Desafios do uso em larga escala
de veículos elétricos: uma abordagem do ponto de vista da qualidade de energia
elétrica.
Os veículos elétricos (VEs) são
um agente fundamental na busca de uma mobilidade urbana mais sustentável.
Observa-se que a descarbonização do setor de transporte é um importante vetor
da transição energética e para a promoção de soluções tecnológicas sustentáveis
baseadas no uso de energia limpa. Assim, a opção pelos VEs, quando comparados
aos veículos à combustão, proporciona um menor impacto ao meio ambiente por
reduzir as emissões de CO2 na atmosfera e a poluição sonora nas grandes
cidades.
Mediante a utilização maciça
dos VEs, pode-se verificar dois grandes impactos diretos à rede elétrica: (i)
oscilações de tensão provocada pelo grande aumento de demanda e (ii)
intensificação do fluxo reverso fruto da utilização do V2G (sigla do inglês,
vehicle to grid). Este último corresponde à possibilidade de os VEs absorverem
energia da rede e injetá-la novamente no sistema em outro momento.
Nesse sentido, o papel mais
ativo dos consumidores, tendo em vista a possibilidade de armazenar e injetar
energia na rede através, por exemplo, dos VEs, pode contribuir para o
gerenciamento do sistema por ser possível responder às solicitações das
distribuidoras, referentes às necessidades técnicas de operação e à garantia da
qualidade do fornecimento, desde que sejam previstos incentivos adequados na regulação.
Por outro lado, vencida a etapa
de difusão da tecnologia e com a massificação do uso dos VEs, haverá desafios
para a manutenção de um nível satisfatório da Qualidade de Energia Elétrica
(QEE) das redes de distribuição. Observa-se que há três ramos que governam a
relação entre a distribuidora de energia e o consumidor, quais sejam: o
atendimento, o serviço e o produto.
A qualidade do atendimento
aborda a relação comercial e o atendimento das demandas entre clientes e
concessionárias, que são avaliadas pela aderência aos prazos para execução dos
serviços. No que diz respeito à qualidade do serviço verifica-se a continuidade
do fornecimento de energia elétrica. Assim, indicadores, como a Duração e a
Frequência Equivalente de Interrupção por Unidade Consumidora, respectivamente,
DEC e FEC, quantificam a qualidade do serviço e o desempenho do sistema
elétrico, além de subsidiar o indicador de Desempenho Global de Continuidade
(DGC), que avalia a performance das concessionárias de energia do país.
Por fim, a qualidade do produto
se refere à forma de onda da tensão e à sua conformidade com os valores limites
aceitáveis, fornecidos por regulação específica, para o problema deste ramo da
QEE. Dentre tais problemas, citam-se as variações de tensão de longa duração
(VLTD) e curta duração (VTCD), o fator de potência, os harmônicos, os
desequilíbrios de tensão, a variação de frequência, entre outros. Destaca-se
que este ramo da QEE é de extrema relevância para estudos da inserção dos
recursos energéticos distribuídos na rede devido ao impacto que possuem na
magnitude de tensão e em sua forma.
Desta forma, o presente artigo tem o objetivo de apresentar uma primeira discussão sobre os possíveis impactos do carregamento de VEs na qualidade do produto prestado pelas concessionárias de distribuição de energia elétrica.
Possíveis desafios técnicos à rede elétrica para garantir a qualidade da energia elétrica
Tendo em vista as modalidades
de recarga em postos de carregamento e as recargas residenciais, destacam-se
dois problemas com grande potencial para gerar impactos na qualidade do produto
da energia elétrica nas redes de distribuição: as VTLDs e o aumento das
distorções harmônicas.
Considerando os costumes e
modos de vida da população, os VEs deverão ser majoritariamente recarregados no
período noturno quando o(a) proprietário(a) retornar à sua residência. Ou seja,
os períodos em que ocorrerá maior volume de carregamento de VEs, basicamente
com carregadores lentos, serão a partir das 18h e na madrugada.
Assim, sob o ponto de vista da
qualidade do produto (fornecimento de energia elétrica), um fator de atenção
será o aumento do consumo de energia do período das 18h às 00h que já se
destaca como um período de grande demanda de modo a ocasionar as VTLD. Este fenômeno
é um distúrbio de regime permanente, que tem como característica um desvio no
valor de tensão (sobretensão ou subtensão) ou de frequência e podendo afetar o controle de tensão do
sistema, o funcionamento de equipamentos de proteção das concessionárias, bem
como diversos dispositivos eletrônicos.
