Com alto custo e riscos
ambientais, Brasil insiste na energia nuclear.
Mesmo com alto custo de
investimento e riscos ambientais, Brasil insiste na energia nuclear. Entrevista
especial com Célio Bermann
O pesquisador aponta que
enquanto países começam a descontinuidade de geração de energia nuclear, o
atual governo aposta em Angra 3 e em usina nas margens do rio São Francisco
Ele ainda adverte que “o
problema é que a questão ambiental não deve se restringir apenas à emissão dos
gases de efeito estufa e às mudanças climáticas dela decorrentes”, pois
pensando dessa forma os riscos de toda a cadeia, desde a mineração até a
produção de energia propriamente dita, são ignorados. “Riscos severos ilustrados
pelos acidentes das usinas de Three Mile Island (1979), Chernobyl (1986),
Fukushima (2011), apenas para citar os mais conhecidos, passam a ser
negligenciados ‘porque a energia não emite gases de efeito estufa’”, completa.
No entanto, como observa na
entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Célio Bermann aponta
que, apesar dos riscos, o Brasil avança em projetos de novas usinas, mesmo
diante dos muitos problemas que existem nas atuais. “Problemas na usina de
Angra 1 são frequentes. Ela iniciou a operação comercial em 1985 e nos seus
primeiros anos era conhecida pela denominação de ‘usina-vagalume’ em função das
suas dificuldades em manter condições satisfatórias para a geração de energia”,
exemplifica. Bermann ainda destaca que o custo de produção da eletricidade via
usina nuclear é comparativamente muito maior que por outras fontes de energia.
“Também não sei dizer o porquê de mantê-las. Pelo contrário, proponho
descomissionar já as duas usinas em operação. E abandonar definitivamente a
retomada de Angra 3”, dispara.
Enquanto isso, o governo
brasileiro não só segue o projeto de Angra 3, como também desengaveta planos
para outras usinas. “A intenção de construir uma central nuclear nas margens do
rio São Francisco já é antiga, e foi retomada na época em que o falecido
ex-governador de Pernambuco, Eduardo Campos, era ministro de Ciência e
Tecnologia no primeiro governo Lula”, recorda. Projeto que, além dos riscos do
manejo de material radioativo, pode ainda aumentar os conflitos por água na
Bacia do São Francisco. “Em situações de escassez hídrica cada vez mais
frequentes, a disputa pela água poderá alcançar dimensões trágicas para
assegurar a demanda hídrica da central nuclear e, ao mesmo tempo, garantir o
abastecimento humano e dessedentação animal e a irrigação das culturas na
região do médio São Francisco”, aponta.
Célio Bermann é doutor em
Engenharia Mecânica pela Faculdade de Engenharia Mecânica da Universidade
Estadual de Campinas – Unicamp. Ainda possui mestrado em Engenharia de Produção,
na área de Planejamento Urbano e Regional, pela Coordenação de Programas de
Pós-graduação em Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
COPPE/UFRJ, e graduação pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo – FAU/USP. É professor associado no Instituto de
Energia e Ambiente da USP. Entre suas publicações, destacamos “Crise ambiental
e as energias renováveis” (Ciência e Cultura, v. 60, p. 20-29, 2008), “The
Brazilian social fuel stamp program: Few strikes, many bloopers and stumbles”
(Renewable & Sustainable Energy Reviews, v. 102, p. 121-128, 2019) e o
livro As novas energias no Brasil: Dilemas da inclusão social e programas de
Governo (Rio de Janeiro: Fase, 2007), em que é um dos organizadores.
IHU On-Line – Qual é a atual
situação das usinas nucleares brasileiras?
Célio Bermann – É preciso
primeiro destacar que as informações sobre a situação das usinas nucleares no
Brasil (duas concluídas e uma com a construção paralisada) sempre estiveram
restritas ao que a empresa Eletronuclear disponibiliza em seu sítio na web, no
link ‘Imprensa e Mídias’, limitadas ao que é noticiado na imprensa, com
eventuais respostas a matérias que a empresa julga desfavoráveis à energia
nuclear.
