O desastre ocorrido na central de Fukushima Daiichi, no Japão, colocou em xeque o processo de recuperação da imagem da energia nuclear como uma fonte segura e confiável. Esse fato gerou sérias dúvidas sobre a consistência da política energética de vários países que contavam com essa fonte para fazer face ao atual contexto energético de latente desequilíbrio entre a oferta e a demanda de energia e de crescente restrição ambiental ao uso dos combustíveis fósseis.
O impacto inicial desse acidente sobre a opinião pública foi muito desfavorável à expansão dessa fonte de energia na matriz energética e suscitou respostas políticas que apontaram na direção da reavaliação dos planos de construção de novas usinas. Esse movimento englobou desde a suspensão temporária do final da moratória nuclear alemã, até a sinalização da China e da Índia no sentido de reconsiderar seus planos de expansão da geração nuclear, passando pela intenção americana de também rever a segurança das suas centrais.
Desse modo, da sensível Alemanha, às aparentes indiferentes China e Índia, passando pelos ambíguos Estados Unidos, os diversos governos se viram na obrigação de dar uma resposta às inquietações surgidas a partir do desastre japonês.
Contudo, para se estimar melhor as consequências concretas de Fukushima Daiichi nas estratégias e ações de longo prazo desses países é necessário contextualizar melhor o cenário energético mundial no qual ocorre o acidente japonês, de tal forma a retirar a parcela de retórica das reações iniciais dos governos para ver o que sobra em termos de intenções e possibilidades reais de alterar suas respectivas políticas.
Nesse sentido, o primeiro ponto a ser ressaltado é que Fukushima não é Chernobyl. A diferença crucial entre os dois eventos não reside apenas nas questões objetivas tecnológicas e industriais relativas às duas usinas, mas nas diferenças essenciais nos contextos energéticos de 2011 e 1986, que tornam completamente distintos os custos e a viabilidade da decretação de uma moratória nuclear nos dois momentos.
Durante a década de oitenta configurou-se um cenário (contrachoque do petróleo; excedente de capacidade instalada de geração; redução da atividade econômica) confortável no que diz respeito ao equilíbrio entre oferta e demanda de energia, que tinha como principal resultado uma trajetória de preços decrescentes. Somando-se a isso, o fato de que a ameaça representada pela mudança climática ainda não havia entrado fortemente no debate e, portanto, as restrições ambientais à emissão de gases de efeito estufa ainda engatinhavam, tinha-se um quadro energético no qual a garantia do suprimento não enfrentava grandes problemas e, em função disso, perdia a sua função estruturante na política energética e era substituída pela agenda de liberalização e privatização. Agenda esta que marcaria fortemente as décadas seguintes.
Enfim, o contexto era de relativa abundância energética e reduzidas restrições ambientais à queima dos combustíveis fósseis.
Nessa situação, o custo estratégico da moratória nuclear era perfeitamente administrável. Assim, saia a energia nuclear e entravam o carvão e o gás natural; principalmente esse último, que haveria de ser a grande vedete do setor elétrico nos anos noventa.
Olhando-se o atual contexto energético, é muito difícil encontrar esses elementos estruturando a realidade energética nos dias de hoje.
A situação no mercado de petróleo não é de redução, mas de elevação de preços; a capacidade instalada de geração necessita ser ampliada, a demanda, puxada pelos emergentes, apresenta sinais de crescimento estrutural. Nesse sentido, o quadro no mercado de energia não é de folga, mas de equilíbrio justo, com tendência a preços crescentes. Aliado a isso, têm-se restrições ambientais cada vez maiores às emissões dos gases de efeito estufa, fruto do reconhecimento político da necessidade de dar respostas concretas às ameaças representadas pela mudança climática.
Em suma, tem-se um contexto de escassez de energia e de restrições crescentes ao uso de combustíveis fósseis.
Hoje, uma moratória nuclear teria custos estratégicos muito maiores e muito mais difíceis de serem administrados do que aqueles da década de oitenta do século passado, face às pressões da escassez e às resistências ambientais à troca pelo o carvão ou pelo gás; principalmente o primeiro.
Assim, imaginar que as consequências de Fokushima poderão ser semelhantes às de Chernobyl é tentador, porém é um equívoco. Os contextos são distintos e as evoluções dos acontecimentos provavelmente serão diferentes.
Mergulhando no atual contexto deve-se reconhecer que o revival do nuclear não é fruto simplesmente do poderoso lóbi dessa indústria. A enorme disponibilidade energética e a não emissão de gases de efeito estufa, somadas ao avanço na segurança e na redução dos custos dos reatores, contribuíram para incorporar essa tecnologia de geração no rol das ações de política energética para enfrentar a escassez de energia e a mudança climática.