Além disso, durante a
madrugada, quando normalmente é verificada uma menor demanda, haverá uma
mudança de comportamento para um maior consumo, o que representa uma alteração
de paradigma que deve ser considerada.
Ademais, a possibilidade de os
VEs injetarem energia na rede elétrica pode ocasionar efeitos que não são
comuns nos sistemas elétricos, como os chamados fluxos reversos. Já que, nos
sistemas tradicionais, é esperado que a energia flua da subestação em direção
às cargas, em um fluxo unidirecional. Com o uso da tecnologia V2G, a injeção de
energia pelos VEs na rede contribui para o fluxo em sentido contrário,
potencializando distúrbios de qualidade que merecem atenção pelas ações de planejamento
e devem ser devidamente monitorados para garantir a segurança das redes de
distribuição.
Adicionalmente, considerando um
contexto da disseminação de postos de recarga (lentos e rápidos) por toda a
rede e o consequente aumento da demanda, é o planejamento da rede de
distribuição que deverá garantir a satisfação de índices, critérios e padrões
estabelecidos nos Procedimentos de Distribuição/PRODIST da Agência Nacional de
Energia Elétrica/ANEEL. Destaca-se que, no PRODIST, são apresentados os índices
associados às VTLDs e a outros impactos que podem ocorrer na rede de
distribuição, tais como aumento de distorções harmônicas nos sinais de tensão
e/ou corrente, flutuações e desequilíbrios de tensão, transitórios e variações
de frequência.
Por outro lado, tendo em vista que neste contexto haverá o uso massivo de dispositivos baseados em eletrônica de potência para carregamento, o aumento de harmônicos no sistema passa a ser uma consequência natural, que demandará um monitoramento adequado dos índices de distorção harmônica total (em inglês, total harmonic distortion – THD) estabelecidos por norma. Deste modo, duas consequências do aumento de harmônicos a níveis que infringem os padrões estabelecidos no Módulo do PRODIST podem ser a ocorrência de maiores perdas elétricas e a interferência em outros dispositivos eletrônicos no sistema.
Como garantir a qualidade do produto de energia elétrica?
A disseminação do uso em larga
escala de tecnologias sustentáveis, como os VEs, encontra terreno fértil no
Brasil, vide a característica renovável de sua matriz energética. Entretanto,
conforme apresentado acima, tal difusão acarreta, dentre outros, em desafios
operacionais e de gestão de qualidade do produto de energia elétrica nos
sistemas de distribuição.
No caso específico da gestão da
qualidade da energia, reguladores e distribuidoras deverão acompanhar de perto
os efeitos provocados pelo crescimento das demandas em razão das recargas
residenciais e, em especial, públicas. Neste sentido, monitorar a qualidade da
energia elétrica através da instalação medidores em pontos estratégicos do
sistema poderia subsidiar ações mitigadoras das causas e dos efeitos
provenientes. A utilização de novas tecnologias de monitoramento em tempo real
da rede é importante na gestão de questões relacionadas à QEE, que podem ser
realizadas por meio de um algoritmo.
Após a possibilidade de
monitoramento e imposição de regulamentação adequada, pode-se garantir a
conformidade da QEE punindo diretamente agentes identificados e subsidiar a
instalação de filtros em pontos específicos. Além disso, podem ser fornecidos
suportes para a gestão da rede pelo lado da demanda por meio de retorno
financeiro a proprietários que injetarem energia à rede em momentos e lugares
oportunos para satisfazer critérios operativos de QEE.
Pelo lado regulatório, é extremamente importante acompanhar os desdobramentos em países mais avançados na substituição de suas frotas a combustão por elétricos. Em países da Europa, EUA e na China, onde a implantação da mobilidade elétrica é mais avançada, os desafios da rede e as soluções desenvolvidas têm sido postas há mais de uma década, podendo ser adaptadas à realidade brasileira.
Dessa forma, será possível vencer as barreiras iniciais e superar os desafios técnicos que vêm junto com toda nova tecnologia do ponto de vista da qualidade de energia elétrica. (canalenergia)
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