Por seu turno, o link ‘Acesso
à informação’, também disponibilizado, se limita a trazer informações
institucionais, embora apresente vários links (Receitas e Despesas; Licitações
e Contratos) que poderiam ter informações de interesse público. Trata-se de uma
forma de a empresa Eletronuclear se apresentar como “transparente” apenas nos
títulos de seu sítio, sem fornecer nenhuma informação sobre o que se diz
disponibilizar.
Portanto, é extremamente
difícil para um pesquisador como eu, ou para o público em geral, ter
informações acerca da situação das usinas nucleares em nosso país. Tanto a
respeito das usinas concluídas Angra 1 e Angra 2, como a paralisada Angra 3. A
Eletronuclear, empresa de economia mista vinculada à Eletrobras, que constrói e
opera as usinas, mantém em sigilo acidentes de diversas ordens, vazamentos,
interrupções não previstas, suas causas e consequências, trazendo insegurança
às populações que vivem nas proximidades das usinas.
É extremamente difícil para
um pesquisador como eu, ou para o público em geral, ter informações acerca da
situação das usinas nucleares no nosso país – Célio Bermann
Contextos de sigilo
Este contexto de sigilo e
desinformação é corroborado por outra empresa do setor nuclear, a Indústrias
Nucleares do Brasil – INB, sediada em Resende (RJ), que processa o enriquecimento
do urânio extraído em Caetité (BA) e faz a montagem na unidade denominada FCN –
Fábrica de Combustível Nuclear, do elemento combustível – conjunto de varetas e
tubos onde o urânio enriquecido é introduzido na forma de pastilhas – para
alimentar os reatores das usinas no processo de fissão nuclear para a produção
de calor e, com isso, aquecer a água que sob pressão faz girar uma turbina
acoplada a um gerador de eletricidade. Para completar esse quadro, a Comissão
Nacional de Energia Nuclear – CNEN é o órgão que ao mesmo tempo pesquisa,
produz, regula e licencia as usinas e as atividades nucleares no país.
Abrindo a ‘caixa-preta’
Apesar dessa ‘caixa-preta”
que caracteriza o contexto da energia nuclear no Brasil, e aí não vai nenhuma
referência ao sentido racista de se associar algo negativo à cor preta, algumas
informações vieram à tona recentemente.
Sabe-se, por exemplo, que
Angra 1 sofreu um desligamento automático em fevereiro de 2020, horas depois de
ser reconectada ao Sistema Interligado Nacional – SIN, devido a problemas no
gerador elétrico. Os trabalhos de reparo exigiram a importação de peças da
empresa americana Siemens, fabricante do gerador. Problema semelhante já havia
ocorrido em setembro de 2017, quando foi identificado um vazamento no gerador
principal. Mais recentemente, no dia 10 de julho, a usina desligou
automaticamente devido à falha em uma bomba de água do circuito secundário (não
nuclear) da usina. E no dia 03 de agosto, foi preciso desligar a usina para
reparar uma bomba do sistema de água que alimenta o gerador de vapor.
Muito embora nenhuma dessas
ocorrências resultaram em exposição de radiação no meio ambiente, problemas na
usina de Angra 1 são frequentes. Ela iniciou a operação comercial em 1985 e nos
seus primeiros anos era conhecida pela denominação de “usina-vagalume” em
função das suas dificuldades em manter condições satisfatórias para a geração
de energia.
Problemas na usina de Angra 1
são frequentes. Ela iniciou a operação comercial em 1985 e nos seus primeiros
anos era conhecida pela denominação de “usina-vagalume” em função das suas
dificuldades em manter condições satisfatórias para a geração de energia –
Célio Bermann
Problemas que o Brasil
enfrenta em usinas nucleares
Entretanto, o episódio mais
recente envolvendo a usina de Angra 2 demonstra de forma mais evidente os
problemas que as usinas nucleares enfrentam no Brasil. Conforme noticiado pelo
blog da jornalista Tania Malheiros, que há anos acompanha as atividades
nucleares no país, Angra 2 foi desligada no dia 22/06/2020 para troca de um
terço dos elementos combustíveis. Porém, durante a inspeção no combustível
nuclear, foi identificada uma oxidação nos elementos combustíveis, mais
especificamente no “revestimento dos tubos que contêm as pastilhas de urânio”.