Nesse quadro se insere o movimento do presidente Obama, no início deste ano, abandonando a sua politica energética inicial baseada na penalização das emissões, via cap and trade, e a substituindo por uma política de metas de participação de energias limpas na matriz de geração elétrica; considerando o nuclear, o gás natural e o carvão, via clean coal technology, como sendo energias limpas. Mediante esse movimento Obama buscou construir um novo consenso mais favorável ao avanço das energias limpas na matriz energética nos Estados Unidos. Mesmo que às custas de um conceito bastante amplo do que seja energia limpa. Conceito pouco preciso, reconhece-se, porém amplo o suficiente para se tentar construir alguns pontos de convergência entre Democratas e Republicanos.
Nessa direção também se encontram a suspensão da moratória alemã, no ano passado, o plebiscito italiano sobre a suspensão da moratória nuclear previsto para o próximo verão e os agressivos planos de expansão nuclear da China e da Índia.
Em conjunto, esses movimentos fazem parte de uma estratégia de longo prazo de diversos Estados Nacionais de tentar fechar uma difícil conta que contempla, por um lado, uma demanda crescente de energia e, por outro, um conjunto crescente de restrições geopolíticas e ambientais à expansão da oferta.
Sem o nuclear não há como fechar essa conta em termos de disponibilidade (escala), confiabilidade (qualidade) e custos. Pelo menos, não nos termos tradicionais da política energética.
Cabe lembrar que a política energética lida com um insumo estratégico cuja ausência tem um forte impacto no crescimento econômico e no bem-estar das sociedades. Nesse sentido, a garantia do suprimento desse insumo estrutura essa política e dá a ela um forte caráter conservador. A politica energética, em geral, não é o espaço dos experimentos. Estes, quando acontecem, geralmente ocorrem na margem.
Nessa atividade, a energia nuclear, o gás natural e o carvão surgem como tecnologias “tradicionais”, que apresentam concentrações energéticas e estocabilidades compatíveis com as tecnologias vigentes de uso da energia, e cujos riscos econômico, industrial e tecnológico são manejáveis tanto pela burocracia energética quanto pelas empresas do setor.
Nesse contexto conservador da política energética, o nuclear surge como uma opção importante no atendimento de parcela da demanda futura de energia, que permite que a conta final seja fechada e o planejamento exerça sua função de acalmar as inquietações em relação ao atendimento de nossas necessidades energéticas futuras, reduzindo as incertezas e viabilizando a tomada das decisões econômicas fundamentais relativas a este futuro.
Descartar o nuclear hoje implicaria, nos padrões tradicionais, recorrer pesadamente ao gás natural e ao carvão.
É claro que essa solução não atende a demanda pela redução de emissão de CO2. E, mais do que isso, demonstra uma fragilidade das políticas energéticas de todos os grandes países, que não conseguem enfrentar, ao mesmo tempo, a escassez de energia e a ameaça da mudança climática.
Nesse sentido, a retirada do nuclear do jogo abre um buraco na oferta de energia futura que tem conseqüências diretas tanto sobre a sustentabilidade das atuais políticas energéticas quanto sobre a estabilidade dos mercados de energia hoje.
Por isso, mesmo depois de Fukushima, Obama segue afirmando que o nuclear compõe o futuro energético americano; a China mantêm a incorporação de novos reatores cuja construção estava em andamento, o que em termos chineses significa dezenas de reatores; a Itália suspende o plebiscito no qual a proposta de cancelamento da moratória nuclear seria fatalmente derrotada, e empurra a decisão para daqui a um ano; um destacado membro do governo alemão informa a um grupo de empresários que a suspensão da moratória visa apenas atender a objetivos eleitorais imediatos.
Em função disso tudo, um observador atento do cenário energético mundial tenderia a manter um pé atrás em relação às interpretações que apontam na direção de mudanças radicais na política energética mundial a partir de Fukushima.
Esse cuidado é necessário pelo simples fato de que uma moratória nuclear hoje não colocaria em xeque apenas uma tecnologia e uma política, mas colocaria em xeque um padrão de consumo de energia que representa uma forma de consumir os recursos naturais e se relacionar com o meio ambiente fundada na primeira Revolução Industrial.
Portanto, são mudanças que vão bem além da energia nuclear e da política energética que a contempla e envolvem as visões que as sociedades e os Estados Nacionais têm sobre desenvolvimento econômico e bem-estar social. Daí, as dificuldades de se operar uma solução energética que envolva a simples moratória da energia nuclear nas próximas décadas. Principalmente, naqueles casos em que o gás e o carvão não são considerados fontes limpas e, portanto, não estão plenamente aptos a fazer parte de uma solução de caráter duradouro. (ambienteenergia)
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