A política energética norte-americana está passando
por um momento de inflexão delicado. Os anúncios do Governo Trump vão em
direção contrária às políticas estabelecidas no Governo Obama, como discutido
por Queiroz & Febraro (2017). Além do anúncio de retirada dos Estados
Unidos do Acordo de Paris, que só pode ser efetivada em 2020, e da revogação do
Clean Power Plan, o Governo americano agora busca criar mecanismos para
subsidiar o carvão.
O compromisso firmado na COP21 pelos Estados Unidos
previa redução, até 2025, de 26% a 28% do nível de emissão registrado em 2005.
O Clean Power Plan sinalizava os esforços norte-americanos nesta direção, ao
estabelecer limites de emissões para as centrais elétricas e definir metas
específicas para os estados, com liberdade para elaborar seus planos de ação,
prevendo aumento de 30% da geração de fontes renováveis até 2030. As políticas
estabelecidas impactavam principalmente a utilização de carvão para geração
elétrica, penalizando a sua contribuição para emissão de gases de efeito
estufa. O deslocamento do carvão na matriz norte-americana, no entanto, já está
em curso com a revolução do shale gas e com a redução significativa dos custos
da eólica e solar.
Neste contexto, o Departamento de Energia enviou à
Agência Federal de Energia (Federal Energy Regulatory Comission – FERC)
proposta para compensar as centrais elétricas que sejam capazes de estocar o
combustível necessário para seu despacho em suas dependências por ao menos
noventa dias, alegando serem “indispensáveis para a economia e segurança
nacional”. O plano pretende aumentar a resiliência dos sistemas elétricos,
premiando a disponibilidade de combustível “firme”. Na prática, trata-se de
subsidiar as centrais a carvão e nuclear que estejam submetidas a mercados
liberalizados, assegurando a lucratividade dessas fontes “por fora” do mercado
(de energia ou de capacidade) através de remuneração especial.
Nos
últimos anos, a oferta de gás natural competitivo deslocou o carvão na disputa
direta entre as fontes nos mercados de energia, reduzindo significativamente o
nível de emissões do país, ultrapassando a geração a carvão e tornando-se,
assim, a principal fonte na composição da matriz (gráfico 1).
A proposta de subsidiar o carvão com o propósito de
ampliar a resiliência dos sistemas não encontra respaldo no novo contexto de
penetração crescente das energias renováveis variáveis (ERV), como eólica e
solar. A maior variabilidade da oferta aportada por essas fontes demanda maior
flexibilidade dos sistemas, ou seja, a resiliência está na capacidade de
resposta dos recursos à brusca e recorrente variação da oferta das ERV. Não
basta disponibilidade de combustível in loco para assegurar confiabilidade ao
sistema, mas rápido aporte ou retirada de energia na rede, o que as fontes inflexíveis
voltadas para a base da geração, como carvão e nuclear, não proporcionam.
As tentativas de reversão das políticas
norte-americanas direcionadas à mudança climática esbarram na distinção entre
políticas de Estado e políticas de Governo. A reversão das políticas de Estado
está sujeita ao mesmo processo institucional de formulação e consolidação
graduais das políticas de Governo, em um sistema de freios e contrapesos que
mitiga mudanças bruscas e circunstanciais.
O federalismo norte-americano, por sua vez, reduz a
capilaridade e efetividade das políticas nacionais, tendo em vista a autonomia
dos estados e das cidades em formular as suas próprias políticas energéticas,
resultando em uma diversidade de estratégias e visões. A coalizão de estados
norte-americanos, que juntos representam 35% da população do país, em torno dos
comprometimentos do Acordo de Paris, em oposição às medidas anunciadas pelo
governo federal, corrobora a importância da política “dos estados”.
Os exemplos da Califórnia e de Oklahoma, como serão
apresentados a seguir, ilustram o grau de independência das políticas estaduais
e suas heterogeneidades. Enquanto que a Califórnia direciona seus esforços para
acelerar a transição energética e liderar novos paradigmas tecnológicos, se posicionando
de forma absolutamente independente ao governo federal, Oklahoma é o retrato da
revolução energética desencadeada pelo shale gas (com todos os seus prós e
contras) e pela penetração das novas renováveis na matriz por pressões
competitivas.
Califórnia
A Califórnia é o estado mais populoso dos Estados
Unidos (cerca de 40 milhões de residentes), o terceiro em área e a maior
economia do país, com PIB de 2,6 trilhões de dólares correspondente a sexta
maior economia do mundo (2016). Localizado na costa oeste, na Região do
Pacífico, o estado concentra esforços para liderar a transição energética rumo
à economia de baixo carbono.