Para viabilizar o retorno da
unidade à operação no menor tempo possível, a Eletronuclear decidiu trocar
todos os 52 elementos combustíveis que apresentaram oxidação acima do normal. A
substituição foi feita por 24 elementos novos, que já estavam prontos para uso
em Angra 3, cujas obras estão paralisadas, mais 28 usados, que estavam
armazenados na piscina de combustível de Angra 2. Nestas condições, a usina foi
reconectada ao sistema elétrico em 17 de agosto, sendo aprovado pela CNEN o
Relatório do Projeto Nuclear e Termo-hidráulico – RPNT, permitindo o retorno da
unidade à operação e autorizando o seu funcionamento por um ciclo aproximado de
nove meses.
É preciso ressaltar que tal problema da oxidação já tinha sido identificado na Alemanha em 2017, em função de erro de fabricação da liga zircônio-nióbio. Ao que tudo indica, a INB adquiriu, aparentemente sem ter conhecimento, estes mesmos tubos defeituosos.
Área em que se projeto a Usina de Angra 3.
Na usina de Angra 2, os tubos de
ligas de zircônio (zircaloy) que contêm as pastilhas de urânio enriquecido
sofreram um processo de oxidação que criou uma espécie de escamas (resíduos
radioativos) que passaram a circular na água do circuito primário. Essa água a
altíssima temperatura e altíssima pressão estava chegando ao gerador de vapor
do circuito secundário. O risco presente é que a corrosão do gerador de vapor
pelos resíduos radioativos contidos nas escamas pode contaminar a água que vai
para as turbinas, geradores e depois o ambiente externo da usina.
O risco presente é que a corrosão
do gerador de vapor pelos resíduos radioativos contidos nas escamas pode
contaminar a água que vai para as turbinas, geradores e depois o ambiente
externo da usina – Célio Bermann
Minhas dúvidas, que imagino devam
ser também do público leitor do IHU:
1) Ninguém na Eletronuclear teve
conhecimento do que já tinha ocorrido em 2017 numa usina nuclear na Alemanha,
similar à Angra 2?
2) A reutilização de 28 elementos
que estavam na piscina foi feita em quais condições, no que se refere ao
descarte ou reaproveitamento do urânio “queimado” e à exposição à radiação dos
funcionários da usina envolvidos nos procedimentos de reutilização?
3) Os 24 elementos novos que
seriam utilizados em Angra 3 e que foram utilizados na substituição, já estavam
carregados com as pastilhas de urânio? Em caso afirmativo, em quais condições
eles estavam sendo mantidos?
4) Com base em quais fundamentos
foi definido pela CNEN o prazo de nove meses para a operação da usina nessas
“novas” condições?
São essas as perguntas que
precisam ser respondidas!
IHU On-Line – Quanto custa,
financeiramente, para o Brasil manter essas usinas? Por que mantê-las?
Célio Bermann – Não sei avaliar
quanto custa para o país manter as usinas nucleares. O que sei é que o custo de
produção da eletricidade pela energia nuclear é comparativamente muito maior
que por outras fontes de energia. Também não sei dizer o porquê de mantê-las.
Pelo contrário, proponho descomissionar já as duas usinas em operação. E
abandonar definitivamente a retomada de Angra 3.
O que sei é que o custo de
produção da eletricidade pela energia nuclear é comparativamente muito maior
que por outras fontes de energia – Célio Bermann
IHU On-Line – Dentro desses
projetos da Eletronuclear, está a construção de uma central nuclear no rio São
Francisco. Em que consiste esse projeto e quais os seus riscos?
Célio Bermann – A intenção de construir uma central nuclear nas margens do rio São Francisco já é antiga, e foi retomada na época em que o falecido ex-governador de Pernambuco, Eduardo Campos, era ministro de Ciência e Tecnologia no primeiro governo Lula. Em 2010, quando Eduardo Campos estava no seu primeiro mandato como governador de Pernambuco, a Eletronuclear anunciou que a localidade para a construção da central nuclear estaria definida: Itacuruba, um pequeno município no Semiárido nordestino, com cerca de 4.800 habitantes (IBGE/2015).
