GD: Conflitos evidenciam
necessidades de ajustes na regulação.
A motivação para esse
comportamento, em geral, pode ser explicada pelas incertezas em relação às
mudanças regulatórias e tributárias no setor elétrico. Por outro lado, há um
viés de alta constante nas tarifas do mercado regulado, além de outros custos
que incentivam os consumidores de energia a buscar soluções que promovam alguma
redução nos gastos com a conta de luz.
A utilização da energia solar
em algumas modalidades ajuda a evitar custos de encargos como CDE (Conta de
Desenvolvimento Energético), CCC (Conta de Consumo de Combustível), Proinfa
(Programa de Incentivo às Fontes Alternativas), TUST (Tarifa de Uso do Sistema
de Transmissão) e TUSD (Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição).
Coletamos relatos de
possíveis práticas anticoncorrenciais e conflitos entre agentes solares e
distribuidoras que acabam parando na Agência Nacional de Energia Elétrica
(Aneel). Em 2018, a agência iniciou, mas não conseguiu concluir, a revisão da
Resolução Normativa n ° 482/12, depois que a discussão transbordou para arena
política em função da campanha que acusava a Aneel de “taxar o sol”.
Atualmente, o processo está sob a relatoria do diretor Efrain Cruz e a revisão
da norma está prevista para ocorrer em 2021.
Para contar essa história, vamos separar os assuntos por ambientes de contratação. No mercado regulado, os tópicos são:
i) Conflitos entre integradores e concessionárias
ii) Cliente
Grupo A com micro e minigeração distribuída (MMGD) faturado como Grupo B para
não contratar demanda. No mercado livre, os agentes começam a estruturar
projetos para viabilizar a figura da Alocação de Geração Própria (AGP).
Conflitos do mercado regulado
Os conflitos entre
integradores e concessionárias de distribuição são velhos conhecidos para quem
acompanha o mercado de energia solar desde o início. No entanto, nunca esses
conflitos foram medidos, de tal forma que fosse possível dimensionar o tamanho
do problema. Dados obtidos com exclusividade da Ouvidoria da Absolar revelam
que o problema tem se tornado sistêmico e, ao não serem tratados com a
celeridade devida pelo regulador, criaram desequilíbrios na relação consumidor
x concessionária.
Concentrando 32,9% das reclamações, o descumprimento do prazo para a emissão do parecer de acesso lidera o ranking da burocracia. Em segundo lugar, com 27,3% da frequência, está o descumprimento do prazo para realização da vistoria. Ainda no top três há o descumprimento de prazo para substituição do medidor de energia, com 18,4%. Há reclamações menores que também irritam o consumidor, como erro no faturamento, sucessivas reprovações não justificadas (1,6%); erro na distribuição dos créditos (0,7%).
“Enquanto associação, a gente tem uma ouvidoria que serve para passar uma visão sistêmica à Aneel. A Ouvidoria dá para a Aneel uma sensação de volume e quantidade, que muitas vezes quando os ‘acessantes’ procuram a agência não têm essa visão do setor”, disse a advogada Bárbara Rubim, vice-presidente de Geração Distribuída da Absolar.
A Aneel já tem multado concessionárias por descumprimento de prazo dos processos de conexão de micro e minigeração. Em um dos casos já julgado pela agência, a multa originalmente aplicada em R$ 13,6 milhões foi reduzida para R$ 8,6 milhões. A empresa justificou o atraso alegando necessidade de obras de reforço em tensão primária como base no cronograma da concessionária. Porém, a Aneel entendeu como demasiado o prazo entre 150 e 2490 dias para atendimento das demandas.
Rubim critica a Aneel ao
permitir que as empresas exijam medidas adicionais aos requisitos mínimos
presentes no PRODIST (Procedimentos de Distribuição de Energia Elétrica no
Sistema Elétrico Nacional). A diretora da Absolar contou que uma briga recente
foi travada com uma concessionária que atende ao interior de São Paulo. A
empresa estabeleceu um padrão de sistemas de proteção novo para sistemas de
minigeração, apenas. Se exigisse para micro, o custo era da distribuidora.
