao longo dos anos e já representa aproximadamente 40% da produção total de gás natural de Oklahoma, que foi de 191 MMm³/d em 2016.
Uma relevante questão acerca da produção de shale gas em Oklahoma está na associação deste com terremotos com magnitude maior que o natural que vem ocorrendo desde 2009. Apesar dessa hipótese inicial, após estudos chegou-se à conclusão que os terremotos foram induzidos pelos poços de depósito de água residual da indústria de petróleo. A água é resíduo não somente do processo de fraturamento hidráulico, mas principalmente e em sua maior parte da produção convencional de petróleo e gás, que traz consigo uma grande quantidade de água que necessita ser separada e descartada.
Para o descarte, a água residual é injetada em reservatórios com alta profundidade, prática comum na indústria. O problema surge devido às particularidades da formação rochosa de Arbuckle, onde a água tem sido injetada, que, por ter uma alta permeabilidade, ao sofrer as injeções a alta pressão acaba estressando falhas geológicas pré-existentes. Além disso, o volume de água injetada na região dobrou entre 2004 e 2008 (Keranen et al, 2014), o que incentivou o rápido crescimento do número de terremotos com magnitude maior que 3, como observado na Figura 1 abaixo.
Na figura 2 abaixo é possível observar a quantidade de poços perfurados para injeção de água residual no estado de Oklahoma na formação de Arbuckle. Importante salientar que não são todos os poços que tem potencial para induzir terremotos, mas existe uma área mais sensível que se tornou o foco dos estudos e ações.
O governo de Oklahoma está tomando algumas medidas para tentar diminuir a frequência e intensidade dos terremotos. O regulador estadual, Oklahoma Corporation Comission, financiou os estudos iniciais sobre os terremotos e vem buscando monitorar e reduzir as injeções de água em regiões que foram classificadas como sensíveis. Ademais, o protocolo é que o faturamento hidráulico na região seja momentaneamente interrompido ou suspenso caso sejam registradas atividades sísmicas anormais (OCC, 2017). As críticas à reação do governo são principalmente pela demora em agir sobre a questão: o governo só assumiu a ocorrência de terremotos induzidos pela atividade da indústria em 2015. Ademais, outra crítica advém do fato de que as operações de descarte de água se mantiveram, apenas estão sendo melhor monitoradas pelo regulador conforme abalos sísmicos são registrados, não sendo, portanto, uma resolução definitiva do problema.
A evolução da matriz de energia elétrica do estado é apresentada no Gráfico 4 abaixo. Apesar de estar decrescendo desde 2014, após um longo período estagnado, a participação do carvão na geração elétrica ainda é relevante, respondendo por 20% da geração total de 2016. A geração a gás natural também cresceu no período, incentivada pela oferta abundante do energético a baixos preços.
A transformação da matriz elétrica de Oklahoma é interessante principalmente pelo crescimento substancial da energia eólica, mesmo em um estado com vocação petrolífera. Oklahoma possui um dos maiores potenciais eólicos dos Estados Unidos e atualmente já é o terceiro maior produtor de energia eólica do país, atrás apenas do Texas e Iowa. O estado possui capacidade instalada eólica de 6.645 MW e 1.609 MW em construção. São 41 projetos em operação com 3.394 turbinas instaladas. O crescimento foi rápido nos últimos 10 anos e se espera que continue substituindo parte das plantas a carvão, as quais se tornaram obsoletas e com alto custo de manutenção.
A visão de planejamento energético do estado é de diversificação da matriz com foco nas fontes mais baratas e que gerem maior segurança para os consumidores. O governo lançou em 2010 o Oklahoma Energy Security Act que continha o objetivo de alcançar 15% de renováveis na matriz em 2015, uma maneira de incentivar a diversificação. O objetivo foi alcançado já em 2012 e hoje representa 26% da matriz do estado. Apesar de ser um plano geral incluindo outras renováveis, o resultado se deu principalmente sobre a energia eólica, devido sua alta competitividade. Ademais, incentivou-se o uso do gás natural em detrimento de outros combustíveis fósseis, exigindo que fossem apresentadas justificativas para a construção de novas plantas que não utilizassem gás.
Enquanto que a Califórnia lidera a utilização de energia solar distribuída e de carros elétricos no país, deslocando a geração a gás natural por geração renovável, Oklahoma desloca o carvão, até pouco tempo predominante, através da penetração crescente de gás natural e eólica. O movimento de diversificação “natural” da matriz elétrica em Oklahoma e as metas ambiciosas traçadas na Califórnia se contrastam com as políticas anunciadas no âmbito nacional, sinalizando que os efeitos práticos da possível reversão de políticas anunciadas pelo governo Trump podem ser bem mais restritos do que se imagina. (ambienteenergia)

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