Cartografia social elaborada pelos povos tradicionais de Itacuruba (Mapa: Projeto Nova Cartografia Social em Pernambuco).
A notícia provocou uma reação
muito grande na população daquela região, que já tinha sofrido um processo de
expulsão de suas terras para dar lugar à formação do reservatório da usina
hidrelétrica de Itaparica, inaugurada em 1988. Esse processo, que na
terminologia técnica recebe o nome de “deslocamento compulsório”, está na
memória recente desta população ribeirinha constituída por etnias indígenas
(Pankará; Tuxá; Pajeú) e quilombolas, que juntamente com o restante da
população sofreram com o descaso e desconsideração de seus direitos, o que é
comum nas empresas proponentes de projetos de energia, seja ela da fonte que
for.
Sob o ponto de vista político, a
intenção da construção de uma central nuclear em terras pernambucanas esbarra
no artigo 216 da Constituição do Estado de Pernambuco que proíbe “a instalação
de usinas nucleares no território do Estado de Pernambuco enquanto não se
esgotar toda a capacidade de produzir energia hidrelétrica e oriunda de outras
fontes”. O deputado Alberto Feitosa (PSC) entrou em setembro de 2019 com uma
proposta de emenda constitucional (PEC 09/2019) para alterar o texto do artigo
216, tornando possível a instalação de usinas nucleares naquele estado. É
evidente que a intenção de alterar a lei vem junto com toda a conhecida
retórica do “progresso”, do “desenvolvimento”, da “criação de empregos”, que
busca sensibilizar a população local.
O projeto
Mas, em que consiste esse
projeto? Trata-se de uma central com seis reatores, cada um com potência de
1.100 MW (megawatts), perfazendo 6.600 MW, ou metade da Usina Hidrelétrica de
Belo Monte em capacidade instalada, não em energia gerada.
No parco material de informação
sobre o projeto que a Eletronuclear disponibiliza, é mencionado o reator AP1000
da empresa americana Westinghouse. A tecnologia utilizada neste modelo de
reator à água pressurizada é apresentada como sendo de 3ª geração (as usinas de
Angra são de 2ª geração), que tem como principal característica um sistema
passivo de resfriamento através de um tanque de água situado acima do reator.
Quando esse sistema é ativado, a água flui por gravidade para o topo do reator,
onde se evapora para remover o calor.
É interessante observar que a
concepção desse reator, com um sistema de resfriamento que independe do
bombeamento de água, foi desenvolvida pelos técnicos da Westinghouse em 2005,
bem antes do acidente nuclear da usina de Fukushima no Japão, que ocorreu em
2011. Esse acidente teve como principal causa as dificuldades de resfriamento
dos seus reatores com a interrupção do fornecimento de energia para o
acionamento das bombas, que foram danificadas pelo tsunami que atingiu as
instalações da usina. Ou seja, a necessidade de resfriamento do reator nuclear
já era uma preocupação da indústria nuclear internacional antes de Fukushima.
Dessa forma, a Eletronuclear
procura apresentar a central nuclear de Itacuruba como “segura”. Mas o maior
problema é que o resfriamento dos seis reatores exige uma quantidade de água
muito grande. Eu fiz os cálculos da demanda hídrica do projeto da central
nuclear projetada para o médio São Francisco, baseado nos dados disponíveis no
site da Westinghouse para um reator AP1000. O sistema de refrigeração irá
exigir o equivalente à metade da vazão mínima registrada em novembro/2017 na
região do médio São Francisco (581 m3/s). Esse volume de água deverá
estar disponível o tempo todo, considerando que a central irá operar com um
fator de capacidade de 90% (ou cerca de 328 dias do ano).