“Essa é um pouco da lacuna
que as distribuidoras estão tomando para conseguir perpetrar essas situações
que muitas vezes beiram o absurdo com a GD”, disse a executiva. “Nessa ação,
uma das coisas que a gente listou era que isso se tratava de uma conduta
anticoncorrencial das distribuidoras que têm empresas de GD dentro de grupos
econômicos”, completou.
Em resposta a reportagem, a
Aneel orientou que problemas ou insatisfações com alguma ação da distribuidora
deve ser procedido de reclamação formal à agência. Caso seja comprovada a
irregularidade, após a garantia do contraditório, serão aplicadas as sanções. A
Aneel garante que o cumprimento dos normativos pelas distribuidoras mitiga
práticas anticompetitivas.
Ainda no intuito de dirimir
os problemas de acesso da geração distribuída junto às distribuidoras, a Aneel
disse que tem realizado inúmeras reuniões com os agentes, com o fim de
orientá-los e, desse modo, reduzir os casos de conflito envolvendo os geradores
distribuídos. “Em decorrência dessas ações, notou-se melhoria nos processos,
não obstante a Aneel acompanha o tratamento dispensado pelas distribuidoras a
esses consumidores”, disse Efrain Cruz.
Uso de ofícios
Segundo os agentes, as
concessionárias usam os ofícios da Aneel (sobre casos específicos) como um tipo
de “jurisprudência”, criando uma verdadeira confusão na cabeça dos integradores
e consumidores. “Em tese, se a gente quiser efetivamente garantir e respeitar
os pilares da segurança e estabilidade jurídica-regulatória, qualquer alteração
normativa deveria vir por meio de um processo de revisão normativa”, disse
Rubim.
A Agência Nacional de Energia
Elétrica (Aneel), por intermédio do novo diretor relator da RN 482/12, Efrain
Cruz, disse que as áreas técnicas da agência possuem delegação da diretoria
para deliberar sobre casos concretos, fazendo-o normalmente por despachos e
ofícios. A orientação técnica é que os ofícios devem ser aplicados a casos
concretos e particulares.
“Embora as áreas técnicas se
guiem, na ampla esmagadora maioria das vezes, nos precedentes da diretoria, a
Aneel não recomenda que os ofícios sejam recebidos por agentes como se fossem
complementos à regulamentação vigente, mormente nos casos em que eventualmente
existir insuficiência de clareza normativa”, respondeu a autarquia.
A Aneel também disse que
desde 2006 deixou de responder a casos em teses, por não compreender adequado
responder consultas formuladas conceitualmente, visto que a agência deve se
posicionar em casos concretos.
Fracionamento de usinas
Uma prática muito comum no
setor solar é o fracionamento de usinas. A ideia é configurar o sistema para
alcançar vantagens competitivas ao evitar, por exemplo, a contratação de
demanda.
O advogado especializado em
energia Frederico Boschin, da MBZ Advogados, e diretor regional da Associação
Brasileira de Geração Distribuída (ABGD) no Rio Grande do Sul, explicou que
estando até o limite de 75 kW todos os custos com medidor, transformador,
reforço na rede são de responsabilidade das concessionárias de distribuição.
No entanto, se alguém
resolver lotear um terreno e construir 75 usinas de 10 kW cada, temos 750 kW
injetados na rede, sem cobrar nada dos consumidores proprietários das usinas.
Eletricamente falando, essa situação exigiria que a distribuidora realizasse um
grande reforço na rede para receber essa carga de minigeração. Boschin contou
que a contratação de demanda pode encarecer a operação da usina entre R$ 3 a 4
mil por mês, em média.
Bernardo Viana Santana, sócio
da área de energia e regulatório de BBMA Advogados, judicializou e venceu uma
causa, pois apenas na hora de trocar o medidor (a GD precisa de um medidor mais
sofisticado do que o que temos em casa normalmente) a concessionária local não
quis realizar a conexão por entender que o arranjo na verdade era uma única
usina solar e que, portanto precisaria contratar demanda. O caso se refere a
duas usinas instaladas em terrenos contíguos pertencentes a membros de uma
mesma família, no caso pai e filho.
