Além do mito das barragens como ‘energia limpa’
Atualmente, existe
uma tendência de aceleração da construção de grandes barragens para projetos
hidrelétricos, especialmente nos chamados países em desenvolvimento da América
Latina, sudeste da Ásia e África. No caso do Brasil, a polêmica usina de Belo
Monte é apenas a ponta do iceberg
na Amazônia, principal
frente de expansão da indústria barrageira, onde o governo Dilma pretende
promover a construção de mais de sessenta grandes barragens (UHEs)
e mais de 170 hidrelétricas menores (PCHs) nos próximos anos.
No Brasil, o forte
viés da construção de novas hidrelétricas na região amazônica, em detrimento de
outras opções de investimento, como a eficiência energética (na geração,
transmissão e usos industriais, comerciais e domésticos de energia elétrica) e
fontes renováveis (eólica, solar, biomassa) reflete a persistência do
planejamento centralizado dentro do Ministério de Minas e Energia, como
demonstra a falta de nomeação de representantes da sociedade civil e da universidade
brasileira no Conselho Nacional de Política Energética (CNPE),
contrariando o Decreto número 5.793 de 29 de maio de 2006. Além disso, reflete
a proximidade – ou, como dizem alguns, as “relações promíscuas” – entre o setor
elétrico do governo comandado pelo grupo Sarney (PMDB),
e grandes empreiteiras que se classificam entre os primeiros lugares do ranking
de grandes doadores para campanhas eleitorais da base governista.
Uma tendência
crescente é a caracterização de hidrelétricas por seus protagonistas como fonte
de “energia limpa” para mitigar mudanças climáticas globais e estimular o
chamado “crescimento econômico sustentável”. Essas tentativas de
“esverdeamento” de hidrelétricas ignoram uma série de graves consequências
sociais e ambientais. O represamento de rios, especialmente nos trópicos de
baixa altitude, interrompe fluxos ambientais como inundações sazonais das zonas
úmidas, provocando perdas significativas de habitats e da biodiversidade
(incluindo espécies endêmicas e ameaçadas). As consequências da construção de
barragens para populações indígenas e outras comunidades locais incluem o
deslocamento compulsório, a intensificação de conflitos pela terra, a perda de
recursos pesqueiros, a perda de agricultura de várzea, diminuição da qualidade e
da quantidade da água, aumentos de doenças de veiculação hídrica (como a
malária), a poluição por mercúrio, a interrupção do transporte de pequenas
embarcações, a desintegração das comunidades e a perda de sítios de
insubstituível valor cultural, religioso e histórico.
As consequências desastrosas
As consequências desastrosas
Em contraste com a
propaganda de hidrelétricas como “energia limpa”, as barragens nos trópicos
tipicamente envolvem significativas emissões de metano e gás carbônico (CO2) a
partir de reservatórios e vertedouros, enquanto o desmatamento e as queimadas –
associados à migração e especulação de terras estimulada pela construção de
barragens – contribuem ainda mais para a sua ‘pegada de carbono’.
A lógica de
maximização do lucro na indústria de barragens tem sido associada à capacidade
de seus protagonistas de essencialmente privatizar rios (apesar do seu status
legal como bens públicos) e externalizar custos sociais e ambientais. A tripla
aliança da indústria barrageira, conforme descrito acima, tem conseguido
empregar táticas como a subordinação de agências governamentais responsáveis
pelo licenciamento ambiental, a falta de processos de consulta livre, prévia e
informada junto os povos indígenas (contrariando o artigo 231 da Constituição
Federal e acordos internacionais, como a Convenção 169 da OIT)
e a intervenção no judiciário para inviabilizar ações civis públicas ajuizadas
pelo Ministério Público e entidades da sociedade civil sobre graves violações
dos direitos humanos e da legislação ambiental.
Outro grande atrativo
econômico para a indústria de barragens tem sido os mega-empréstimos
subsidiados do BNDS, assim como a facilidade de acesso a
fundos de pensão de estatais – Petros, FUNCEF e Previ –
e outros incentivos fiscais. Nesse contexto, destaca-se a ausência, por parte
do BNDS e de outros financiadores, de prioridades
estratégicas salvaguardas socio-ambientais capazes de evitar o financiamento de
projetos como Belo Monte, associadas a mecanismos de transparência e
responsabilização perante a sociedade brasileira.
A caracterização de
hidrelétricas como “energia limpa”, reforçada por meio de campanhas
publicitárias caríssimas, tem uma dupla finalidade: por um lado, facilitar o
acesso a créditos de carbono e outros incentivos econômicos, e por outro,
confundir a opinião pública, como contraponto às críticas sobre consequências
sociais e ambientais de barragens destrutivas, incluindo violações dos direitos
humanos, com insinuações sobre a falta de legitimidade de movimentos de
atingidos e outros críticos.
Barragens e Rio+20
Nos preparativos para
a Rio+20, houve praticamente nenhuma discussão sobre a pegada
social e ambiental dos projetos de barragens existentes e as possíveis
implicações de uma onda sem precedentes de construção de barragens em todo o
mundo. Ademais, a caracterização de barragens como “energia limpa” para uma
economia verde que parece fazer parte de uma tendência para “soluções de
mercado” definido pelos interesses dos principais atores do setor privado, onde
a relevância dos direitos humanos, políticas públicas e das instituições
democráticas tem sido cada vez mais menosprezada.
Sem dúvida, reverter
esse quadro e democratizar o debate sobre barragens e a política energética, sob
uma ótica de justiça ambiental e da convicção de que outro modelo de
desenvolvimento que ainda é possível, merece destaque na atuação da sociedade
civil na Rio+20. (EcoDebate)
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