É certo que 70 a 85% desse enorme
volume de água será devolvido ao São Francisco, dependendo do tipo de torre de
resfriamento utilizada – úmida ou seca. Mas em situações de escassez hídrica
cada vez mais frequentes, a disputa pela água poderá alcançar dimensões
trágicas para assegurar a demanda hídrica da central nuclear e, ao mesmo tempo,
garantir o abastecimento humano e dessedentação animal e a irrigação das
culturas na região do médio São Francisco. Isso sem contar que a água devolvida
deverá atingir 33ºC, o que comprometerá os ecossistemas das margens do São
Francisco.
Em situações de escassez hídrica cada vez mais frequentes, a disputa pela água poderá alcançar dimensões trágicas para assegurar a demanda hídrica da central nuclear e, ao mesmo tempo, garantir o abastecimento – Célio Bermann
Necessidade de frear o projeto
Em função desses aspectos, penso
que a resistência ao projeto da central nuclear em Itacuruba não se limita à
população local. As consequências da sua instalação abrangem toda a população
que vive no rio São Francisco. Por isso, acredito ser de fundamental
importância que o Comitê da Bacia do Rio São Francisco se articule na defesa do
rio e seus membros manifestem com vigor seu desacordo ao projeto da central
nuclear nas margens do São Francisco.
E veja que não falamos ainda dos
riscos da radiação num eventual acidente, cuja ocorrência nunca deve ser
descartada, apesar das sempre presentes alegações de segurança. Por fim, a
destinação final dos rejeitos radioativos de alta intensidade continua sendo o
principal problema das usinas nucleares, não só no Brasil mas no mundo inteiro.
Muitos países têm desligado seus
reatores por diversos fatores, mas se tomarmos o acidente da usina de Fukushima
no Japão em 2011 como referência, após o acidente o Japão desligou 16, a
Alemanha 10 e os Estados Unidos 7 reatores nucleares – Célio Bermann
IHU On-Line – Como analisa o
atual contexto da energia nuclear no mundo? E como está o Brasil nesse
contexto?
Célio Bermann – Conforme
informações consolidadas para dezembro de 2018 da Agência Internacional de
Energia Atômica, 450 reatores estavam em operação e 55 em construção. Vale
observar que em 2000 o número de reatores era de 435, ou seja, nos últimos 15
anos apenas 15 reatores foram instalados para operação. Quantos aos 55 reatores
considerados “em construção” ao menos 2/3 deles estão nessa situação há mais de
20 anos. Os países que estão mais envolvidos na construção de novas usinas
nucleares são China (11), Índia (7), Rússia (6), Coreia do Sul (5) e Emirados
Árabes (4).
Muitos países têm desligado seus
reatores por diversos fatores, mas se tomarmos o acidente da usina de Fukushima
no Japão em 2011 como referência, após o acidente o Japão desligou 16, a
Alemanha 10 e os Estados Unidos 7 reatores nucleares. Por outro lado, tomando
como referência o reator modelo AP1000 da Westinghouse, já citado anteriormente
como o modelo de reator da pretendida central nuclear de Itacuruba, é
importante assinalar que o primeiro AP1000 iniciou suas operações somente em
julho de 2018, na Sanmen Nuclear Power Station, na China. Um segundo reator
iniciou operação em agosto de 2018, estando previstos ainda mais dois reatores
nesta usina.
Por seu turno, dois reatores
AP1000 estão sendo construídos nos Estados Unidos na central nuclear de Vögtle
(unidades 3 e 4). A construção foi iniciada em março de 2013 (unidade 3) e
novembro de 2013 (unidade 4) a um custo inicial de 6,1 bilhões de dólares, e
previsão de entrada em operação em 2016 e 2017, respectivamente.
Com o pedido de falência da
empresa Westinghouse em março/2017, as obras foram interrompidas e retomadas
depois da intervenção do governo americano para salvar a empresa. A previsão
para a entrada em operação da unidade 3 era para novembro/2021, e para
novembro/2022 da unidade 4, previsão definida antes da pandemia. O custo se
elevou para 10,4 bilhões de dólares.
Se considerarmos o anúncio da
Eletronuclear de um investimento total de R$ 42 bilhões para a central nuclear
com seis reatores, a verdade é que cada reator exigirá US 5,2 bilhões de
investimento, ou seja, o custo da pretendida central nuclear de Itacuruba não
será menor que R$ 166 bilhões.