“A divisão na norma diz que é proibido dividir uma usina, pegar uma usina de 10 MW e dividir. Agora fazer divisões para se enquadrar dentro, querendo pagar o reforço na rede… Porque daqui a pouco você coloca uma usina aqui e todo um raio de 300 km dela está vetado”, argumentou Santana.
Ele contou que um dos pontos de maior insegurança jurídica no mercado solar é a vedação de divisão de centrais geradoras. “Com o entendimento do juiz de 1ª instância e a confirmação do Tribunal, entendemos que essa situação ficou mais clara para os investidores em geração distribuída”, afirmou.
Sobre o fracionamento de usinas, a Aneel disse que geração no sistema de compensação não pode ser realizado quando uma grande central geradora é dividida em unidades menores para se enquadrar nos limites de potência da microgeração ou minigeração distribuída, devendo a distribuidora identificar esses casos, solicitar a readequação da instalação e, caso não atendido, negar a adesão à rede.
“Esta avaliação deve ser realizada em cada caso concreto. Quando detectado que a divisão é um artifício utilizado pelo interessado para esquivar-se de algumas obrigações ou para auferir vantagens que não são direcionas para aquele porte de unidade, entende-se que ela é indevida”, disse Efrain.
Novela do B Optante
A novela do B Optante, se o leitor não conhece, precisa ter um pouco de paciência. O termo se refere ao consumidor Grupo A conectado em média tensão até 112 kW. Esse consumidor pode “optar” por ser tarifado como Grupo B (baixa tensão). E qual é o benefício? O consumidor fica livre de pagar demanda.
Essa regra foi escrita na REN 414/2010, que trata das condições gerais de fornecimento de energia elétrica. O que a Aneel não previu era que o setor de geração solar, aquele regulado por outra resolução, a REN 482, usaria a REN 414 a seu favor. Lembra que usina de até 75 kW não paga demanda nem reforço na rede? Pois é, consumidor Grupo A tarifado como B também não tem esse custo.
O mercado resolveu instalar sistema de energia solar no limite de 112 kW. Criou-se aqui um problema maior, pois as usinas agora são de minigeração, continuam exigindo o uso da rede, mas não pagam pelo uso dela.
A história do B Optante “vem em dois sabores”, como explicou a advogada Gabriela Daibert do Val Feres Vieira, da consultoria Bright Strategies. Existe a situação do consumidor Grupo A que já é tarifado como Grupo B e agora está instalando GD até 75 kW; e a situação do consumidor Grupo A querendo investir em mini usinas de GD até 112 kW, porém querendo ser tarifado como grupo B. Se está na regra, pode.
Segundo a advogada, a Aneel vive mudando de entendimento sobre esse assunto, uma hora pode, outra não. “A Aneel dá várias decisões diferentes e as distribuidoras acabam não aceitam nenhuma”, disse. “A gente brinca que ela [Aneel] fez uma ginástica hermenêutica para interpretar a norma para atender a interpretação que ela quer que tenha”, acrescentou Vieira.
Sobre o B Optante, a agência disse que alguns casos concretos estão em avaliação. “Cabe destacar que algumas decisões de âmbito de Superintendência estão sendo analisadas, em sede de recurso, pela Diretoria Colegiada da agência”, disse o diretor relator Efrain.
Vamos ao mercado livre.
A Agência CanalEnergia foi entender o porquê de a autoprodução ter voltado à tona no mercado livre. Descobrimos uma sigla AGP – Alocação de Geração Própria. Não é algo novo, mas que até então não era utilizado pelo mercado por questões de viabilidade econômica. No entanto, com a geração solar distribuída, os agentes resgatam um velho modelo de negócio: a autoprodução de energia. Para configurar um autoprodutor AGP, basicamente, o agente precisa ter carga e consumo no mesmo ponto.