A Califórnia foi pioneira na adoção de políticas
voltadas para eficiência energética, estabelecendo padrões e metas para redução
do consumo de energia em equipamentos e edificações desde a década de 1970.
Enquanto que o consumo per capita anual nos Estados Unidos girava em torno de
8.000 kWh em meados da década de 1970, a Califórnia registrava pouco menos de
7.000 kWh. Os programas de eficiência energética contribuíram para que o estado
mantivesse este nível ao longo do tempo, enquanto que o país registrou aumento
superior a 30% no nível de consumo per capita (CPUC, 2016).
Na fase inicial de desenvolvimento de determinada
tecnologia, os programas envolvem incentivos para adoção, como isenção de
impostos. Com o amadurecimento tecnológico, os incentivos são retirados e a
adoção passa a ser obrigatória. Paralelamente a elaboração de códigos e padrões
e de metas periódicas, esquemas de financiamento facilitam a adoção das medidas
pelos agentes. Programas como o PACE (Property Assessed Clean Energy) vinculam
os empréstimos às propriedades, atrelando benefícios a custos, facilitando
transferências futuras e incentivam a incorporação de melhorias através de
prazos de pagamento dilatados.
Além
de perseguir constantemente eficiência energética no consumo, a Califórnia
estabelece metas ambiciosas de redução de emissões e de penetração de
renováveis em sua matriz. A meta atual é reduzir as emissões até 2030 em ao
menos 40% do nível registrado em 1990. Para alcançar este nível significativo
de redução, o estado define parcela mínima de energia renovável a ser adquirida
pelas utilities através do programa de portfólio de energia renovável
(Renewables Portfolio Standard Program – RPS). Estabelecido em 2002, o RPS
definiu como meta inicial alcançar 20% de energia renovável em 2013. Após
sucessivas revisões, a meta atual ambiciona atingir 33% de energia renovável em
2020 e 50% em 2030, constituindo-se no programa mais ambicioso do país.
A meta para 2020 já está prestes a ser batida, como
revela o gráfico 2. Em 2016, 30% da geração na Califórnia foi oriunda de fontes
renováveis como eólica, solar, geotérmica, biomassa e pequenas hidrelétricas. A
meta não inclui a geração hidráulica de grande porte, maior que 30 MW de
capacidade, responsável sozinha por 14% da geração em 2016, pois não estão
contempladas no RPS da Califórnia (CEC, 2017). O gás natural permanece como
principal fonte na geração de eletricidade (45%), enquanto que as fontes fóssil
e nuclear recuaram para 10%, ante a participação de 20% em 2011.
O parque gerador do estado conta com cerca de 80 GW
instalados, dos quais 54% de térmicas a gás, 18% de hidráulica, 12% de solar e
7% de eólica. Incluindo geração distribuída, a fonte solar já alcança 14,7 GW
instalados no estado (CEC, 2017). O crescimento nos últimos anos foi fortemente
impulsionado pela queda de preço da tecnologia, cuja média já caiu pela metade
desde o início desta década.
Ao mesmo tempo em que o governo Trump tenta
reverter as medidas estabelecidas na era Obama, a Califórnia define metas
ambiciosos para acelerar a transição energética no estado. Recentemente, o
senado aprovou a meta de 100% de energia renovável para 2045, mas a tentativa
acabou frustrada na câmara dos deputados. Seguindo anúncios do Reino Unido,
França e China, a Califórnia também já sinalizou adotar meta para banir a venda
de veículos movidos a combustíveis fósseis.
Oklahoma
O estado de Oklahoma possui um perfil bastante
diferente da Califórnia, tanto pelas condições econômicas quanto pelas
políticas energéticas implementadas. O estado está localizado na região
Centro-Sul dos Estados Unidos, faz fronteira com o Texas e está em uma região
rica em recursos petrolíferos. O estado de Oklahoma é um dos cinco maiores
produtores de petróleo onshore do país e é onde se encontra o hub do West Texas
Intermediate (benchmark do petróleo cru norte-americano), na interseção de
diversos dutos de escoamento e armazenamento de óleo na cidade de Cushing.
Ademais, a cidade possui o maior estoque de petróleo do país, com 1/6 da
capacidade total de armazenamento dos Estados Unidos (EIA, 2017).
O estado também possui uma das maiores reservas de
gás natural dos Estados Unidos e é o terceiro maior produtor do energético no
país, responsável por 8,7% da produção líquida em 2015. Além disso, existe
importante potencial para o shale gas, que vem aumentando sua produção
gradativamente ao longo dos anos e já representa aproximadamente 40% da
produção total de gás natural de Oklahoma, que foi de 191 MMm³/d em 2016.