Não existe “energia limpa”. Toda
energia é obtida através de processos físico-químicos de conversão que sempre
resultam em degradação do ambiente, em maior ou menor escala – Célio Bermann
IHU On-Line – Entre os defensores
da energia nuclear está o argumento de que se trata de energia limpa, sem
emissão de gases de efeito estufa. Podemos realmente considerar a nuclear uma
energia limpa? Por quê?
Célio Bermann – Em primeiro lugar
não existe “energia limpa”. Toda energia é obtida através de processos
físico-químicos de conversão que sempre resultam em degradação do ambiente, em
maior ou menor escala, dependendo da fonte de energia. A única energia que pode
ser considerada limpa é a energia que não é consumida, a energia evitada.
O problema é que a questão
ambiental não deve se restringir apenas à emissão dos gases de efeito estufa e
às mudanças climáticas dela decorrentes. Essa visão equivocada levou cientistas
como o inglês James Lovelock, formulador da Teoria de Gaia, a defenderem a
energia nuclear como a única fonte capaz de garantir a expansão da oferta de
eletricidade por não emitir dióxido de carbono, contribuindo dessa forma para a
desejável descarbonização.
Ao pensar desta forma restrita,
os riscos que envolvem o ciclo nuclear desde a mineração até a produção de
energia são desconsiderados. Riscos severos ilustrados pelos acidentes das
usinas de Three Mile Island (1979), Chernobyl (1986), Fukushima (2011), apenas
para citar os mais conhecidos, passam a ser negligenciados “porque a energia
não emite gases de efeito estufa”. Esta é uma falácia que precisa ser
combatida, para o bem da ciência e da humanidade!
IHU On-Line – Ainda no primeiro
ano de gestão, o governo Bolsonaro informou que a mineração de urânio, depois
de cinco anos parada, seria retomada em 2020. Como está essa questão? Como é
feita essa mineração e quais os desafios para se compreender as questões de
fundo e jogos de interesses nesse tipo de atividade?
Célio Bermann – O Brasil teve o primeiro local de exploração de urânio em Caldas (MG), cuja mina se encontra atualmente esgotada embora a exploração do minério tenha deixado uma barragem com rejeitos que coloca em risco a região em caso de rompimento. Vários casos de câncer nos trabalhadores da mina foram notificados pelos serviços de saúde local, muito embora a relação causa-efeito com a exposição a material radioativo nunca tenha sido estabelecida.
Eletrobras Termonuclear – Eletronuclear (A Energia nuclear: história, princípios de funcionamento. Rio de Janeiro. 2001).
A partir do ano 2000, o local
de exploração de urânio no país passou aos municípios de Lagoa Real e Caetité
(BA), onde a Indústrias Nucleares do Brasil explorou o minério até 2014. Aqui
também não faltaram problemas graves ligados à mineração do material
radioativo, com casos de câncer na população local provocados pelo contato com
a radiação e danos ao ambiente. Entre 2000 e 2009, houve pelo menos cinco
acidentes que contaminaram parte dos rios e solo da região, de acordo com um
relatório da Secretaria de Saúde da Bahia.
Em outubro de 2019, a CNEN
emitiu licença autorizando operações na mina do Engenho, que é parte da usina
de beneficiamento nuclear da INB em Caetité. Com isso, a exploração do urânio na
região foi retomada.
De olho nas reservas
brasileiras
O que parece explicar essa
obsessão pela exploração do urânio é o fato de o Brasil possuir reservas
estimadas em 309.200 toneladas, o que situa o país como a sexta maior reserva
de urânio do mundo. Num país em que a exploração de bens primários de baixo
valor agregado voltado para a exportação passou a ser a forma como o Brasil se
insere na economia internacional, o que não é apenas a marca do atual
(des)governo, mas a continuação do perfil econômico de governos anteriores, a
mineração de urânio volta-se para a expectativa de um suposto crescimento da
demanda alimentado por novas centrais nucleares cujos números que indiquei
anteriormente estão longe de se confirmar. Talvez a intenção seja a de oferecer
um minério que deverá ser posteriormente enriquecido para ser utilizado como
combustível nas usinas nucleares a um preço “competitivo” por não incorporar os
investimentos necessários na segurança de seus trabalhadores e das regiões onde
se explora o minério.
