terça-feira, 10 de maio de 2011

O significado de Chernobyl

O dia, primaveril, começou cinzento e lamacento, como tantos outros em minha terra natal. Terminou em pavor e luto. É claro que nenhum de nós sabia o momento exato em que ocorreu a catástrofe em Chernobyl, 25 anos atrás. Naquela época, vivíamos sob um regime que negava às pessoas comuns qualquer direito a conhecimento de fatos e acontecimentos, mesmo básicos. Assim, fomos mantidos no escuro sobre o vazamento de radiação do reator danificado em Chernobyl – e levado pelos ventos para o norte da Europa.
Mas o fato mais bizarro sobre o desastre de Chernobyl, hoje sabemos, é que Mikhail Gorbachev, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, também foi mantido na ignorância sobre a dimensão do desastre. Na verdade, pode ter sido esse episódio que, finalmente, condenou o antigo sistema à lata de lixo da história apenas cinco anos mais tarde. Nenhum regime construído sobre autoengano ilimitado é capaz de reter uma gota de legitimidade depois que o tamanho de seu erro é exposto.
Tendo em vista que apenas fragmentos de informações confiáveis chegaram aos ucranianos na ocasião, minhas lembranças de Chernobyl são necessariamente incompletas. Recordo, hoje, apenas os primeiros abafados sussurros temerosos sobre o desastre emitidos por um amigo da família. Lembro-me do medo odioso que senti por minha filha. Uma verdadeira torrente de boatos histéricos e vazamentos de histórias sobre o desastre logo se seguiram.
Todas essas lembranças, naturalmente, permanecem indeléveis. Porém mesmo 25 anos depois, acho difícil conectar o que realmente sei sobre o desastre com o momento em que dele tive conhecimento.
Hoje, o derretimento de Chernobyl é julgado severamente, tanto em termos morais como metafísicos. Chernobyl lançou sobre a humanidade uma sombra escura não vista desde os bombardeios atômicos a Hiroshima e Nagasaki em 1945.
Mas, ao contrário da crise nuclear de Fukushima, no Japão, a verdadeira lição de Chernobyl não diz respeito à segurança das instalações nucleares. A lição tem a ver com a arrogância e a indiferença oficiais diante do sofrimento e um culto do segredo que permite que informações sejam compartilhadas apenas entre uma pequena elite obcecada com estabilidade. Hoje, mesmo os ucranianos estão sendo lembrados das consequências desse tipo de “cultura” por um governo que cortou benefícios para a saúde dos homens que lutaram heroicamente para conter o desastre em Chernobyl.
Qual foi a fonte da negligência com que foi tratada a crise de Chernobyl? O que causou a indiferença arrogante para com a saúde de quem vivia perto da usina, para aqueles heroicos homens e mulheres que tentaram limitar os danos (que autoridades continuam a tratar como peões) e para os milhões que viviam sob a nuvem radioativa enquanto ela se alastrava?
A indiferença governamental é um estado mental estranho e anormal em que as fronteiras entre crime e castigo, crueldade e compaixão, e bem e mal se tornam difusas. Tendo crescido na URSS, sei que os líderes soviéticos praticamente fizeram do desprezo ao sofrimento e preocupações morais uma fundação de sua filosofia de governo. Governos que não precisam prestar contas, quase inevitavelmente não se preocupam com a sorte de seus cidadãos.
Pode a indiferença em alguma circunstância ser uma virtude? Como sabemos, em tempos de horror – como durante o Holocausto e o Holodomyr, na Ucrânia -, indivíduos isolados e impotentes podem envolver-se num manto de indiferença simplesmente para manter algum remanescente de sanidade. Mas, mesmo nesses casos, isso nunca pode ser plenamente justificado e invariavelmente cederá à persistente culpa inominável sobre a qual Primo Levi escreveu de forma tão comovente.
É a indiferença oficial, porém, que é verdadeiramente imperdoável, talvez porque autoridades indiferentes nunca sentem a culpa sobre a qual Levi escreveu. Com efeito, para alguns líderes políticos, a indiferença é sedutora. É muito mais fácil evitar o olhar dos cidadãos do que lidar com sua situação. É muito mais fácil – e muitas vezes menos dispendioso – fechar os olhos diante das condições trágicas das pessoas do que adequar as políticas às necessidades delas.
Para a autoridade estatal que dá as costas ao sofrimento, os cidadãos de seu país não têm importância. Suas vidas são insignificantes. Sua angústia oculta, ou mesmo visível, é desprovida de valor – é o desespero de uma estatística.
Essa indiferença é mais perigosa do que indignação e ira. A ira pode realmente ser artisticamente e politicamente criativa. Pushkin escreveu alguns de seus maiores poemas como fruto de sua ira; grandes sinfonias de Beethoven foram escritas com o compositor possuído por emoções avassaladoras; e Nelson Mandela, Václav Havel e Aung San Suu Kyi suportaram, todos, encarceramento devido à ira em face da injustiça que testemunharam.
A indiferença, ao contrário, nunca é criativa, pois significa não haver reação à injustiça e que nenhuma ajuda contra o sofrimento jamais chegará. É a ferramenta dos governos que são, na verdade, inimigos de seus povos, pois beneficia apenas o governante, e nunca a vítima, cuja dor é ampliada pela desconsideração. Quanto a prisioneiros políticos, crianças famintas, refugiados sem-teto de Chernobyl ou trabalhadores contaminados por radiação que necessitarão ajuda médica durante o resto de suas vidas – ignorar seu sofrimento recusar-se a oferecer alguma centelha de esperança significa exilá-los para um inferno de desamparo. As autoridades governamentais que negam solidariedade humana dessa maneira negam a sua própria humanidade.
De sua cela na prisão à espera de sua execução pela Gestapo de Hitler, Dietrich Bonhoeffer declarou que todos temos de “compartilhar o sofrimento de Deus”. Indiferença diante de Bonhoeffer não era apenas um pecado, mas também um tipo de punição. Essa é, talvez, a lição central de Chernobyl: governos que sistematicamente fecham os olhos ao destino dos seus cidadãos, em última instância, condenam-se. (EcoDebate)

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