Uma relevante questão acerca da produção de shale
gas em Oklahoma está na associação deste com terremotos com magnitude maior que
o natural que vem ocorrendo desde 2009. Apesar dessa hipótese inicial, após
estudos chegou-se à conclusão que os terremotos foram induzidos pelos poços de
depósito de água residual da indústria de petróleo. A água é resíduo não
somente do processo de fraturamento hidráulico, mas principalmente e em sua
maior parte da produção convencional de petróleo e gás, que traz consigo uma
grande quantidade de água que necessita ser separada e descartada.
Para
o descarte, a água residual é injetada em reservatórios com alta profundidade,
prática comum na indústria. O problema surge devido às particularidades da
formação rochosa de Arbuckle, onde a água tem sido injetada, que, por ter uma
alta permeabilidade, ao sofrer as injeções a alta pressão acaba estressando
falhas geológicas pré-existentes. Além disso, o volume de água injetada na
região dobrou entre 2004 e 2008 (Keranen et al, 2014), o que incentivou o
rápido crescimento do número de terremotos com magnitude maior que 3, como observado
na Figura 1 abaixo.
Na figura 2 abaixo é possível observar a quantidade
de poços perfurados para injeção de água residual no estado de Oklahoma na
formação de Arbuckle. Importante salientar que não são todos os poços que tem
potencial para induzir terremotos, mas existe uma área mais sensível que se
tornou o foco dos estudos e ações.
O governo de Oklahoma está tomando algumas medidas
para tentar diminuir a frequência e intensidade dos terremotos. O regulador
estadual, Oklahoma Corporation Comission, financiou os estudos iniciais sobre
os terremotos e vem buscando monitorar e reduzir as injeções de água em regiões
que foram classificadas como sensíveis. Ademais, o protocolo é que o
faturamento hidráulico na região seja momentaneamente interrompido ou suspenso
caso sejam registradas atividades sísmicas anormais (OCC, 2017). As críticas à
reação do governo são principalmente pela demora em agir sobre a questão: o
governo só assumiu a ocorrência de terremotos induzidos pela atividade da indústria
em 2015. Ademais, outra crítica advém do fato de que as operações de descarte
de água se mantiveram, apenas estão sendo melhor monitoradas pelo regulador
conforme abalos sísmicos são registrados, não sendo, portanto, uma resolução
definitiva do problema.
A evolução da matriz de energia elétrica do estado
é apresentada no Gráfico 4 abaixo. Apesar de estar decrescendo desde 2014, após
um longo período estagnado, a participação do carvão na geração elétrica ainda
é relevante, respondendo por 20% da geração total de 2016. A geração a gás
natural também cresceu no período, incentivada pela oferta abundante do
energético a baixos preços.
A
transformação da matriz elétrica de Oklahoma é interessante principalmente pelo
crescimento substancial da energia eólica, mesmo em um estado com vocação
petrolífera. Oklahoma possui um dos maiores potenciais eólicos dos Estados
Unidos e atualmente já é o terceiro maior produtor de energia eólica do país,
atrás apenas do Texas e Iowa. O estado possui capacidade instalada eólica de
6.645 MW e 1.609 MW em construção. São 41 projetos em operação com 3.394
turbinas instaladas. O crescimento foi rápido nos últimos 10 anos e se espera
que continue substituindo parte das plantas a carvão, as quais se tornaram
obsoletas e com alto custo de manutenção.
A visão de planejamento energético do estado é de
diversificação da matriz com foco nas fontes mais baratas e que gerem maior
segurança para os consumidores. O governo lançou em 2010 o Oklahoma Energy
Security Act que continha o objetivo de alcançar 15% de renováveis na matriz em
2015, uma maneira de incentivar a diversificação. O objetivo foi alcançado já
em 2012 e hoje representa 26% da matriz do estado. Apesar de ser um plano geral
incluindo outras renováveis, o resultado se deu principalmente sobre a energia
eólica, devido sua alta competitividade. Ademais, incentivou-se o uso do gás
natural em detrimento de outros combustíveis fósseis, exigindo que fossem
apresentadas justificativas para a construção de novas plantas que não
utilizassem gás.
Enquanto
que a Califórnia lidera a utilização de energia solar distribuída e de carros
elétricos no país, deslocando a geração a gás natural por geração renovável,
Oklahoma desloca o carvão, até pouco tempo predominante, através da penetração
crescente de gás natural e eólica. O movimento de diversificação “natural” da
matriz elétrica em Oklahoma e as metas ambiciosas traçadas na Califórnia se
contrastam com as políticas anunciadas no âmbito nacional, sinalizando que os efeitos
práticos da possível reversão de políticas anunciadas pelo governo Trump podem
ser bem mais restritos do que se imagina. (ambienteenergia)
Nenhum comentário:
Postar um comentário