O Brasil ainda tem outra
região para exploração do urânio – Santa Quitéria no interior do Ceará, onde o
minério na mina de Itataia é encontrado associado ao fosfato, matéria-prima
para a fabricação de fertilizante. A prospecção foi iniciada ainda nos anos
1980 e o projeto permaneceu parado por problemas de viabilidade econômica e com
dificuldades para a obtenção do licenciamento ambiental. Ao que tudo indica, se
a “boiada passar”, a exploração do urânio em Santa Quitéria poderá ser iniciada
a partir de 2025.
O que parece explicar essa obsessão pela exploração do urânio é o fato de o Brasil possuir reservas estimadas em 309.200 toneladas, o que situa o país como a sexta maior reserva de urânio do mundo – Célio Bermann
IHU On-Line – Como avalia as políticas do atual governo no que diz respeito à energia nuclear?
Célio Bermann – O Ministério
de Minas e Energia está sendo conduzido pelo almirante Bento Albuquerque, que
antes exercia o cargo de diretor-geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico
da Marinha, envolvido diretamente com o projeto do submarino nuclear
brasileiro. Portanto, o programa nuclear encontra na sua pessoa todas as
condições necessárias para prosseguir. É só examinar a primeira versão do Plano
Nacional de Energia 2050 que indica a intenção de aumentar a capacidade
instalada de usinas nucleares no Brasil em 10.000 MW nos próximos 30 anos.
Além de Itacuruba, o plano de
expansão nuclear também identifica como locais para a construção de usinas
nucleares a região do baixo São Francisco, entre a Usina Hidrelétrica de Xingó
até a foz do rio São Francisco, além de mencionar de uma forma mais geral os
estados de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo. Por sua vez, a conclusão
de Angra 3 foi contemplada pela recente Medida Provisória nº. 998, que no seu
artigo 9º possibilita que sua conclusão possa ser alcançada por agentes
privados, através de uma autorização da exploração da usina por meio de outorga
a ser dada pelo Conselho Nacional de Política Energética – CNPE.
O futuro controlador da usina
de Angra 3 poderá operar a geradora por 50 anos, prorrogáveis por até mais 20
anos, e deverá apresentar um cronograma de entrada em operação do projeto. Após
a contratação, o operador privado da usina nuclear de Angra deverá manter o suprimento
de energia pelo mínimo de 40 anos.
Ao que tudo indica, se a
“boiada passar”, a exploração do urânio em Santa Quitéria poderá ser iniciada a
partir de 2025 – Célio Bermann
Paralisação de obra e
indícios de corrupção
As obras de Angra 3 estão
paralisadas pelo Ministério Público do Paraná desde 2015, quando atos de
corrupção foram revelados pela operação Lava Jato, envolvendo executivos da
Eletronuclear e as empresas executoras das obras. Conforme o que tem sido
divulgado pela imprensa, a obra iniciada em 1984 já custou em torno de R$ 11
bilhões e a Eletronuclear gasta cerca de R$ 10 milhões por mês com a manutenção
do canteiro de obras e dos equipamentos já adquiridos.
O investimento previsto para a conclusão da obra era de R$ 18,7 bilhões, conforme relatório de fiscalização (TC n. 016.991/2015-0) elaborado pelo Tribunal de Contas da União – TCU em fevereiro de 2016. Entretanto, atualmente é apontado um custo que pode alcançar mais R$ 25 bilhões. Ao mesmo tempo, em recente estudo publicado pelo Instituto Escolhas “Angra 3: vale quanto custa?” (Abril/2020) é indicado que os gastos que seriam necessários para abandonar a obra de Angra 3 são da ordem de R$ 11,92 bilhões. Para mim, a resposta é simples: gastaria a metade para abandonar a obra.
A pergunta que fica é esta: existirá um investidor privado disposto a correr o risco de retomar as obras? Ou será o combalido Tesouro Nacional que irá finalizar aquilo que nunca deveria ter sido iniciado? (ecodebate)