Segundo o caderno de comercialização da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), o AGP, conforme estabelecido no Art 26 da Lei no 11.488, é “a geração destinada para uso exclusivo da carga, no caso de consumidores que possuem produção de energia elétrica própria ou que participam em Sociedade de Propósito Especifico, deve ser considerada no pagamento dos encargos relativos a CDE, PROINFA e a CCC dos Sistemas Isolados (CCC-ISOL)”. Tal geração destinada deve abater o consumo apurado, sendo o consumo resultante valorado ao custo (em R$/MWh) de tais encargos, presente na Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) ou Transmissão (TUST).
Logo, agentes – que já estão no mercado livre – perceberam que poderiam reduzir ainda mais os custos de energia se tiverem uma usina solar na modalidade de AGP. E para se enquadrar nessa modalidade, basta que se crie uma sociedade ou um consórcio em que haja um consumidor entre os sócios. No entanto, a regra não obriga que as sociedades sejam transparentes quanto a participação de cada sócio. Ou seja, além do investidor poder vender o excedente de energia no mercado livre, ele tem vantagens no pagamento de encargos.
Transferência de competência
Os agentes entrevistados pela reportagem também reclamaram que os conflitos relacionados MMGD estão sendo direcionados massivamente para a Superintendência de Mediação Administrativa, Ouvidoria Setorial e Participação Pública (SMA). A Aneel confirmou o redirecionamento das demandas da SRD para a SMA e justificou que a área tem tanto a expertise necessária quanto a competência regimental para tratar as reclamações de consumidores contra ações das distribuidoras. A Superintendência de Regulação dos Serviços de Distribuição de Energia Elétrica (SRD) é responsável pela regulação da distribuição, ou seja, pela elaboração dos normativos e acompanhamento dos aspectos técnicos de qualidade.
“Nessa linha, a SMA conta com estrutura, procedimentos e pessoal dedicados a tratar as questões que envolvem os consumidores, incluindo os aqueles com geração distribuída”, disse o diretor relator.
Os agentes solares também reclamam que a Aneel tem demorado muito para responder às solicitações sobre geração distribuída. A Aneel disse que “não há indícios de que as demandas relacionadas à geração distribuída estão levando mais tempo do que no tratamento de outros temas”. No entanto, a agência reconhece que nos últimos dois anos houve um aumento no número de reclamações e questionamentos referentes à conduta das distribuidoras no processo de acesso à rede.
Concomitantemente, houve um aumento expressivo no número de acessos de sistemas de micro e minigeração (no segundo semestre de 2019 foram instalados no país mais de 580 sistemas por dia útil, correspondente a 7,2 MW), situação atípica para as distribuidoras, que estavam habituadas a acessos mais esporádicos de geradores em sua rede.
“Mesmo que se reconheça o alto volume dos pedidos de acesso e as complexidades operativas impostas por esses sistemas, as condutas no sentido de impor dificuldades aos acessantes devem ser combatidas pela agência, e as distribuidoras devem adaptar seus processos a essa nova realidade”.
O que diz a Abradee
Em entrevista, o diretor
jurídico da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica
(Abradee) afirmou que não existe “boicote” por parte das concessionárias, visto
que a geração distribuída apresentou um crescimento de 77% entre janeiro e
setembro, mesmo com a pandemia.
“Tivemos algumas conversar
com Absolar, eles trouxeram o problema conceitualmente, voltamos para as
distribuidoras e não identificamos nada que fosse crítico. O que comprova isso
é a quantidade de reclamações, menos de 1% das ligações”, disse o advogado.
Sobre possíveis práticas
anticoncorrenciais por parte das distribuidoras, Ferreira disse que é natural
que concessionárias, que são operadoras de rede, também queriam participar do
mercado de geração solar, pois estas fazem parte de um grupo maior que atua em
várias frentes. “A distribuidora é uma operadora de rede, mas o grupo tem suas
empresas desverticalizadas. Mas isso não atrapalha o crescimento da GD de forma
alguma”.
O advogado admite que há problemas a serem resolvidos e a distribuidora, como responsável pelo ativo público, precisa ser conservadora para evitar problemas no fornecimento de energia. “Não existe boicote intencional, até porque esse é um mercado aberto. Os problemas têm que ser endereçados com responsabilidade e para isso tem Aneel, o judiciário, as ouvidorias”, concluiu o representante das distribuidoras. (canalenergia)
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